Editorial
Opinion
Giselle Beiguelman subverte memória de monumentos em mostra em São Paulo
Nathalia Lavigne
15 Aug 2019, 12:05 pm
As pedras de antigos pedestais empilhadas no meio das escadarias do Beco do Pinto, no centro de São Paulo, parecem nos receber com uma certa dose de enigma. A começar pelas funções mais básicas associadas a um monumento: que fato histórico aquele improvável conjunto de arqueologias efêmeras e origem indefinida estaria celebrando? O que tal combinação de fragmentos quase aleatórios pretende guardar para a posteridade?
A estratégia usada pela artista e professora da FAU-USP Giselle Beiguelman nas duas intervenções que apresenta no Museu da Cidade – “Monumento nenhum” e “Chacina da luz”, no Solar da Marquesa –, parte de alguns gestos subversivos para tratar do apagamento da memória no espaço público. Na primeira, cria uma celebração ao nada e a ninguém com os pedestais encontrados no depósito do Departamento do Patrimônio Histórico (DPH). Na segunda, exibe oito esculturas neoclássicas derrubadas em uma depredação no Jardim da Luz, reproduzindo-as deitadas no chão tal como foram encontradas – um ready made do esquecimento, como chama. Junto com as bases que nada sustentam da primeira instalação, as peças tombadas, sem a imponência da verticalidade, neutralizam o princípio do monumento – a nada celebram e tampouco pretendem perpetuar por muito tempo.
Um intervalo de três anos separa as intervenções de outro projeto semelhante realizado pela artista com esculturas públicas de São Paulo. Em “Memória da amnésia“, ela mostrou no Arquivo Histórico Municipal um conjunto de dez obras nessa mesma configuração horizontal, traçando também um itinerário desses “monumentos nômades” ao longo de quase cem anos. Como conta no livro “Memória da amnésia: Políticas do esquecimento” (Edições Sesc), que lança este mês, as razões das mudanças de lugar de obras públicas que marcaram a história da cidade foram várias – de replanejamentos urbanos a desavenças ideológicas com novos governos. O fim do trajeto era quase sempre o mesmo: descartadas em depósitos onde é impossível reconhecer as marcas de sua história, condenadas ao esquecimento.
Ao retirá-las desse lugar de invisibilidade, trazendo-as para o espaço expositivo de um arquivo, havia uma intenção de subverter a relação entre monumento e documento e suas respectivas formas de memória. Tombadas no chão, as esculturas assumem a horizontalidade dos documentos – e podem ser lidas, finalmente, de forma visível, relativizando os contextos aos quais estiveram inseridas.
Esse é um dos aspectos que mais ganhou importância no atual projeto no Museu da Cidade. Se naquele primeiro momento Beiguelman parecia reforçar a discussão sobre a aleatoriedade que marcou tanto a produção dessas esculturas públicas quanto seu descarte e deslocamento, dessa vez a relação das peças com o ato de dar visibilidade ao documento histórico se torna mais forte. A terceira obra da exposição, inclusive, reforça essa ideia quase como um manifesto: um busto encapuzado é colocado sobre um arquivo com o material de pesquisa da exposição. Mais importante do que encontrar os antigos postais onde se veem as esculturas do Parque da Luz ainda de pé, no entanto, é a instrução que se lê na parede em letras garrafais, para deixar as gavetas abertas.
O recado é sutil, mas o entendimento da mensagem é praticamente instantâneo. Nos últimos três anos, a discussão sobre memória trazida por Beiguelman com “Memória da amnésia” foi ganhando um alcance cada vez maior, ainda que por razões soturnas. Desde então, um prédio de 24 andares desabou no centro de São Paulo e o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, perdeu sua coleção de 20 milhões de itens – patrimônio de duzentos anos transformado em cinzas em poucas horas. Um mês depois de cada tragédia, ambas causadas por um incêndio, pouco ainda se falava no assunto. Este ano, em especial, a urgência do tema parece crescer de forma mais assustadora cada vez que um fato histórico é negado por um chefe de Estado. E a estratégia de apagamento da memória parece funcionar melhor com a negação de um fato após o outro sucessivamente, sem dar chance para nenhum ser reafirmado por muito tempo.
A pilha de pedestais sob o portal do Beco do Pinto e o aviso para deixar os arquivos abertos são uma ótima metáfora desse momento. As duas obras parecem atuar de forma complementar: a primeira instalação ilustra a sucessão de promessas e discursos estancados na forma de pedras genéricas cuja origem não se reconhece, enquanto a segunda apresenta uma visão talvez mais otimista. Parece avisar que enquanto ainda há arquivos e ainda estão abertos, deve-se olhar mais para eles em busca de uma alternativa ao poder verticalizado dos monumentos.
Outro dado fundamental da exposição é o lugar onde está inserida na história da São Paulo – a poucos metros de seu sítio de fundação, local marcado por memórias contraditórias e pouco conhecidas. Enquanto o Beco do Pinto é um dos poucos resquícios da arquitetura colonial na cidade, o vizinho Pátio do Colégio é um exemplo clássico de memórias forjadas como palimpsesto tão comuns na paisagem paulistana. Seu prédio é uma réplica construída entre os anos 1950 e 1970 do que era o antigo casarão colonial, descaracterizado até ser demolido, em 1953. Uma história não muito diferente dos monumentos nômades que correm a cidade até acabar no fundo de um depósito, ou das esculturas públicas vandalizadas ou roubadas.
É nesse sentido que o ato de subversão da memória promovido pela artista ganha força no atual momento. Apesar da relação crítica apontada sobre as políticas de esquecimento em diversas esferas da sociedade, as intervenções de Giselle Beiguelman e o interesse gerado pela exposição indicam uma possibilidade otimista de reconciliação da cidade com uma história marcada por tantas lacunas e caminhos interrompidos.
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