Editorial
Além das fronteiras do eu
22 Oct 2019, 4:06 pm
POR LIVIA AZEVEDO LIMA
Como surgem e de que forma permanecem unidas as comunidades? Basta que se fale uma mesma língua e que se compartilhe um território geográfico ou é possível criar vínculos em outras bases? Na 21º Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, em cartaz no Sesc 24 de Maio até 2 de fevereiro de 2020, a ideia de comunidades imaginárias do pesquisador Benedict Anderson inspira uma reflexão sobre laços de identidade, afinidade e afetos nos dias de hoje.
É a primeira vez que o festival elege um tema para a convocatória aberta. Foram recebidos mais de 2 mil trabalhos de 105 países. A seleção final conta com 55 artistas de 28 países, sendo cinco deles convidados pelos curadores. As obras dos artistas Rosana Paulino e Thierry Oussou, que elaboram sobre as memórias coloniais no Brasil, foram comissionadas para a mostra. A mexicana Teresa Margolles, cuja pesquisa se concentra na violência contra a mulher, expõe “Priscila presente”, vídeo e instalação sobre um caso um caso de assassinato transfóbico ocorrido Brasil em 2019. De Andrea Tonacci, há cinco registros de encontros com lideranças indígenas que o cineasta realizou em vários países entre 1979 e 1980. Já Hrair Sarkissian apresenta uma série fotográfica que retrata praças de execução na Síria, em 2008, antes da eclosão dos conflitos recentes.
Além do espaço expositivo no quinto andar do Sesc 24 de Maio, a Bienal preparou publicações, cinco programas públicos de vídeos, performances, seminários, visitas guiadas e oficinas de conscientização política. Chama atenção ainda o educativo aberto à visitação no sexto andar, onde há materiais sobre os artistas e os temas recorrentes na exposição e onde é possível assistir aos vídeos exibidos em outras edições do evento, prato cheio para começar uma pesquisa ou ganhar horas preciosas de lazer.
Publicado em 1983, o livro “Comunidades imaginadas” foi amplamente traduzido, se tornando uma referência mundial. Em capítulos que mergulham em momentos históricos específicos e tecem comparações pouco óbvias entre diferentes culturas, Anderson propõe uma investigação não eurocêntrica do nacionalismo, de suas condições de possibilidade até a formação dos Estados-nação. Há um esforço em distinguir nacionalismo de racismo e fascismo e em compreender o termo em suas dimensões contraditórias, para além de seu caráter institucional. Pois ao mesmo tempo que serviu a nacionalismos oficiais – continuidades de projetos imperialistas, formas reacionárias de grupos hegemônicos se manterem no poder – o nacionalismo também inspirou sentimentos de amor e autossacrifício quase religiosos. Muitos morreram e ainda morrem pela pátria.
Segundo o autor, o nacionalismo só pôde surgir no Novo Mundo depois que certa mentalidade declinou. Faziam parte dessa forma de pensar a crença de que algumas línguas sagradas permitiam acesso privilegiado a uma verdade ontológica, o entendimento de que os monarcas estavam acima do restante da sociedade, por conta de uma escolha divina, e a coincidência entre história e cosmologia. Os elementos que teriam permitido essa mudança de mentalidade estão diretamente ligados ao surgimento e à ascensão do sistema capitalista e da burguesia, a “primeira classe a construir uma solidariedade a partir de uma base essencialmente imaginada” via capitalismo editorial, segundo Anderson. A circulação e o consumo de livros e jornais permitiu a fixação de línguas impressas e a reprodução de modos de viver entre uma comunidade letrada, que se reconhecia em novas tradições.
Mais de trinta anos separam a primeira edição do livro e a 21ª Bienal. Nesse intervalo, a lógica mercantil do capitalismo alcançou proporções globais e as tecnologias se desenvolveram a passos rápidos. Diferentemente dos rompantes idealizados e às vezes ingênuos que rondavam a ode às benesses da globalização até os anos 2000, hoje a integração global é vista com desconfiança, e a homogeneização como sinônimo de violência, como manifesta o interesse crescente por estudos decoloniais, que pretendem não só reconhecer um histórico e um presente de dominação, como também apontar a produção de arte e pensamento em outros centros.
Nesse sentido, a curadoria, assim como o próprio acervo da Associação Videobrasil desde 1994, se concentra na produção da América Latina, África, Leste Europeu, Ásia e Oriente Médio, o chamado Sul Global. Sem ser consenso entre estudiosos – o Sul Global inclusive já foi objeto de debates em outras mostras, como na 19ª Edição do Festival Sesc_Videobrasil – essa categoria orienta aqui um recorte mais político do que estritamente geográfico. Com isso no horizonte, os trabalhos da Bienal foram pensados a partir de cinco eixos porosos: cultura material, conflitos entre passado e futuro, disputas por posse e exploração de terras, violências do presente e experiências de deslocamento e exílio.
A primeira sala é dedicada à cultura material e a persistência de problemas no Brasil de ontem e de hoje. Atrás da vitrine com as joias de povos da África ocidental da coleção do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP, está o vídeo de Natalia Skobeeva, “Biografia dos objetos”, que parece funcionar como continuidade do texto de curadoria, tamanho o diálogo com “Comunidades imaginadas” e a atualização dessas questões para a era digital. As imagens que se acumulam sobre a tela do computador com a interface de busca do Google são acompanhadas por uma voz que narra em primeira pessoa. A voz começa dizendo “eu sou um prato”, no caso, um prato que se pretende símbolo da cultura russa, mas aos poucos reconhece que esse mesmo objeto, ou um equivalente próximo, pode ter sido originário de práticas de cerâmica de outras regiões, podendo representar a identidade nacional da Holanda e da Inglaterra. Levado pelas novas buscas que são feitas no browser, o encadeamento de ideias amplia o escopo de observação até a frase “eu sou a poeira estelar que é você”. Ao lado dessa obra, três pinturas de André Griffo entrecruzam a herança escravocrata e o golpe político de 2016, enquanto o áudio da aparição de Zé Carioca em “Alô, amigos”, presente vídeo “Do figurativismo ao abstracionismo” de Clara Ianni, nos remete às pactuações entre a elite brasileira e os Estados Unidos desde a Política da Boa Vizinhança [¹].
A maior sala da exposição se debruça nos conflitos da atualidade, violências em várias escalas, mas também formas comunitárias de reinvenção, autoafirmação e resistência. Estão representadas as disputas territoriais entre povos originários e ocupantes (Jim Denomie e Brett Graham), denúncias ao racismo (No Martins, Emo de Medeiros, Mohau Modisakeng), à homofobia (Paulo Mendel & Vitor Grunwald) e à exploração predatória de recursos naturais (Ezra Wube e Federico Lamas), além das lutas de classe em busca do domínio dos meios de produção (Gabriela Golder) e a dura realidade de refugiados (Nidhal Chamekh). Os demais espaços expositivos aprofundam essas questões, com destaque para a produção dos coletivos. Entre outros, Alto Amazonas Audiovisual, Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas e #voteLGBT encarnam, na própria forma de conceber o trabalho criativo e no entendimento da arte também como meio de promover mudança sociopolítica, o germe de comunidades imaginadas.
A ideia do capitalismo editorial, tão cara ao ensaio de Anderson, também reverbera na exposição. Várias instalações oferecem uma publicação ao público. É o caso do mapa de lugares LGBT na cidade de São Paulo do #voteLGBT, que também disponibiliza um serviço de apoio jurídico à população trans, e dos jornais de “The Skin of Labor” [A pele do trabalho], de Adrián Balseca, e de “Laboratório de Invenção Social”, de Gabriela Golder. E a interessantíssima coleção do “Snob”, jornal LGBTQI+ de produção caseira mantido por Agildo Guimarães no Rio de Janeiro entre 1963 e 1969, apesar de exibida com foco nas capas, de modo que precisamos nos balizar pela descrição do conteúdo das matérias feita pelo texto curatorial, ainda pode inspirar iniciativas similares entre criadores de zines, por exemplo.
Essa relação com o capitalismo editorial também influi na concepção de algumas obras, com destaque para a síntese brilhante entre forma artística e processo social do trabalho “Livro de colorir”, de Marilá Dardot. A artista se vale do fenômeno de vendas dos livros de colorir em 2015 para criar ilustrações que reproduzem notícias de jornal dessa época e entre 2017 e 2019, período de intensa crise política, violência e também de catástrofes como Brumadinho e o incêndio no Museu Nacional. Sobre essas imagens, algumas também incluídas no catálogo, colore uma superfície cinza, que permite distinguir pouco entre figura e fundo. É preciso olhar com calma para reconhecer os contornos, para a visão acostumar com o limite estabelecido, para enxergar melhor o que não deve ser banalizado.
Em todas as legendas de obras, há uma preocupação de indicar os deslocamentos dos artistas, o lugar onde nasceram e onde vivem hoje, seja por escolha própria, seja por contingência, como é caso de refugiados e exilados políticos. Mas a curadoria não tem interesse em estabelecer fronteiras rígidas de nacionalidade, em agrupar as produções por regiões ou países. Da mesma forma, não pretende demarcar territórios entre uma produção “urbana” e “regional”, entre natureza e cultura e entre o que é ou não vídeo. O festival se tornou aberto a todas as linguagens artísticas em 2011, mas, nesta Bienal, fotografias, desenhos, pinturas e instalações sonoras estão presentes em maior número.
Se essas fronteiras não são demarcadas, no entanto, outras são. Há uma preocupação acima da média com acessibilidade: muitas obras contam com audiodescrição e videoguia em Libras com legendas, embora o mesmo não se aplique à acessibilidade linguística. Alguns vídeos têm legendas apenas em inglês e os títulos, muitos deles chave de leitura para os trabalhos, só foram traduzidos no catálogo, aparecendo nos idiomas originais nas legendas da sala expositiva. Outro aspecto que atrapalhou a democratização do acesso às obras foi a escolha de criar um ambiente reservado para os educadores no sexto andar. Apesar desse espaço ser excelente para trocas e pesquisas, a distância física do educativo pode gerar uma perda de interações espontâneas com o público, sobretudo o não especializado.
Diante do crescimento da ultradireita em muitos países, o Brasil entre eles, e do uso de símbolos nacionais carregados de tintas xenófobas, o espectador pode encarar a 21ª Bienal como um exercício de não polarização de discursos e de abertura ao novo. Uma reflexão assim demanda tempo e disponibilidade emocional, algo fora da mentalidade autocentrada e de consumo promovida pelo capitalismo. Mas se o capitalismo, também ele, foi imaginado, talvez seja possível fazer diferente, desde que acreditemos nessa ideia e nos articulemos em várias frentes coletivas. O vídeo produzido em larga escala e difundido pela internet é uma possibilidade de atualização do que fora o capitalismo editorial na equação de Anderson, só que agora na língua franca da imagem e por atores que estão além do circuito artístico. Nesse sentido, o método da des-outrização, como sugere o ensaio de Bonaventure Soh Bejeng Ndikung incluído no catálogo da mostra, pode ser um meio valioso de conceber novos modos de ser, novos modos de viver juntos no mundo “não apesar de nossas diferenças, mas por causa da importância e da riqueza de nossas diferenças”. Mais fortes são os poderes do povo.
¹ Política de aproximação econômica e cultural dos países da América Latina promovida pelo governo dos Estados Unidos entre 1933 e 1945 (ver aqui).
Livia Azevedo Lima é editora e doutoranda com bolsa Fapesp do programa Meios e Processos Audiovisuais da ECA/USP, onde desenvolve a pesquisa Trilogia da Paixão: Saraceni leitor de Lúcio Cardoso.
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