Editorial
O que colecionar quer dizer, por Luiza Teixeira de Freitas
23 mai 2016, 10h41
O que significa colecionar arte contemporânea nos dias de hoje? Como acompanhar o ritmo acelerado de transformações do mundo? Qual o papel dos curadores no desenvolvimento de coleções particulares? Quais as diferenças entre elas e os acervos de museus?
São essas e outras questões que a curadora Luiza Teixeira de Freitas expõe neste texto, publicado originalmente no catálogo da SP-Arte/2016 (veja a publicação na íntegra aqui).
“Colecionar ajuda-nos a entender a história, o presente e o futuro”, sintetiza a responsável pela terceira edição do setor Solo da Feira. Confira!
O que colecionar quer dizer
(por Luiza Teixeira de Freitas)
O ato de colecionar arte contemporânea desenvolveu-se e modificou-se muito nos últimos 15 anos, em decorrência da grande velocidade de transformação do mundo. A globalização possibilitou que fossem construídas muitas pontes inéditas (talvez até pontes em demasia) entre países e culturas. Tornou-se muitas vezes impossível acompanhar o ritmo acelerado do mundo da arte.
As coisas (feitas pelo homem ou não) tornaram-se algo cada vez mais desejável e facilmente adquirível. Nunca o consumo foi tão desenfreado como atualmente. Também é fato que as coleções de arte contemporânea tendem a ser verdadeiras representações do que está acontecendo no mundo. Sendo assim, ficou muito difícil colecionar arte contemporânea de maneira séria, metódica e planejada, bem como definir que tipo de colecionador se pretende ser.
Devido ao crescente número de colecionadores de arte contemporânea ao redor do mundo, é interessante considerar as posturas por trás da arte de colecionar, a fim de traçar um perfil dos diferentes tipos de colecionadores.
Colecionar é “a urgência de erguer um sistema permanente e completo contra o poder destrutivo do tempo”.1 Trata-se da última tarefa para alguém sobreviver à nostalgia profunda, à sensação de estar perdido em sua própria não infinitude.
É importante fazer uma distinção clara entre colecionar e acumular – entre o colecionador e o acumulador. Este último é visto como aquele que compreende o colecionar meramente como investimento financeiro e acúmulo de bens. Já o que impulsiona o colecionador, na maioria das vezes, é a obsessão por possuir e a aventura emocional com a obra em si, “que é, em todos os aspectos, tão intensa quanto um investimento em paixões ‘humanas’. Sem dúvida que a paixão diária pela propriedade privada é, com frequência, mais forte do que todas as outras”.2
Em geral, a coleção se torna parte da vida do colecionador, pois assume o papel de liderança em suas tomadas de decisão, até mesmo nas diminutas tarefas cotidianas. Torna-se mais do que uma simples coleção, e sim uma parte da essência do colecionador. Os objetos são convertidos em propriedades intelectuais que fazem parte dos significados individuais do colecionador.
A coleção se expande para se tornar uma totalidade privada do colecionador, e, “mesmo quando uma coleção se transforma em discurso endereçado a terceiros, ela continua a ser, acima de tudo, um discurso endereçado ao próprio colecionador”.3 “Conforme a pessoa se conscientiza de seu eu, ela se torna um colecionador consciente da identidade; projetando seu ser nos objetos que escolhe para conviver, […] o gosto do colecionador é um espelho de si próprio”.4
O ato de colecionar origina-se, essencialmente, da necessidade de contar histórias, embora não haja formas estruturadas de narrativa para isso. Quando se coleciona, compõe-se uma história que caminha com seu tempo. Anton e Annick Herbert, importantes colecionadores de Ghent, na Bélgica, declararam que não colecionavam obras de arte, e sim uma nova maneira de pensar. Eles sempre colecionaram obras de arte que são expressões do que está acontecendo naquele determinado período.5
O que se passa entre uma coleção de arte contemporânea e seu colecionador é, em certo sentido, muito diferente do que ocorre em uma coleção de selos ou livros raros, por exemplo. A arte contemporânea tem um alto nível de produção, que está aumentando em proporções colossais. É essa demanda por arte que impulsiona tal crescimento do mercado. E os colecionadores tornam-se, de certa forma, seus próprios inimigos.
De fato, algumas das críticas e dos debates atuais mais significativos sobre arte contemporânea sugerem que o início do século XXI assistiu a uma produção artística exagerada. Surgiu, assim, um círculo vicioso de produção/venda/posse, o qual foi acompanhado, em muitos casos, por um exacerbado aumento da demanda, processo este em parte acelerado por galeristas e negociantes, mas principalmente impulsionado por colecionadores e acumuladores.
Devido a essa produção excessiva, há a necessidade crescente de um sistema mais organizado no interior das coleções. É aqui que entram os curadores. Diante do caos em que se transformou o ato de colecionar, alguns colecionadores têm a necessidade de contratar ajuda profissional a fim de expandir suas coleções de maneira criteriosa e relevante, para criar uma abordagem estruturada no subconsciente da coleção. Por outro lado, em muitos casos, os colecionadores têm se tornado cada vez mais dispostos a uma participação consciente nas aquisições que fazem para suas coleções. Assim, quando há um curador, ele muitas vezes assume o papel de um tutor privado ou, devido à falta de tempo do colecionador, simplesmente toma conta de sua coleção. Trata-se de um tipo de parceria. Consequentemente, as coleções são elaboradas com mais reflexão, tornando-se mais parecidas com as coleções dos museus. Isso pode ser visto não só em sua estrutura conceitual, mas também na crescente necessidade de transformar coleções privadas em instituições e fundações.
Colecionar ajuda-nos a entender a história, o presente e o futuro, desenvolvendo uma compreensão muito pertinente sobre como as coleções públicas crescem e se tornam universais. É nesse ponto que o relacionamento do colecionador com os museus passa para o primeiro plano. A proximidade entre o colecionador privado e uma instituição inicialmente surge do interesse do colecionador em compartilhar o que ele possui com terceiros, tornando seu acervo visível por meio de instituições públicas – os colecionadores de arte contemporânea buscam a validação por meio da exposição de suas obras em museus.6
A maior diferença entre coleções privadas e acervos de museus reside no fato de que o museu tem a responsabilidade de escrever a história da arte, ao passo que as coleções privadas têm uma margem maior de liberdade. Mas há muito mais em jogo, de modo que tais relações podem ser bastante complexas. A verdade é que tudo consiste em um jogo mais amplo de toma lá dá cá.
Os colecionadores privados sempre desempenharam um papel extremamente importante nas instituições. Granjearam a posição de assessores dos museus e ganharam cada vez mais espaço para dar opiniões sobre os aspectos mais diversos da estrutura e das resoluções de um museu. Ser doador de um museu permite um acesso mais próximo, bem como conhecimentos e informações privilegiadas.
Nas últimas duas décadas, esse estatuto se expandiu para algo nunca visto antes. Agora, os colecionadores privados não são mais apenas doadores abastados que tornam possíveis o acervo do museu e a efetivação de seus programas de exposição, mas também desenvolveram, em muitos casos, uma visão crítica, uma participação cada vez mais ativa e instruída nos conselhos dos museus. As instituições têm de lidar com o crescente interesse por uma participação mais ativa por parte de seus doadores/colecionadores. De certa maneira, isso pode explicar a necessidade e a estratégia de se aumentarem os comitês de aquisição nas estruturas das instituições. Os colecionadores veem esses comitês como meios de se tornarem ativamente participativos e terem maior poder decisório dentro das instituições – o que pode, porém, ser uma impressão enganosa. Por sua vez, as instituições utilizam esses comitês para desenvolver vínculos com o maior número possível de colecionadores/doadores.
A respeito de tais relacionamentos entre instituições e patronos/doadores/colecionadores, Robert Storr frisa alguns riscos importantes que os permeiam. Ele declara que os grandes museus ao redor do mundo não são e não devem ser extensões dos gostos e das salas de estar dos doadores; tampouco podem se tornar mostruários dos gostos e desgostos de qualquer pessoa que esteja de alguma forma relacionada à aquisição (e isso inclui os curadores do museu).7
Separar o colecionador de arte contemporânea do investidor tornou-se algo extremamente difícil. Intencionalmente ou não, quando alguém coleciona arte contemporânea, tal prática automaticamente se converte em um investimento. Porém, o grande equívoco reside justamente em pensar na arte como investimento. Não pode haver um preço para a arte, porque seu valor vai muito além do econômico. Trata-se de um valor social, político, estético, antropológico e daí por diante.
Manuel Borja-Villel, diretor do Museo Reina Sofía, em Madrid, define de maneira perfeita a verdadeira essência de um colecionador de sua época: “para mim, colecionar é uma forma de lidar com a morte e, por isso, é algo intrinsicamente arraigado no tempo. […] Uma coleção está viva e, enquanto viver, nunca poderá ser concluída, pois sempre haverá algo inacabado, em aberto ou ainda a ser incorporado. […] Quando se é um fervoroso entusiasta de obras de arte e da prática de colecioná-las, isso significa que suas preocupações estão enraizadas no passado, mas que – até o momento da morte – estarão sempre sujeitas a uma rearticulação retroativa. […] Por isso, colecionar é uma forma de memória que está livre da camisa de força da identidade”.8
Luiza Teixeira de Freitas é curadora independente e trabalha entre Lisboa e Londres. Entre as exposições recentes sob sua curadoria, destacam-se: An Infinite Conversation (Museu Berardo, Lisboa, 2014); Apestraction, de Damián Ortega (Freud Museum, Londres, 2013); Like Tears in Rain (Palácio das Artes, Porto, 2010); The Moon is an Arrant Thief (David Roberts Art Foundation, Londres, 2010). Luiza também é ativamente envolvida em projetos de livros de artistas e em publicações independentes, além de ser curadora de diversas coleções particulares. Foi curadora-assistente da Bienal de Marrakech de 2009 e colaborou com a galeria Tate Modern nas exposições de Cildo Meireles e Cy Twombly (Londres, 2008). É curadora do setor Solo da SP-Arte/2016.
Notas:
(1) BAUDRILLARD, Jean. A Marginal System: Collecting. In: ______ (Ed.). The System of Objects. London: Verso, 1996.
(2) Ibid.
(3) Ibid.
(4) ELSNER, John; CARDINAL, Roger. Introduction. In: ______ (Eds.). The Cultures of Collecting. Londres: Reaktion Books Ltd., 1994.
(5) BORJA-VILLEL, Manuel et al. On Collecting: Private and Public. A Round Table. In: Public Space / Two Audiences, works and documents from the Herbert Collection. Barcelona: Museu d’Art Contemporani de Barcelona, 2006.
(6) ALTSHULER, Bruce. Collecting the New: A Historical Introduction. In: ______ (Ed.). Collecting the New. Oxfordshire: Princeton University Press, 2005.
(7) STORR, Robert. To Have and to Hold. In: ALTSHULER, Bruce (Ed.). Collecting the New. Oxfordshire: Princeton University Press, 2005.
(8) BORJA-VILLEL, Manuel et al. op. cit.
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