Fernando Oliva
Lugar Comum
Lugar comum se volta para a linguagem, a estrutura, o funcionamento e os códigos de uma feira de arte, estabelecendo uma relação crítica com a ambiência, a arquitetura, a densidade e o ritmo desse espaço. Se, como disse uma artista que gentilmente declinou do convite para participar do projeto, “as pessoas vêm para cá com um cifrão em cada olho”, talvez seja ingênuo acreditar que mais uma exposição nesse acelerado terreno possa oferecer alternativas a uma voracidade que é própria à natureza do mercado e às suas instâncias atuais.
No início do percurso havia apenas uma ideia, e não uma forma, muito menos uma linguagem ou um conceito definido. Com o perdão do clichê, o objetivo era trabalhar “em processo”, manter abertos os canais de troca e diálogo tanto entre o curador e os artistas, quanto entre a direção geral do Laboratório (Adriano Pedrosa) e o arquiteto (Pedro Vieira). Fato raro em nosso meio, temos tido a oportunidade de debater nossas propostas, recebendo questionamentos que não só contribuíram para cada mostra, mas foram fundamentais como semente de uma “educação curatorial”.
Aqui se experimenta o encontro entre um projeto cultural autônomo e uma feira comercial de arte, sem desconsiderar o que cada escolha envolve em termos simbólicos e materiais. A alguns artistas foram solicitadas obras já realizadas; a outros, um projeto concebido como “site-specific”. Preocupação comum a todos foi contornar o fantasma da comodificação, inerente ao contexto de uma feira que, por sua vez, é parte de um sistema cada vez mais corporativo. As respostas dadas apresentam noções de infiltração, parasitismo, repetição e reencenação como dispositivos críticos e irônicos.
No encontro dessas situações de instabilidade e risco, acredito que possa surgir algo inesperado, para além da reiteração de arranjos já testados. Os artistas têm a oportunidade de experimentar e a curadoria pode pôr à prova suas questões em torno do projeto, principalmente a mais central dentre elas: é possível, em um território tão controlado e domesticado, criar algum tipo de transbordamento, de vazamento crítico – real ou simbólico, objetual ou projetivo – a despeito desses rígidos limites? Estamos todos – curadores, artistas e público – diante de um dilema, no ponto de fazermos escolhas que futuramente serão decisivas para os rumos da arte no que se refere ao seu grau de autonomia e liberdade. Mesmo que discreto, um elemento de disrupção, ambiguidade e dúvida pode ser introduzido no campo, não obstante as limitações deste momento, deste lugar.
Agradecimentos: Amanda Dafoe (arquitetura), Fernanda Tanaka (iluminação) e Marcelo Berg (design).
Fernando Oliva (São Paulo, SP. 1971), curador, crítico e docente na FAAP. Doutorando em Crítica e História da Arte. Vive em São Paulo.
Mariana Lorenzi Azevedo
O Corpo é o Meio
Em 1956, Flávio de Carvalho saiu pelas ruas de São Paulo vestindo seu Traje Tropical, composto por saia e blusa de mangas bufantes, numa ação intitulada Experiência no 3. Nesta que é considerada uma das primeiras manifestações de performance no Brasil, Carvalho criticava o modelo do vestuário europeu incorporado nos países tropicais e subvertia a tradição artística ao colocar seu corpo como suporte da criação.
No início do século XX, dadaístas e futuristas apresentavam manifestos e recitavam poemas em cafés e cabarés da Europa, em acontecimentos tidos como a origem das ações performáticas na história da arte. Porém, foi só durante os anos 1960 e 1970, junto com o aparecimento da contracultura e da arte conceitual, que a performance surgiu como movimento artístico, em articulação com os happenings e com a body art. À moda do que fizeram Flávio de Carvalho e os dadaístas, figuras como Allan Kaprow, Joseph Beuys, Marina Abramovic, Paulo Bruscky, Antonio Manuel, María Teresa Hincapié e os integrantes do grupo Fluxus utilizaram a performance como expressão artística tanto para criticar a situação política e comportamental da época em que viviam, quanto para questionar a relação do espectador com o objeto de arte e a crescente mercantilização do campo.
Por meio de ações efêmeras que, na maioria das vezes, exigiam que artista e público estivessem presentes em mesmo espaço e tempo, os limites do físico e do artístico eram testados. Nesse contexto, o corpo pode ser entendido como um sistema fluido de significados capaz de transformar a arte de forma desafiadora e libertadora: se antes era apenas tema a ser representado por meio de pintura, desenho ou escultura, ele então passava a ser o meio, de modo que o artista se tornava sujeito e objeto de sua criação.
Hoje a performance é amplamente debatida e estudada por especialistas no assunto e ocupa um lugar de crescente importância nas instituições, na história e mesmo no mercado da arte. Se, por um lado, é cada vez mais difícil que a performance resista à sua própria comodificação, por outro, ela continua demandando que o mercado alargue seu território e modo de ação, repensando seus próprios mecanismos de operação. Eis aí, portanto, o sentido de uma exposição que trata da performance no espaço restrito de uma feira de arte.
Mariana Lorenzi Azevedo (São Paulo, SP. 1983), curadora independente. Graduada em Comunicação Social e Mestre em Arts Politics. Vive em São Paulo.
Monica Espinel
La Piel Que Habito
Estranhas sensações nos assaltam quando observamos o interior de nosso corpo. O inverso é igualmente verdadeiro. A pele que habito apresenta artistas que abordam a dimensão do corpo, interna e externamente, como um espaço não apenas físico, mas também mental, político e afetivo. O interior é explorado a partir de raios-X, reproduções de órgãos ou manifestações de respiração; o exterior, a partir de seus reflexos em fotografias, fotocópias e espelhos.
A coexistência entre o interior e o exterior implica uma contradição, algo desconhecido, embora familiar, definindo o corpo como um terreno de opostos. Tal bifurcação se evidencia pelos diversos e complexos significados que estão condensados nas obras. Algumas delas possuem tons surreais; comunicam o corpo erotizado por meio de latentes expressões de desejo, num intercâmbio de fluidos ou ímãs que se atraem. O corpo é também entendido como um lugar de alquimia, transformação ou intimidade fracassada.
Inflexões biográficas estão presentes em uma parte das obras, situando o corpo como um elo entre gerações, como uma sucessão de semelhanças, laços e idades. Outras obras são expressões do corpo exilado, estrangeiro, apartado. Algumas o expõem como um locus de protesto, um corpo ludibriado, rompido, transgredido, reprimido; ou então o apresentam como linguagem, um corpo questionado, interrompido, silenciado. Por vezes, as obras são extensões do corpo do artista, transformando-o simultaneamente em sujeito e objeto. Outras, feitas para serem tocadas, carregam traços das mãos do artista, fisicamente distante, mas tacitamente presente, e remetem à ausência e à fragilidade da existência.
O uso de espelhos como um meio para a autorreflexão desempenha um papel relevante em toda a exposição: produz o reflexo do espectador, envolvendo-o pessoal e fisicamente, e transformando o corpo em questão no próprio corpo do espectador. Retomando o conceito de estágio do espelho formulado por Jacques Lacan (1936), quando uma criança torna-se consciente de sua autoimagem, fase cuja função é a de estabelecer uma relação entre a criança e sua realidade, a presença de espelhos em certas obras confere à exposição uma presenticidade existencial, atuando como lembrete da existência, aqui e agora.
Nosso corpo é o lugar em que sentimos e o meio a partir do qual agimos. Em suas descrições do corpo, a mente e os sentimentos desses artistas são revelados. Como espectadores, nossos corpos são, eles próprios, dispostos e posicionados perante os objetos que vemos. As obras, tal como os espelhos, possibilitam que nos vejamos de modo inédito.
Monica Espinel (Bogotá, Colômbia, 1979), curadora independente. Graduada em Psicologia e Mestre em História da Arte. Vive em São Paulo.
Tomás Toledo
O Enunciado em Questão
A exposição reúne obras de artistas provenientes de contextos históricos, geográficos e culturais distintos, cujos trabalhos utilizam a palavra como elemento-chave. A proposta curatorial foi a de questionar a continuidade e a coerência do uso da linguagem – tanto dos símbolos, quanto dos significados – no panorama das práticas conceituais históricas, a partir de 1970, bem como seus desdobramentos mais recentes na produção atual, pós-conceitual.
Inicialmente, duas questões investigativas se impõem: 1) Quais são os diferentes papéis desempenhados por palavras e símbolos linguísticos tomados como elementos constituintes do objeto artístico?; 2) É possível investigar o uso desses mesmos elementos em situações históricas e geopolíticas distintas, como o mundo europeu e americano, de um lado, e suas periferias, de outro?
Em um primeiro momento, a arte conceitual produzida na América do Norte e na Europa lidava com a palavra de forma mais estrita e analítica. A palavra configurava-se, então, como peça central de um jogo entre realidade, ideia e representação. Naquele contexto, ela tinha sua função inicial diluída e passava a operar como meio para o desenvolvimento do conceito da obra de arte. Ou seja, a palavra assumia, simultaneamente, a função de transmitir um conceito e de ser o próprio conceito.
Nas margens de tal cenário – aqui representadas pela América Latina –, o papel e o uso da linguagem frequentemente se estabeleceram de outra forma, tanto devido à situação política dos anos 1960 e 1970, quanto às referências filosóficas e culturais provenientes de uma matriz de pensamento mais associada à Europa Continental, em detrimento de uma visão anglo-saxônica do conhecimento.
Seguindo essa linha de raciocínio, podemos utilizar uma chave de interpretação inspirada em pensadores como Roland Barthes, que nos alerta para uma dimensão mais expandida e difusa da palavra. O seguinte fragmento do livro de Barthes O rumor da língua expressa a ideia com precisão: “Sabemos agora que um texto não é feito de uma linha de palavras a produzir um sentido único, de certa maneira teológico (…), mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas das quais nenhuma é original: o texto é um tecido de citações, oriundas dos mil focos da cultura”.
O contexto marginal permitiu uma dilatação e uma contaminação dos usos da linguagem, fazendo com que os jogos de palavras escapassem da autorreferência tautológica e pudessem estabelecer outros laços, abrindo-se, assim, para o cotidiano e para a vida.1
1 Algo que o neoconcretismo já havia operado de modo correlato com o construtivismo europeu.
Tomás Toledo (São Paulo, SP, 1986), curador independente e coordenador de projetos da Escola São Paulo. Graduado em Filosofia. Vive em São Paulo.