Editorial
Interview
Enciclopédia negra: pesquisadoras indicam personalidades
Marina Dias Teixeira
25 May 2021, 2:57 pm
Reescrever nossa história — é essa uma das grandes reivindicações do movimento negro, cuja voz ecoa cada vez mais forte e ganha os holofotes especialmente no mundo pandêmico. O projeto ambicioso da “Enciclopédia negra”, assinado por Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Moritz Schwarcz, não só cumpre a função de reescrever uma história apagada por quase cinco séculos, como promove sua representação visual. A “Enciclopédia Negra” ganha assim dois corpos, distintos e complementares: um livro que reúne 417 verbetes de 550 personalidades negras, e uma mostra, em cartaz na Pinacoteca de São Paulo, que exibe 103 trabalhos, assinados por 36 artistas afro-brasileiros.
Múltiplas são as personalidades que ganharam biografias e retratos, como contam os autores na introdução do livro: “Foram pessoas que se agarraram ao direito à liberdade; profissionais liberais que romperam com as barreiras do racismo; esportistas que desafiaram as amarras de seu tempo; mães que lutaram pela alforria de suas famílias; professoras que ensinaram seus alunos a respeito de suas origens; indivíduos que se revoltaram e organizaram insurreições; curandeiros e médicos que salvaram doentes; músicos que criaram e expandiram maneiras diferentes de se fazer cultura; ativistas que escreveram manifestos, fundaram associações e jornais; líderes religiosos que reinventaram outras Áfricas no Brasil.” Apagados por uma historiografia tradicionalmente branca, eurocêntrica e, por isso, excludente, esses personagens deixam de ser números e estatísticas para, finalmente, adquirirem singularidade e individualidade na reconstrução de seu passado de existência, resistência e reinvenção.
O critério para a escolha de personagens a serem retratados pelos artistas convidados foi a necessidade de conferir representação imagética àquelas personalidades sobre as quais não restaram imagens, “fazendo com que tenhamos, daqui para a frente, uma ‘pinacoteca negra’ e uma imaginação mais generosa e diversificada acerca da história do Brasil.”
Neste contexto, convidamos algumas pesquisadoras e pesquisadores a indicarem personagens e respectivas representações, justificando essas escolhas e a importância de um projeto tão urgente como aquele apresentado pela “Enciclopédia Negra”. Com a palavra, Amanda Carneiro, Ana Lira, Bianca Leite e Hanayrá Negreiros.
Amanda Carneiro escolheu Caetana, retratada pela artista Juliana dos Santos.
Marina Dias Teixeira : Indique uma obra do livro e conte um pouco sobre a importância de dar rosto à personagem retratada no trabalho escolhido.
Amanda Carneiro : No texto À procura dos jardins de nossas mães, Alice Walker menciona que “resposta mais verdadeira para uma questão que realmente importa pode ser encontrada muito perto de nós”. Essas palavras me remetem ao trabalho de Juliana dos Santos e a sua atitude de olhar para o passado a partir de uma questão do presente, qual seja, “os limites da representação em tempos de representatividade máxima”, como ela mesmo sugere. Com o intuito de retratar Caetana, mulher do século 19, cujo rosto nunca havia sido imaginado antes, a artista buscou em suas próprias fotografias e na de familiares as feições que conformam a figura desta escravizada que ousou dizer não. A história de Caetana tornou-se conhecida porque ela procurou o sistema judiciário para anular um casamento forçado com Custódio, também escravizado. O matrimônio foi arranjado arbitrariamente pelo escravista Luís Mariano de Tolosa, proprietário da Fazenda Rio Claro. A atitude persistente e resoluta de não aceitação de Caetana a mais essa intervenção opressora em sua autonomia, em suas escolhas e em seus desejos deixou um legado sobre a revolta contra o patriarcado e a escravidão. Em uma atitude de recusa à opressão, com base na insurgência e nos fragmentos de liberdade possíveis, diante de tantas injustiças, de ontem e de hoje, Juliana dos Santos reconstitui o rosto de Caetana, tal como as fotografias reconstituem sua memória familiar, permeada também por fragmentos, recortes e rupturas, de si e do mundo. A boca da artista reencena o não da personagem, que é reafirmado pelos olhares múltiplos e recortados de uma foto de sua tia-avó. Ambos os elementos são emoldurados pela a clitória, flor transformada em pigmento para o azul, que apodera-se da obra.
Marina Dias Teixeira : O que a realização de um projeto como a “Enciclopédia Negra” significa para você, tanto a nível pessoal, como institucional/profissional?
Amanda Carneiro : A historiografia da escravidão dedicou grande atenção a processos estruturais, estatísticas demográficas de fluxos e refluxos, reflexão em torno da formação do mundo moderno alicerçado sobre o comércio de cativos, além de processos de exploração e extração de recursos. Mas, deu também relevo às micro-histórias e a narrativas de sujeitos escravizados registrados em documentos policiais e eclesiais, não raro essas fontes foram lidas a contrapelo por pesquisadores que buscaram (e ainda buscam) compreender agências e resistências em dimensões individuais. É por meio dessas pesquisas — que constituem um forte campo no Brasil, com intelectuais dedicados e renomados — que foi permitido conhecer figuras como a de Caetana bem como as demais biografias compiladas no livro Enciclopédia Negra. O projeto torna pública pesquisas acadêmicas relevantes, que divulgam trajetórias ainda hoje bastante desconhecidas do grande público e que contribuem para uma compreensão mais ampla e complexa das inúmeras histórias que compõem a História do Brasil.
Amanda Carneiro é curadora assistente no MASP, co-editora na Revista Afterall e pesquisadora do projeto “Arte e descolonização”. Graduou-se e é mestre pela Universidade de São Paulo. Recentemente, co-organizou o catálogo e a mostra “Beatriz Milhazes: Avenida Paulista” e “Conceição dos Bugres: tudo é da natureza do mundo”.
Ana Lira escolheu Antonica, Luiza e Marcelina, retratadas pela artista Nathália Ferreira.
Marina Dias Teixeira : Indique uma obra do livro e conte um pouco sobre a importância de dar rosto à personagem retratada no trabalho escolhido.
Ana Lira : Antonica, Luiza e Marcelina receberam de presente os traços e o Afrodengo que a artista Nathália Ferreira havia feito para outro verbete, que remetia ao histórico de mulheres amancebadas — que eram perseguidas por morarem com seus companheiros fora da lógica do “casamento tradicional”. O verbete não foi incluído na edição final, mas a insurgência das três personagens e os impactos da miscigenação — evidenciado por Nathê nos diferentes tons elaborados a partir de variações das cores-base das peles negras — encontraram assentamento na trajetória de Antonica, Luiza e Marcelina, fundadoras da comunidade rural negra Campinho da Independência, localizada em Paraty, no Rio de Janeiro. A história das três é atravessada por debates relativos às suas origens, desdobramentos em seus corpos, relatos de descendências e atuações na consolidação de comunidades negras rurais que evidenciaram importantes formações quilombolas no Brasil. Embora a Enciclopédia remeta à noção de mito para dialogar sobre elas, eu entendo que a força da oralidade, da lembrança e da fabulação são códigos fundamentais para que suas narrativas nos abracem atualmente. Os mitos são parte da vibração que os ancestrais querem que permaneçam conosco e confio neles como portais de encontro com enredos que devemos acessar.
Marina Dias Teixeira : O que a realização de um projeto como a “Enciclopédia Negra” significa para você, tanto a nível pessoal, como institucional/profissional?
Ana Lira : Eu entendo este projeto como uma estratégia de circulação de conhecimento negrodescendente dentro do modelo e da subjetividade compreendida pelos circuitos remanescentes da colonização que ainda nos atravessam. Ele é um ensaio para que comunidades negras brasileiras futuramente construam uma sistematização mais ampla dentro de seus próprios códigos. Precisamos reconhecer o esforço de todes na elaboração da publicação, uma vez que, diante de tantos silenciamentos, os enredos dos nossos estão muitas vezes nos causos lembrados e recontados nas salas, cozinhas, calçadas, ônibus, caminhadas em estradas de barro, terreiros, rodoviárias, encruzilhadas, cultos, vírgulas e distorções em páginas de jornal e portais de notícias. Ouvir e compreender estas entrelinhas nem sempre é fácil — e, muitas vezes, o modus operandi colonial de contar histórias nos é ensinado durante toda a nossa trajetória acadêmica. Fazer um projeto assim é dialogar diretamente com este risco, mas compreendo a importância de fazer este esforço de mediação, como um diálogo crítico com estas formas de consolidação de conhecimento, ainda que meu desejo queira que nossas histórias circulem livres de parâmetros que sinto que ainda nos aprisionam.
Ana Lira é artista visual, fotógrafa, curadora, rádio-host, escritora e editora baseada em Recife (PE, Brasil). É especialista em teoria e crítica de cultura. Observa a (in)visibilidade como forma de poder e dedica atenção a dinâmicas envolvendo sensibilidades cotidianas. Sua prática é baseada em processos coletivos e parcerias, tendo trabalhado com eles por mais de duas décadas. Nestas iniciativas dedica-se a fortalecer práticas colaborativas de criação que observam as entrelinhas das relações de poder que afetam nosso processo de comunicação, as articulações do cotidiano e a forma como produzimos conhecimento no mundo.
Bianca Leite escolheu Rainha Marta Dos Quilombola de Iguaçu, retratada pela artista Mariana Rodrigues.
Marina Dias Teixeira : Indique uma obra do livro e conte um pouco sobre a importância de dar rosto à personagem retratada no trabalho escolhido.
Bianca Leite : Ao receber este convite da SP–Arte, pensei que seria interessante conversar com a própria artista para que ela pudesse me contar com detalhes como foi o processo de construção da imagem que resultou na pintura da Rainha Marta dos Quilombos de Iguaçu.
Mariana Rodrigues conta que recebeu seu verbete do artista e organizador do livro Jaime Lauriano, e que na noite em que o leu, sonhou com uma mulher de turbante segurando uma galinha. A partir deste sonho ela adentrou um processo de pesquisa sobre a importância e o significado da galinha, em especial a galinha-d’angola, por ser uma ave muito importante dentro das culturas de terreiros. Segundo Rodrigues, no candomblé, a galinha-d’angola simboliza a iniciação, a feitura do santo, o assentamento do orixá no orí (cabeça) — nesse sentido, é como se a pintura incorporasse a identidade da Rainha Marta dos Quilombos. A artista também ressalta a importância das cores vibrantes desta construção: o uso dos tons dourados e o amarelo ressignificam a identidade desta rainha, em cujo rosto é possível identificar algumas marcas de cicatriz, marca da violência de uma pessoa que foi escravizada e que Rodrigues fez questão de não apagar.
Marina Dias Teixeira : O que a realização de um projeto como a “Enciclopédia Negra” significa para você, tanto a nível pessoal, como institucional/profissional?
Bianca Leite : Penso que a história de vida de todas as pessoas que foram escravizadas deveriam ser narradas nas historiografias do Brasil. O livro “Enciclopédia Negra” apresenta um recorte de histórias de algumas vidas da população trazida de África para o país. Distanciando-se das narrativas coloniais que dão continuidade ao apagamento histórico da cultura afro-brasileira, ressaltando e glorificando a capítulos de exploração de terras e pessoas, o livro “Enciclopédia Negra” evidencia não somente a vida, mas os fazeres e os saberes ao longo da existência da população negra. Ao falar de
“Prática curatorial em perspectiva decolonial”, a curadora e escritora Diane Lima explica que a prática decolonial é sobre refutar padrões e valores baseados em princípios hegemônicos, romper com pré-determinações de beleza, de quem merece ser visto e consequentemente validado, concluindo que “criar em perspectiva é falar do mundo a partir de si e não falar sobre si a partir do mundo”. Nesse sentido, o livro se faz de extrema importância, pois as histórias apresentadas auto revelam e reafirmam uma identidade negra construída por artistas negros e negras, cujo ponto de partida para a representação das personalidades é afrocentrado.
Bianca Leite nasceu em 1985 em São Paulo, onde vive e trabalha. Leite é artista visual, educadora e pesquisadora lésbica e negra. Ao longo de dez anos, a produção da artista busca investigar o conceito de gênero a partir de reflexões ligadas à sexualidade da mulher. Entres as exposições das quais participou estão as coletivas “Tensões contidas”, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (São Paulo, 2018); “Diálogos e transgressões”, no Sesc Santo Amaro (São Paulo, 2017); “Entre o que nos forma e nos formata”, no Centro Cultural da Penha (São Paulo, 2015); e “Sou uma mulher de tijolos à vista”, no Condomínio Cultural (São Paulo, 2015). Desde 2020, Bianca Leite integra o Levante Nacional Trovoa — coletivo de curadoras e artistas racializadas. Em 2019, Leite torna-se artista residente no centro cultural independente Marieta, no centro de São Paulo.
Hanayrá Negreiros escolheu Catarina Cassange, retratada pela artista Panmela Castro.
Marina Dias Teixeira : Indique uma obra do livro e conte um pouco sobre a importância de dar rosto à personagem retratada no trabalho escolhido.
Hanayrá Negreiros : A minha obra escolhida foi o retrato de Catarina Cassange, mulher africana, provavelmente de origem bantu, que grávida viu na fuga a possibilidade de liberdade para si e para seu filho. É de suma importância que mulheres como Catarina tenham a possibilidade de serem retratadas, assim como também de terem as suas histórias de luta, inteligência, coragem e insurgência reconhecidas, alterando dessa maneira as amarras de imaginários coloniais que até hoje tentam apagar vivências e experiências negras. No retrato feito pela artista Panmela Castro, vemos uma mulher negra vestida com roupas claras, turbante e o famoso pano da costa, tecido de origem da costa ocidental africana que também está ligado à maternidade, pois muitas mulheres negras em Áfricas e na diáspora usavam e ainda usam esse e outros tipos de tecidos para carregar suas crianças junto ao corpo. É muito significativo que a artista tenha adicionado essa peça do vestir na pintura, algo que evidencia heranças e permanências negras e femininas.
Marina Dias Teixeira : O que a realização de um projeto como a “Enciclopédia Negra” significa para você, tanto a nível pessoal, como institucional/profissional?
Hanayrá Negreiros : Para mim significa a possibilidade de termos essas muitas histórias de experiências negras contadas, explicadas e sobretudo documentadas. Carecemos de publicações que mostrem a pluralidade negra no Brasil, as muitas histórias de luta e de insurgências. Dar nome e rosto a esses personagens é não mais deixar as vidas negras “passarem em branco”. Importante ressaltar a presença de artistas também negros que puderam participar do movimento de recontar essas histórias. Como professora, penso muito nos benefícios de uma publicação como essa nas escolas e cursos, fortalecendo uma educação antirracista.
Hanayrá Negreiros é mestra em Ciência da Religião pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e pesquisadora em moda e práticas curatoriais. Possui como principais áreas de estudo estéticas negras que se manifestam por meio do vestir, da cultura visual, religiosidades e memórias de família. Atualmente faz parte do grupo de pesquisa Indumenta — Dress and Textiles studies in Brazil, vinculado à Universidade Federal de Goiás (UFG), é membro do Núcleo de Pesquisas em Modas Africanas e Afro-diaspóricas, conselheira do Instituto Urdume, assina a coluna digital Negras Maneiras na Elle Brasil e curadora adjunta de moda no MASP.
Confira a segunda parte da matéria, com entrevistas deDeri Andrade, Guilherme Teixeira e Janaina Machado.
SP–Arte Profile
Join the SP–Arte community! We are the largest art and design fair in South America and we want you to be part of it. Create or update your profile to receive our newsletters and to have a personalized experience on our website and at our fairs.