Editorial
SP-Arte/Foto/2018 – German Lorca - SP-Arte
Aos 96 anos, o fotógrafo encarou o desafio de reproduzir imagens icônicas, criadas por ele em São Paulo há quase setenta anos. Veja aqui o resultado deste ensaio inédito!
19 set 2018, 16h09
pOR EDER CHIODETTO
German Lorca é um dos ícones da evolução que a fotografia brasileira teve a partir dos anos 1940. Nesse período, que a historiografia passou a determinar como o “modernismo tardio”, a linguagem fotográfica experimentaria transformações muito significativas através de artistas como ele, Geraldo de Barros e Thomaz Farkas, entre poucos outros.
Lorca nasceu em 1922, cem anos após a Independência do Brasil e cem dias depois da Semana de Arte Moderna, da qual a fotografia não participou como expressão artística. Seria preciso cerca de 25 anos para que, no final da década de 1940, a geração de Lorca alçasse a fotografia brasileira ao status de arte, como preconizava Oswald de Andrade no Manifesto Pau-Brasil, inspirado pelo Manifesto Futurista de Filippo Tommaso Marinetti. Oswald conclama os artistas a pensar o mundo e a representação no campo da arte a partir das “novas formas da indústria, da viação, da aviação. Postes. Gasômetros Rails. Laboratórios e oficinas técnicas. Vozes e tics de fios e ondas e fulgurações. Estrelas familiarizadas com negativos fotográficos. O correspondente da surpresa física em arte”.
Se até a metade da década de 1940 os “negativos fotográficos” permaneciam focados na objetividade do registro e da documentação e não na potência lúdica contida na irradiação da luz das estrelas, Lorca e seus amigos reunidos em torno do Foto Cine Clube Bandeirante se colocaram o desafio de renovar as possibilidades do jogo fotográfico.
Tal renovação visava ao mesmo tempo criar uma linguagem capaz de representar de forma mais enfática a paisagem urbana de São Paulo, que se modernizava com arranha-céus, grandes avenidas e o avanço significativo do seu parque industrial, bem como incorporar os conceitos que dadaístas e surrealistas haviam desenhado nas décadas anteriores, na Europa. Conceitos esses que Rubens Teixeira Scavone, fotógrafo e crítico próximo ao grupo de Lorca, sintetizou assim num boletim do Foto Cine Clube: “A realidade, não raro, se torna mero pretexto, veículo comunicativo, passaporte de tudo onde exista parcela enclausurada de beleza”.
Perceber a fotografia como uma linguagem que não precisaria se limitar a denunciar ou referendar o espaço-tempo poderia, enfim, libertá-la para pesquisar novas possibilidades semânticas. Assim pensavam e agiam esses modernistas tardios.
E foi dessa forma que Lorca criou registros poéticos e ao mesmo tempo históricos da cidade de São Paulo. Nascido no bairro do Brás, parte de seu trabalho autoral foi o de registrar as mudanças da paisagem urbana da cidade. No último mês de maio, após completar 96 anos, convidamos Lorca a retornar a alguns lugares em que criou imagens icônicas da cidade. Como prova de que a passagem do tempo não lhe causa espanto, ele se colocou a incumbência de tentar fotografar, em 2018, a cidade como ele a percebia há quase setenta anos. O resultado, publicado a seguir, nos reconecta com a vertigem conceitual e poética da obra de Lorca. Sete décadas depois, o artista e sua cidade se reencontram para celebrar a potência lírica e atemporal dos registros fotográficos. O gesto político de um artista como Lorca é o de nos fazer ver as “parcelas enclausuradas de beleza” onde não imaginávamos que elas estivessem repousando.
Texto publicado na segunda edição da Revista SP-Arte, em agosto de 2018.
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Eder Chiodetto é curador especializado em fotografia
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, quem o acompanhou em ação sabe por que ele é um ícone
por bruno martins
Há 52 anos, German Lorca abria seu estúdio na Vila Mariana, onde até hoje trabalha ao lado dos filhos J. Henrique e Fred Lorca. Foi ali que o fotógrafo, aos 96, recebeu a equipe da SP-Arte para discutir o projeto. Diante de tanta energia com que nos acolheu, seria um desperdício de talento homenagear German destacando apenas o que produziu no passado. Eder Chiodetto, curador e autor de um livro sobre o fotógrafo, além de seu amigo de longa data, foi quem lançou a proposta de voltar ao local de fotos icônicas e registrar como seriam esses mesmos ângulos em 2018. Dentre tantas imagens, a escolha de apenas cinco privilegiou as nuances da cidade de São Paulo, protagonista absoluta da obra de Lorca.
Na primeira saída, o encontro com German foi na Marginal Pinheiros. A intenção era reproduzir o registro feito em 1970, no terraço de um arranha-céu com vista de 360º da cidade. Foi a primeira vez que ele voltou ao local após a fotografia original. Passados 44 anos, os trinta degraus finais de acesso ao terraço não intimidaram o fotógrafo que, à frente de toda a equipe, subiu num ritmo de dar inveja. A transformação radical de São Paulo vista dali de cima impressiona. German conta que a fotografia que contribuiu para eternizar as sinuosas curvas do rio Pinheiros foi fruto de um acaso, já que ele estava ali para fazer uma foto do antigo prédio da Kodak, hoje encoberto por um paredão de construções espelhadas. Enquanto grande parte da equipe fica absorta e estática pela grandiosidade da paisagem, o fotógrafo retira o equipamento das bolsas, encontra imediatamente o ângulo onde se posicionou no passado e dá início ao ritual que domina como ninguém. Não há pausa para nostalgia, ele quer trabalhar. Foram algumas horas até que a luminosidade possibilitasse a reprodução da imagem original. Nesse intervalo, a cadeira colocada à disposição de German permaneceu intocada. Contando com o auxílio inseparável do filho J. Henrique Lorca, que herdou do pai o amor pela fotografia, ele clica, reposiciona, revê graus de abertura e testa incansavelmente até se dar por satisfeito. O que não é fácil.
Poucos dias depois, estávamos novamente na companhia dele. Desta vez num final de tarde de domingo, no Largo São Francisco, onde há 64 anos ele mirou sua lente para o prédio neoclássico da Faculdade de Direito, da Universidade de São Paulo. A construção continua igual à da foto de 1954, mas a batida eletrônica de uma festa do outro lado da calçada, onde a média de idade provavelmente não chegaria a um quarto da de Lorca, nos relembra que os tempos são outros. Indiferente à música e ao que acontecia no entorno, ele se posiciona, concentrado, calculando milimetricamente o ângulo exato para o clique perfeito.
Em seguida, nos dirigimos à rua Dr. Falcão Filho, a poucas quadras do Largo São Francisco. A intenção era reproduzir outra foto feita no mesmo ano, 1954. À medida que anoitecia no Centro de São Paulo, a sensação de insegurança, pelo menos da equipe, aumentava. Nada que abalasse Lorca, aparentemente despreocupado em estar com seu equipamento em um canto escuro da rua Líbero Badaró. Questionado sobre a segurança nas décadas anteriores, quando circulava pela cidade sempre acompanhado de sua câmera, ele apenas ri, como quem diz: “Você não conhece a São Paulo onde já vivi”. Refazer essa foto foi uma das tarefas mais difíceis do ensaio, porque as mudanças da região alteraram não apenas a vista, mas o próprio local onde ele se posicionou na época. Um prédio novo e uma banca de revistas dificultaram o ângulo. Para ficar ainda mais parecida com a original só faltou o veículo solitário no centro do registro antigo, que, neste domingo, German revelou ser dele mesmo.
No último dia do ensaio, nossa tarefa era árdua. Tínhamos poucas horas para revisitar o Ibirapuera e a Mooca, em uma manhã agitada, horas antes de um jogo do Brasil na Copa do Mundo. Começamos pela Oca, diante da qual, em 1954, a avó de German e seu filho mais velho, Fred, então um menino com pouco mais de três anos, serviram como modelos.
A imagem singela da mulher de costas, de mãos dadas com a criança, que se impõe às formas grandiosas de Niemeyer é uma das mais famosas do artista. Na nova versão, a sobrinha do fotógrafo e seu filho reviveram os personagens, num parque muito diferente do daquela época, onde cortadores de grama e praticantes de crossfit teimavam em invadir o ângulo da foto. Quem vê a imagem não imagina o que acontecia à volta.
Para encerrar os trabalhos, seguimos para a Mooca. O tradicional bairro paulistano, um dos símbolos da imigração italiana na cidade, foi o cenário da emblemática fotografia Apartamentos, de 1952. Quando fez a foto, German vinha a pé do Brás, onde nasceu e passou parte da vida, à procura de imagens que o inspirassem. Ali, diante do conjunto de prédios simples, uma cena chamou sua atenção: dois meninos jogavam “bafo” (jogo de figurinhas) distraidamente. O momento, que passaria despercebido por todos, ganhou no olhar de German ares poéticos. A simplicidade do momento, a inocência da infância e as sombras que, geometricamente, compunham um desenho ousado na arquitetura banal da construção viraram obra de arte. O reencontro de German com o local, descaracterizado por sucessivas reformas ao longo dos anos, teve a participação especial dos seus filhos. Sob as orientações precisas do pai, exigente como cabe a um diretor de cena, Fred e Henrique seguiam à risca cada movimento sugerido.
As perspectivas novas, os ângulos alternativos forçados pelas mudanças do tempo e o olhar aguçado do artista são compartilhados com o público nas imagens. A grandiosidade e simplicidade do homem por trás das lentes foi vista de perto pela equipe da SP-Arte ao longo deste trabalho.
Texto publicado na segunda edição da Revista SP-Arte, em agosto de 2018.
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Bruno Martins é jornalista e editor da Revista SP-Arte
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