Bernardo Mosqueira
Trepa trepa no campo expandido
(ao meu amor)
Eu escrevi um texto, retirei as palavras e tatuei em minhas costas a pontuação restante. Eu enrolei e fumei o que havia dentro daquelas baganas. Numa manhã, ao gozar sobre o lençol vermelho, com a mão dele sobre a minha, percebi o que lhe falta. Eu chorei. Eu aprendi muito sobre o amor. Eu percebi muitas coisas mais importantes do que arte. Eu te mostrei todos negando o que nós sentíamos pulsar. Eu vi vida onde não é vista, quis dar brilho a seus olhos. Com envolvimento, oferecer o que você quiser e lhe convidar a sentar bem perto. Eu quis criar com você. Eu quis andar com você. E era eu mesmo, inteiro, ali.
*
Atenção, meus convidados: este lugar em que estamos é para ser vivido. Olhe nos olhos da pessoa a seu lado. Mesmo se não a conhecer, gentilmente, pegue sua mão. Se não tiver coragem, mas se alguém mais vivo lhe tocar, aceite carinhosamente.
Aqui, troquem fluidos, mas não troquem cartões de visita.
Esta mostra é resistência. Sem ignorar as históricas tentativas de um imponderável e empoderado grupo hegemônico de frustrar ou ocultar a marginalidade, o hedonismo, o pulsar, a fragilidade, a alegria e, principalmente, o tesão de nossos melhores artistas [em vida e obra]; exibimos, aqui, diferentes sinais, sintomas, fragmentos ou flagrantes de vida neste latifúndio Arte tão impropriamente [in]utilizado pela nociva terceira pessoa.
Nestes tempos de medo e euforia alimentados,”Arte e Vida” é repetido à exaustão, sem que se perceba que este ”e” junta, mas separa. Os trabalhos aqui assinalam a vida, são obras de artistas que dessacralizam a arte e/ou
sacralizam a vida, aproximando as duas à confusão geradora.
Alguns destes trabalhos são frutos da incoerência entrópica de quem diz, pela arte, que o importante está fora dela [e este nó é o primeiro sintoma de toque de universos não paralelos]. Outros trabalhos são testemunhas, reflexos ou reflexões de situações vividas pelo artista. Outros, ainda, são resultados de propostas afetivas ou relacionais feitas pelo artista a si mesmo ou ao público.
Estes trabalhos se aproximam por seus posicionamentos, não por questões formais.
O trepa trepa no campo expandido abraça obras que apresentam, como tudo aquilo que é de melhor, um alto “coeficiente vital”.
Meus convidados, lancem-se sobre a vida com a pele atenta e os olhos cerrados e, como estes artistas, tomem a experimentação constante de cada escolha e ação como um compromisso leal e justo com suas próprias existências.
Bernardo Mosqueira (Rio de Janeiro, RJ. 1988), curador independente e escritor. Vive no Rio de Janeiro.
Kamilla Nunes
Sumidouro
Sumidouro é a abertura por onde algo se escoa, desaparece. É destino de dejetos, buraco que repentinamente rasga o chão, furo para onde o rio escorre. É lugar de evasão e perda. Em certas regiões, o curso das águas é drenado pelo solo: é abrigado na porosidade das rochas ou força sua permeabilidade criando fraturas. A água penetra e desaparece na terra pelo sumidouro. A terra suga, cede, aprofunda-se. No sumidouro há queda abrupta seguida por absorção lenta; há perda e transformação. Para pensar o Sumidouro como conceito curatorial,
é preciso entendê-lo como a própria dinâmica da arte; como a fissura que se abre para o mundo, que faz as coisas sumirem e serem transfiguradas. A obra de arte é uma abertura por onde algo se escoa e some, para depois reaparecer absorvido, deslocado ou transformado. O sumidouro é a garganta da terra; a arte é a garganta que engole o objeto comum, o conforto cotidiano.
O curso de um rio pode ser seguido até o ponto em que ele é tragado e some. A partir dali, do sumidouro, nada mais se sabe ou se controla; as coisas continuam apenas no escuro, no subterrâneo, na digestão mineral. Aquilo que gera a potência de uma obra não pode ser dito, pois ali a linguagem e os conceitos somem, são engolidos por uma experiência que suga, cede e aprofunda. Sumidouro é o ponto em que a arte extravasa a compreensão, em que ela é desmoronamento interior, queda e sumiço.
Não se trata de um conceito sistematizado, claro ou elucidativo, mas de um direcionamento que conduz somente até a borda do abismo.
No Sumidouro, todos são abandonados aos riscos da própria pele, do confronto solitário com o que comove inexplicavelmente.
É indispensável, para a arte, haver algo incerto, pois a segurança não desperta as emoções, não desafia o pensamento. Cada artista sabe que, por mais consciente e técnico que seja seu processo de criação, há algo em suas obras que ele próprio não compreende. O Sumidouro é o lugar em que a obra é enigma. Ali, tudo é engolido: os roteiros, as narrativas, o sistema, as instituições, os sujeitos, os conceitos. O que permanece é apenas o silêncio viscoso de tudo que escorrega pelas redes de galerias do subsolo, sob a superfície do mundo.
Kamilla Nunes (Florianópolis, SC. 1988), diretora do Instituto Meyer Filho, onde é curadora do programa de exposições. Vive em Florianópolis.
Marta Mestre
Se tudo é humano, tudo é perigoso
O ponto de partida desta exposição é uma narrativa: aqui se cria o mundo, ali aparecem os seres que o habitam, acolá aparecerão outros seres…
A intenção era a de criar certo “deslocamento perspectivo”, sugerindo uma trama singular de espaço e tempo que remontasse ao há muito tempo conhecido, ao há muito tempo familiar, à inquietante estranheza. Tinha em mente um testemunho de Werner Herzog, em que o cineasta fala da necessidade de nos afastarmos da poluição visual de nossas cidades para redescobrir puras e novas imagens.
Interessa-me pensar a passagem da procura de um outro dentro de nós para a procura de um outro por toda parte, o que se dá desde Freud até aos nossos dias. Trata-se da experiência moderna e contemporânea de um outro “expandido” que desconfia do “eu”, de seu referencial de verdade absoluta e da possibilidade de a linguagem dizer toda a realidade.
É aqui que entra o antropólogo Viveiros de Castro, de quem tomo o título para esta exposição. Sua noção de perspectivismo ameríndio rompe com o sistema binário que sempre constituiu a tradição do “eu” ocidental. Ele propõe que busquemos a reflexão sobre o outro, experimentando-nos outros, e, para isso, é indispensável ter consciência de que noções como eu e outro, sujeito e objeto, humano e não-humano são precárias, movediças e intercambiáveis.
A possibilidade que vi nessa prática de ultrapassar o dualismo permitiu-me pensar que não existe um conhecimento fundado na harmonia ou unidade do exercício das faculdades, e é assim que observo o perspectivismo de Viveiros de Castro: uma reviravolta de lugares de enunciação.
Dessa forma, imaginei a exposição Se tudo é humano, tudo é perigoso como um conjunto de objetos que podiam ser pensados, vividos ou acreditados em termos animistas, ou seja, com uma alma, uma subjetividade e uma capacidade para atuar. Dispostos como se nos dominassem e mantendo-nos em respeito diante de sua lei visual, tais objetos nos puxam para a obsessão. Eles são totens, “máquinas desejantes”, colunas sem fim, falos erguidos, alinhamentos em frente ao Parque Ibirapuera. São imagens não identificadas que nos chegam aos bocados, desconjuntadas.
De que forma essa interioridade dos objetos, animada de intenções específicas, pode ampliar nosso olhar sobre o real e nossa experiência por meio da arte? Esta exposição pretende misturar crença e poder de imaginação. Oxalá que tudo não seja humano.
Marta Mestre (Beja, Portugal. 1980), curadora- assistente do MAM-RJ. Vive no Rio de Janeiro.
Renan Araújo
Avante
A constatação de um mundo formado pelo engano, pela imprecisão e por um futuro duvidoso: o passado que não é tão distante e um porvir que se faz presente. O que se procura com a proposição é um ambiente onde o ruído se faz meta: ações nulas e sistemas débeis – uma conformidade da falha aparente, seja pelo material empregado na construção do objeto, em situações de um mundo forjado, seja pela tentativa de recriá-lo em outras perspectivas.
O que existe na escala de mundo não se apresenta como solução, mas apenas evidencia o desvio de ordem. A exposição apresenta caminhos para uma utopia/distopia na qual podemos perceber um lugar onde as esperanças não se dão como horizonte de possibilidade e, ao mesmo tempo, o contraponto disso, ou seja, o futuro como visão divina, uma terra onde o homem conviverá em harmonia com o leão. As ações quase sempre se apresentam como falidas, não querendo a resolução, mas sim a problemática.
O Brasil é a sexta maior economia mundial, mas ainda fadado a posições distantes em seu desenvolvimento e em sua igualdade social. Em Avante, a moral se faz transitória, sem a necessidade de existir certo ou errado. Artefatos externos à noção de arte serão adicionados à exposição com iguais importância e valor; tais objetos não existem apenas como ilustração do caminho curatorial, mas possuem sua própria lei e carga discursiva.
A grande questão de se pensar em um projeto realizado em um curto espaço de tempo e montado especificamente para uma feira é: como não perder a autonomia ante a demanda de mercado? Como criar um discurso maior [político, crítico ou experimental] sem o deixar refém de ou subordinado ao sistema? É necessário um espaço de diálogo e questionamento, a fim de não se deter apenas no que se apresenta como verdade, mas de tentar encontrar brechas e conflitos [nunca se esquecendo de sua condição: estar dentro]. Talvez a exposição exista como uma homenagem ao fim que nos espera logo adiante. Talvez tenhamos falhado,
o que é paradoxal em se tratando da perspectiva brasileira.
O modernismo aqui se dá como horizonte de dúvida, seu legado identitário e de economia nacional é colocado em cheque, a incerteza paira sobre o tropical. Conflito armado, ações sem justificativa, política de segurança e cultura do medo, resistência, terremoto forjado e cidades onde o convívio homem-animal é harmonioso, mas excludente. As coisas existem em mesma escala e um mesmo patamar de sobrevivência. Tudo aparenta ser uma construção rumo ao nada, à espreita da ruína ou da gênese apocalíptica.
Renan Araujo (Santa Rita do Passa Quatro, SP. 1987), artista e curador. Vive em Ribeirão Preto.