Editorial
Interview
Raphael Fonseca: O balanço das redes
SP–Arte
1 Jul 2019, 3:55 pm
A mostra “Vaivém“, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo até 29 de julho, descortina histórias e valores contidos em um dos bens culturais mais populares do Brasil: as redes de dormir. A pesquisa do curador Raphael Fonseca investiga a rede como um símbolo da nossa formação sociocultural ainda em disputa, sendo associada a determinadas iconografias e identidades brasileiras conforme o período histórico e os agentes dessas representações.
Conversamos com o pesquisador, que também é curador do MAC Niterói, sobre alguns dos temas que se sobressaem na exposição, como as reflexões sobre estereótipos nacionais, a produção de artistas indígenas contemporâneos e as relações entre escultura e mobiliário. Confira!
SP-Arte: A história da exposição começa com uma tese de doutorado que você realizou na Uerj. Ao iniciar a pesquisa, quais foram as primeiras perguntas que lhe ocorreram sobre as redes e que tipo de disciplinas e saberes se mostraram necessários para compor o estudo?
Raphael Fonseca: O começo da pesquisa de doutorado foi bem peculiar. Eu estava interessado na relação entre a morte e as artes visuais no Brasil e, num segundo momento, comecei a me interessar sobre as possíveis representações da preguiça no País. Daí, levantando imagens, me deparei com frequência com as redes de dormir, por isso veio a pergunta: “por que não fazer uma tese sobre as iconografias das redes?”
A partir desse momento, ficou bem claro que a pesquisa deveria articular diferentes áreas do conhecimento dentro das ciências humanas. As imagens eram as protagonistas da pesquisa e minha área de formação e estudo é a história da arte, mas sempre em diálogo direto com estudiosos da história, antropologia, sociologia e, em menor instância, da literatura. Minha pergunta central foi: quando, como e por quem foram inventadas as associações entre as redes e o Brasil, a brasilidade e os “brasileiros”? Tratava-se de uma pesquisa de análise do discurso e de invenção e condensação de certas noções do senso comum sobre nossa identidade nacional. Tratou-se desde o início de estranhar o óbvio e problematizar os clichês e estereótipos.
SP-Arte: Em algum momento do percurso expositivo, fala-se da importância de desnaturalizar a relação entre objeto, regionalismo e identidade. Neste sentido, você poderia apontar algum exemplo de como esta reflexão crítica sobre estereótipos aparece na mostra?
RF: Quando pensamos em um país que tem a dimensão continental do Brasil – e, claro, poderíamos pensar nos Estados Unidos e na Rússia como exemplos afins – as relações entre geografia e construção identitária são constantes. Desde o século XIX, pelo menos, são enxergadas essas tentativas de associar ecossistemas do nosso território com comportamentos, corpos e culturas. Todo estereótipo é uma invenção que observa, exagera e distorce algo extraído do real, isso quando não meramente inventa e tenta plasmar em imagens e discursos. Como exemplo rápido, gosto de pensar na figura do Zé Carioca. Esse personagem criado pelo Estúdio Walt Disney no século XX foi muito importante para se construir uma imagem preconceituosa do que seria não apenas o “carioca” – muito pautado na figura estereotipada do “malandro” – , mas também, numa perspectiva internacional, um espelho do que seria o “brasileiro”. O personagem tenta insistentemente viver a vida por meio do prazer, da recusa ao trabalho e do privilégio de estar deitado em sua rede – não à toa, no processo da pesquisa, encontrei mais de quarenta capas da história em quadrinhos com a presença das redes. Na exposição estão apenas algumas delas.
Podemos ampliar essa noção de estereótipo também para os discursos em torno da região Nordeste e, para além disso, observar como a relação entre rede e Brasil também se dá de maneira fictícia. É claro que o objeto estava disseminado na região desde antes da invasão europeia no século XVI e, posteriormente a ela, apenas foi perpetuado, mas acreditar que “todo brasileiro deita na rede” também é uma grande construção discursiva que injeta uma camada de crença no senso comum que me interessa profundamente. No lugar de batermos nessa tecla e seguirmos perpetuando clichês tropicais, “Vaivém” está mais interessada em dissecar essa relação e, cirurgicamente, pensar junto ao público sobre as origens dos estereótipos em torno do Brasil.
SP-Arte: Um dos pontos-chave da mostra é a representatividade de artistas indígenas contemporâneos. Você poderia contar que tipo de convite foi feito a estes artistas e qual a importância de suas obras no contexto de “Vaivém”?
RF: Uma vez que as redes de dormir são uma tecnologia ameríndia, nada mais justo que a exposição contasse com uma participação representativa de artistas que contribuíssem com esse lugar de fala no projeto. Fizemos – Ludimilla Fonseca, curadora-assistente do projeto, e eu – um levantamento em torno de artistas advindos de diferentes contextos institucionais no Brasil: alguns deles circulam mais em projetos curatoriais de “arte naif”, outros tem um perfil mais acadêmico e outro grupo cada vez mais tem aparecido em exposições e circuitos que se intitulam de “arte contemporânea”. Curadores, pesquisadores e artistas foram essenciais nessa pesquisa com recomendações dos mais diversos tipos.
Foi interessante constatar que nenhum desses artistas possuía uma pesquisa tão específica sobre as redes de dormir; como o próprio Denilson Baniwa me ensinou quando visitei seu ateliê em Niterói. Talvez esse meu interesse tenha nascido justamente pelo meu olhar de alteridade em relação ao objeto. Uma vez que localizamos os artistas que julgávamos interessantes para a exposição, o convite feito foi muito aberto: “como você gostaria de contribuir com ‘Vaivém’?”, ou seja, de qual forma sua pesquisa poderia estar ali presente? Isso resultou em uma série de obras comissionadas em mídias tão diferentes como o vídeo, a pintura e o som. Para mim é essencial dar a liberdade de criação para qualquer artista com quem trabalho; não gosto muito da ideia de apontar para uma página do portfólio e escolher algo. O mesmo processo se deu aqui com respeito, claro, às nossas restrições de espaço, tempo de produção e orçamento.
Foi muito importante aprendermos com um modo de fazer como o do Denilson Baniwa, que optou por se apropriar de algumas imagens europeias que estavam na exposição e realizar intervenções sobre cópias das mesmas, ao passo que outra artista, a Sallisa Rosa, coletou imagens de mulheres indígenas que se fotografaram nas redes. Já a Arissana Pataxó fez um trabalho em vídeo registrando uma senhora idosa, Dona Nega, que vive em sua aldeia e que relata para a câmera as maneiras como seus antepassados produziam as redes – ou seja, talvez um trabalho mais sobre o desaparecimento de tradições do que sobre sua permanência direta. Não podemos nos esquecer também, por exemplo, das pinturas da Carmézia Emiliano, da Duhigó, do Jaider Esbell… enfim, de todos esses artistas tão interessantes e tão articulados que também compõem a rede de relações de “Vaivém”.
SP-Arte: Em que momentos da mostra a rede é mais escultura do que mobiliário? E quando que é mais mobiliário do que escultura? Aliás, existe alguma diferença entre arte e design quando se fala de rede?
RF: Acho que toda rede de dormir é um pouco dos dois – escultura e mobiliário. Aliás, qual mobiliário não é escultórico? Talvez a pergunta possa correr mais por aí. O que acho interessante perceber é que algumas obras – por exemplo, as da Maria Nepomuceno e da Aline Baiana presentes na exposição – têm o formato da rede, mas não necessariamente convidam o corpo do público para deitar em si. A relação é mais contemplativa e simbólica do que de repouso do corpo. Por outro lado, me interessa olhar as redes produzidas por diferentes associações de artesãs no Brasil e perguntar: “por que esses objetos não são vistos como obras de arte? Será devido ao seu circuito de circulação e institucionalização?”. Estranhar é preciso, assim como perceber o caráter massivo da produção de redes domésticas em contraposição à exclusividade das caras peças de design feitas por criadores que nas redes se inspiraram, como Lina Bo Bardi e Sérgio Rodrigues. É essencial entendermos que esses objetos são parentes, mas seus círculos consumidores são claramente destoantes.
SP-Arte: Além de ser uma compilação ambiciosa, a exposição procura justapor os mais de trezentos trabalhos apresentados, de materiais, épocas e comportamentos distintos. Que núcleos temáticos foram pensados para agrupar estas obras e documentos?
RF: Como nunca me interessou pensar na exposição de maneira cronológica, algo mais próximo de como estruturei a tese, “Vaivém” está pautada em tópicos específicos. Cada um deles permitiu receber obras de diferentes momentos históricos, linguagens e geografias relativas ao Brasil. Sendo o CCBB São Paulo o primeiro espaço a receber a exposição – na sequência, o projeto viaja para as unidades de Brasília, Rio de Janeiro e Belo Horizonte –, levei em consideração o fato dele ter seis andares. Do subsolo ao quarto andar, cada um desses espaços recebeu um núcleo diferente do projeto.
No subsolo temos um núcleo chamado “Resistências e permanências” que lida diretamente com a produção de arte na contemporaneidade e reúne diferentes vozes que enxergam as redes de dormir como símbolo da resistência às adversidades políticas no Brasil. Esse andar tem artistas indígenas e não-indígenas, mas sempre agentes com uma atuação política e de reivindicação da causa indígena no país. Outro dos núcleos – esse espalhado nas áreas de circulação entre o térreo e o quarto andar – gira em torno da tridimensionalidade das redes de dormir e sua potência escultórica; “A rede como escultura, a escultura como rede” é seu título.
No segundo andar do prédio, como temos duas salas mais ou menos espelhadas, estão os núcleos “Olhar para si, olhar para o outro” e “Disseminações: entre o público e o privado”. Essas duas seções apresentam obras produzidas durante a colonização do Brasil e concentram obras de artistas viajantes. Essas, por sua vez, estão sempre ladeadas a obras de artistas contemporâneos indígenas e não-indígenas, nos fazendo lembrar da latência contemporânea dessas imagens e de sua necessidade de atualização e problematização crítica no presente. A primeira das salas gira mais em torno das representações que associam as redes aos povos indígenas no Brasil, ao passo que a segunda área pensa a disseminação dessas iconografias em diversas esferas do cotidiano no país. Para além dos indígenas, o objeto foi associado à vivência doméstica, à escravidão negra no Brasil e, mais recentemente, a meios de transporte no Norte do Brasil.
Por fim, no terceiro e quarto andares do CCBB, os dois últimos núcleos: “Modernidades: espaços para a preguiça” e “Invenções do Nordeste”. O primeiro é dedicado às construções modernas das redes de dormir e sua relação com a criação de identidade nacional. É essencial nesse núcleo uma área dedicada integralmente a “Macunaíma”, livro de 1928, de autoria de Mario de Andrade e marco não apenas na literatura nacional, mas na cultura moderna. De quais formas o livro e suas referências às redes foram usadas para se imaginar um Brasil entre o moderno e o arcaico? No outro núcleo, uma série de trabalhos que nos levam a refletir sobre como a iconografia das redes foi importante para se inventar uma identidade regionalista nordestina desde o século XX. Em oposição às noções de Sudeste, intelectuais e artistas atuantes na região foram essenciais para se forjar um panteão de símbolos vistos como nordestinos, muitas vezes pautados na noção de artesanato, arte e cultura populares.
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