Editorial
Da revista traço— #2
Mulheres, avante: a renovação feminina na fotografia contemporânea
Thyago Nogueira
21 out 2019, 16h20
No campo da arte, poucas discussões têm sido tão proveitosas quanto a que trata do lugar de fala: mulheres, negros, indígenas, comunidade LGBT. O que descobrimos foi um sistema rígido, impermeável e refratário à diversidade de vozes, que tem sido obrigado a rever a si mesmo, em muitos casos, mais pela pressão social do que por iniciativa própria. Não se trata de defender que só determinados grupos têm o direito de falar sobre si, mas de reconhecer que essas vozes não podem continuar ausentes do debate de suas causas, e que devem, inclusive, participar do debate das causas de terceiros. As três artistas apresentadas a seguir são uma amostra pequena do enorme vigor do meio fotográfico, continuamente renovado, seja do ponto de vista formal, com o uso de redes sociais e instalações audiovisuais, seja do ponto de visto temático, com o destaque dado a questões raciais e de gênero.
Acima: "(Outros) Fundamentos", Aline Motta (2017-2018-2019). Vídeo, 15:48 min. Série de fotografias (Foto: Cortesia da autora)
Aleta Valente
Desde 2015, Aleta Valente (1986) vem chacoalhando as redes sociais com seu perfil no Instagram. Sob a alcunha de @ex_miss_febem, a artista e atriz de Bangu, bairro de origem operária da Zona Oeste carioca, veiculava fotos, muitas delas selfies, em que expunha sem pudores sua vida cotidiana e íntima. Por trás da obsessão diarística que compõe o feijão com arroz das redes sociais, Valente oferecia imagens que tratavam sem rodeios de sua própria condição de mulher, mãe solteira, moradora de comunidade carioca e artista às margens da elitizada cena da arte.
“Meu nome é Aleta Valente, sou artista visual, instagrammer, mãe solteira, feminista, suburbana. Ex-Miss Febem é um personagem, performer, performance, dividimos o mesmo corpo. Ex-Miss Febem nunca passou pela antiga Fundação Estadual do Bem Estar do Menor: o apelido vem da música ‘Kátia Flávia’, hit de Fausto Fawcett”, resume.
Agarrada ao celular noite e dia, Valente expôs-se de todas as formas imagináveis: vestida, seminua, na cozinha, na laje, no ônibus, na balada. Suas imagens provocadoras, em geral acompanhadas de um pequeno comentário, tratavam de modo aberto, e não raro incômodo, de temas como aborto, sexo, classe, maternidade e machismo, entre muitos outros. Em cada postagem, uma nova surpresa ou tapa na cara era dado por alguém com claro domínio dos impulsos e desejos que governam as redes sociais — uma mistura de erotismo, voyeurismo, exibicionismo, sinceridade, escracho e despudor.
O apelido cifrado e a versatilidade camaleônica com que explorava sua própria imagem — de cabelos curtos, raspados, tingidos, encaracolados — era parte do jogo de mistério e engano que estabelecia com seus seguidores. Muitas vezes era difícil saber se se tratavam de autorretratos ou ainda se era a mesma pessoa em cada imagem. O caráter polêmico das publicações também mobilizava centenas de comentários de apoio e de repúdio.
A controversa foto da artista na varanda de sua casa, de calça branca e expondo uma mancha vermelha entre as pernas abertas, obrigava a todos a encarar as dificuldades de tratar abertamente da menstruação. Retirada do Instagram da autora e publicada por outra pessoa num grupo de anti-feministas, a postagem fez com que Valente fosse objeto de um linchamento virtual sem precedentes — uma violência brutal, que quase a fez desistir da carreira.
Uma enxurrada de imagens em que exibia o próprio peito ao lado de uma fatia de pizza fez com que seu perfil do Instagram fosse bloqueado e excluído pela empresa. Mas Valente não desistiu. Felizmente, vieram @ex_miss_ febem2, @ex_miss_febem3.
Da profusão de selfies e paus de selfie, Valente passou aos memes, que faziam comentários espirituosos sobre o noticiário, o mundo da arte ou a vida comezinha. Mais recentemente, tem veiculado imagens e vídeos de terceiros, numa espécie de curadoria digital da intimidade alheia, à qual adiciona seu talento afiado capaz de resumir em uma imagem e poucas palavras um tratado completo de sociologia comportamental.
Poucos artistas contemporâneos entenderam tão bem as novas formas de circulação e produção de imagens. A inteligência visual, a capacidade de síntese e a pouca cerimônia com que Aleta Valente trata as imagens, em alta ou baixa resolução, é algo que nenhum diploma de artes seria capaz de oferecer. Por trás da aparência de bruta flor está uma artista que usa sua obsessão e intuição para manipular com maestria as imagens e seus sentidos, o espectador e suas expectativas.
Aline Motta
Nascida em Niterói, Aline Motta acumulou vasta experiência antes de se entregar inteiramente à carreira de artista. Formada em comunicação social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pós-graduada em cinema pela New School University, de Nova York, Motta trabalhou anos como continuísta em cinema.
A maturidade e a vivência em outras áreas são visíveis em sua produção atual, que mescla fotografia, vídeo e outras mídias para narrar histórias familiares, em geral marcadas por episódios de violência e opressão.
Motta faz parte da ascendente geração de artistas negros que têm renovado as paredes modorrentas da arte contemporânea, sem medo de enfrentar o sistema para se fazer ouvir. Seus trabalhos costumam traçar pontes entre o passado e o presente para mostrar como certas questões históricas têm se perpetuado ao longo do tempo, encapsuladas ou não.
Os trabalhos mais recentes da artista partem da vontade de entender sua própria origem. Para isso, ela tem mergulhado profundamente na história de sua família, e é desse mergulho profundo e específico que extrai seus temas mais gerais, como os ecos atuais da escravidão, do racismo ou do machismo.
Na videoinstalação “Pontes sobre abismos” (2017), Motta investiga a genealogia de sua família instigada pela revelação de um segredo guardado por sua avó Doralice. Na tentativa de esclarecer a história, embarca num périplo que inclui Rio de Janeiro e Minas Gerais, mas também Portugal e Serra Leoa, recolhendo relatos orais, documentos de arquivos públicos e privados e até exames de DNA. Com ela, viaja a foto de sua avó, que ressurge como memória assombrada nas imagens gravadas durante o percurso.
A investigação sobre as raízes da família é também o mote de “Filha natural” (2018-2019), obra em que Motta parte em busca da história de sua tataravó Francisca, trabalhadora escravizada numa fazenda de café da região de Vassouras, no Rio de Janeiro. Novamente, história oral, documentos, livros, cadernos, fotografias novas e antigas tentam dar conta de uma narrativa incompleta, cheia de lacunas intransponíveis. O atestado de óbito de uma homônima de Francisca e fotografias de Revert Henrique Klumb estão entre as poucas pistas disponíveis.
É justamente pelas lacunas que Motta tece sua complexa teia de sentidos e mostra como sua própria história pode conter temas universais e atemporais.
“O que gostaria que a minha obra reverberasse é que todos estão implicados, que todos deveriam fazer parte da luta antirracista, não apenas os negros. O que descobri sobre mim é que, para trabalhar questões coletivas, precisei fazer um mergulho muito pessoal e íntimo. Ainda que sentisse medo, deveria continuar. Ainda que não soubesse nem como começar, não poderia me dar ao luxo de desistir. Apesar de a arte ter um alcance restrito, ainda é uma forma de resistir e dizer que não nos esquecemos”, resume.
Camila Falcão
Camila Falcão formou-se em artes plásticas pela Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), em São Paulo, e trabalhou como assistente de fotógrafos importantes, como Bob Wolfenson e David Armstrong. Mas foi durante o período de trabalho voluntário no Centro de Referência e Defesa da Diversidade (CRD), em 2016, que encontrou um tema de predileção: as travestis e mulheres trans.
“Comecei a rever o padrão estético totalmente equivocado que construí sobre elas”, confessa Falcão, em mostra sincera de como um projeto artístico é também um processo de aprendizado e transformação. Desde então, ela se dedica a produzir retratos sensíveis e delicados, que desfazem as rígidas categorias em que costumamos enquadrar essas pessoas. Também oferecem uma visão mais matizada do que consideramos sensual ou feminino.
Conquistar a confiança dessas mulheres não foi processo fácil. Falcão encontrou as primeiras retratadas por meio do CRD, depois por meio de amigos e das redes sociais. Os primeiros convites para sessões de fotos ainda enfrentaram resistência, mas aos poucos o próprio resultado das sessões se transformou em cartão de visita para atrair novas modelos.
Os retratos costumam ser feitos na casa das retratadas ou na casa de uma amiga usando apenas o cenário e a luz disponíveis, o que lhes confere certa naturalidade. Um cômodo apertado, um colchão surrado ou mesmo uma pequena janela são elementos que reforçam o clima de intimidade e cumplicidade. Pose e figurino também são decididos em conjunto.
Ela fotografa mulheres de todos os tipos, ampliando o repertório de padrões físicos e visuais que estamos habituados a reconhecer. Fotografias de travestis e mulheres trans sempre rechearam as páginas de reportagens policiais ou carnavalescas. Ao oferecer-lhes um retrato comum, íntimo e até banal, Falcão desfaz a barreira social e visual que insiste em tratar essas mulheres como cidadãs de segunda classe.
Desde 2017, por exemplo, Falcão acompanha mensalmente o cotidiano de Onika. A série de retratos é um registro raro e menos estereotipado dos avanços e percalços de uma pessoa em processo de transição de gênero, muitas vezes vista apenas como uma figura marginal e sexualizada, ou, pior ainda, associada à prostituição e à violência.
Em seu projeto mais recente, Falcão vem documentando pessoas que não se identificam com os padrões masculinos ou femininos. Essas fotografias derrubam as barreiras binárias e ampliam ainda mais nosso repertório, além de dar um passo importante na jornada de autoaceitação dessa comunidade.
O texto “Mulheres, avante: a renovação feminina na fotografia contemporânea” integra a segunda edição da revista Traço—, lançada por ocasião da 13ª edição da SP-Foto.
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