Editorial
Feature
Ratos e Urubus encontram novos pares
Thais Rivitti
21 Feb 2020, 2:14 pm
Está em cartaz, no Centro Cultural São Paulo, até o dia 1 de março, a exposição “Ratos e Urubus” organizada por mim e pelo crítico de arte Cadu Riccioppo e idealizada pela colecionadora Alayde Alves. A mostra propõe um novo olhar para o desfile da Escola de samba Beija-flor de Nilópolis de 1989, cujo carnavalesco responsável foi Joãosinho Trinta. A ideia é vê-lo como um acontecimento estético cujas questões levantadas, trinta anos depois, ainda reverberam na produção da arte contemporânea.
Trata-se do desfile em que o carro abre-alas, uma alegoria do Cristo-mendigo¹, aparece coberto por sacos de lixo após ter sido censurado a pedido da Arquidiocese do Rio de Janeiro. Além de coberto, o Cristo surgia carregando uma faixa com os dizeres: “Mesmo proibido, olhai por nós”. A imagem desse desfile passando pela Sapucaí mostra o carro censurado rodeado pelos componentes da ala dos mendigos e precedido pela comissão de frente dirigida pelo diretor de teatro Amir Haddad. Haddad, naquele tempo, já havia fundado o grupo “Tá na Rua”, em atividade até hoje, que, num gesto artístico disruptivo, abole o palco – e a consequente divisão estanque entre plateia e atores, entre espaço da vida e espaço cênico – de suas práticas e toma a rua como local para suas ações. A exposição busca trazer o desfile de várias formas, registros de vídeo, fotos e desenhos, além de um depoimento do próprio Haddad.
É impressionante a atualidade dos temas mobilizados por Ratos e urubus larguem minha fantasia. A censura (e o controle ideológico da arte baseado em critérios religiosos e morais), a precarização das condições de vida da população, o desmanche das cidades: lixo, poluição e degradação do espaço público. Durante a pesquisa e preparação da exposição, ficou claro que esse desfile entrou no imaginário dos brasileiros e foi capaz de permanecer vivo durante trinta anos. Das pessoas envolvidas na mostra, de artistas a prestadores de serviços diversos, todos se lembravam do desfile, alguns se lembravam de trechos do samba enredo e muitos do debate que ele foi capaz de gerar.
O desfile censurado ganhou as páginas de jornais e revistas e virou destaque nos noticiários da TV. O gesto artístico de Joãosinho Trinta, de colocar a censura em evidência e os excluídos como protagonistas: “mendigos, desocupados, pivetes, meretrizes, profetas, esfomeados, povo de rua”, dizia um cartaz gigante que vinha logo atrás do carro abre-alas. Escancarar a hipocrisia dos discursos oficiais, de certa forma, tornou-se uma alegoria contundente do Brasil do fim dos anos 80. Talvez mais que qualquer obra de arte tradicional, exibida em museus nesse período, o desfile tenha sido capaz de despertar um imenso interesse de não especialistas – críticos de arte, artistas e pessoas do meio – e tenha conseguido envolver a população num debate a um só tempo estético e político.
O termo “mendigo”, não é mais utilizado hoje, sendo substituído pela expressão mais precisa e menos preconceituosa “população em situação de rua”. Porém, como esse era o nome da ala e da alegoria, continuo a empregá-lo nesse texto.
Foi na Galeria Estação que tive a oportunidade de conhecer e organizar uma exposição sobre o trabalho excepcional do artista Chico Tabibuia, em 2019.
Seria preciso deixar claro que os desfiles da Escolas de samba não eram o modelo de arte almejada pelos CPCs. Eles apostavam numa arte mais abertamente engajada e comprometida com a transformação social. Além disso, quando se pensa no caráter popular e autêntico dos desfiles das Escolas, é necessário considerar o financiamento, cada vez mais ligado a grandes empresas e corporações, bem como a transmissão pelas grandes emissoras que convertem os desfiles das Escolas em programação televisiva. Mas esses aspectos fogem ao escopo do presente artigo.
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=2pNi0D2ByBk> 26’15’’. Acesso em: 17 fev. 2020.
Aprendendo com o carnaval
A mim pareceu produtivo perguntar se é possível considerar esse desfile como um acontecimento que logra atingir algo frequentemente ambicionado pela prática e o discurso artístico contemporâneo, a saber, a possibilidade da arte romper o cerco dos iniciados e chegar além do circuito já estabelecido.
No início dos anos 2000, fundamos – eu e colegas críticos de arte – a revista Número. Era uma publicação temática e, logo na primeira edição, nos víamos às voltas com a dificuldade em nomear aquilo que gostaríamos de tematizar na revista Um. O circuito paralelo, a contracultura, o underground, o lado B, o alternativo, o flip-flop, o anti-institucional, o off, o independente, o marginal, o tático. No editorial dizíamos: “o exercício da crítica de arte é vital para que a produção contemporânea não seja confinada a um nicho de especialistas”. Coerentemente, a Um dedicava-se à questão do circuito alternativo pois notávamos um “aumento e amadurecimento de ações voltadas para a apropriação do espaço urbano como local de arte”, entre outras constatações. Havia nessas afirmações um desejo de expandir os limites e o alcance da arte.
Num momento seguinte, quando escrevi meu mestrado, procurei estudar a obra de Cildo Meireles observando de perto como ela operava com os conceitos de circulação e circuito. Analisando obras como Inserções em Circuitos Ideológicos (ICI), de 1970, pude entender como boa parte da produção de arte brasileira de fins de 1960 e 1970 desejava romper com o circuito oficial da arte e expandir o potencial político – no sentido amplo do termo – das ações artísticas. O ICI: Projeto Coca-Cola, de Cildo, por exemplo, consistia em inserir mensagens nos vasilhames retornáveis de refrigerante e convidar a todos a fazerem o mesmo. A obra pretendia estar na lanchonete, na mercearia, no bar da esquina. Interpelava o outro – e o convidava a participar ativamente da obra – sem que esse outro precisasse participar do mundo da arte.
Seguindo um pouco adiante, em 2010, eu entrei para a gestão de um espaço de arte, o Ateliê397, que faz parte do circuito independente. Passei, então, não apenas a analisar essa expansão/implosão do circuito, mas a atuar intensamente nessas margens de forma a ampliar a ideia de que a arte deveria tornar-se pública. Nem só aquela que interessa ao mercado, nem só a que tem espaço em museus. Há uma outra arte (de artistas mais jovens, com linguagens mais experimentais, com uma filiação mais crítica, etc.) que precisa ter espaço.
Foi dentro do Ateliê397 que eu vi, junto com um novo grupo de colegas, a arte popular ganhar importância dentro das discussões de arte do circuito, digamos, oficial. Refiro-me aqui, para citar apenas alguns exemplos, à exposições como as de Agostinho Batista de Freitas (2016) e de Djanira (2019) no MASP, à mostra panorâmica do Véio no Itau Cultural (2019), às exposições realizadas sistematicamente pela Galeria Estação desde 2002². Há um certo tipo de arte popular que finalmente passa a ter seu espaço, sua visibilidade e seu valor garantidos dentro do grande sistema. Embora seja um motivo a comemorar, ainda há muito que fica de fora.
Num projeto que discutia arte popular, no Ateliê397, senti a necessidade de voltar aos escritos do CPC – Centro Popular de Cultura – fundado nos anos 60, que teve papel importante de resistência durante a ditadura militar. Essa arte popular defendida pelos CPCs, estava ligada às condições materiais de sua produção e era, por suposto, engajada. A ação do artista dentro da cultura popular deveria acontecer como criação e como crítica dos valores vigentes. O artista não deveria trabalhar para as massas, mas trabalhar com as massas. Embora os escritos dos CPCs, hoje, soem muito programáticos, eles repõem a questão do circuito da arte e da necessidade de expandi-lo em termos mais políticos. Uma arte que não circule como mercadoria (de luxo), mas que possa ser partilhada por todos. Que seja feita com os recursos materiais acessíveis e possua uma linguagem também amplamente compreensível.
Quando surge o convite para pensar sobre o trabalho de Joãosinho Trinta, todas essas questões estavam muito presentes e foi inevitável refletir sobre como os desfiles das Escolas de samba são manifestações feitas coletivamente por uma comunidade local. E também que envolvem diversas artes como a dança, a música, a moda, o teatro, as artes plásticas, num alto grau de complexidade, mas operando com materiais e linguagens acessíveis e partilhadas por todos³. Mas, afinal, a que circuito pertencem os desfiles das Escolas? Onde situá-los no campo da cultura?
Numa entrevista, o carnavalesco da Estação Primeira da Mangueira, Leandro Vieira afirmou: “A sociedade brasileira, por preconceito, por ignorância, por racismo, tem dificuldade de admitir que o desfile de escola de samba é a manifestação artística e cultural mais importante deste país. Como pode ser que uma atividade feita por pretos e pobres tenha alcançado esse status? Então é preciso negar o desfile de Escola de samba como lugar sério, um lugar para debates. É preciso afirmar que é um lugar para pessoas de baixa categoria, que não é arte, é um lugar para cafonismos, para temas menores”⁴.
O mesmo Leandro Vieira, que estava à frente da Mangueira em 2019 quando ela ganhou o carnaval com um desfile altamente crítico e politizado, vai levar a vida de Jesus para a avenida em 2020. Em suas palavras, um Jesus da Mangueira, periférico, humano, que andou com prostitutas e doentes. A polêmica já começou, com declarações de insatisfação aqui e ali. E, novamente, ouvimos os sons de Ratos e urubus em torno da sagrada figura de Cristo, em torno da sagrada ideia de arte.
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