Editorial
Interview
A boa arte de Regina Vater
Paula Nunes
28 Sep 2021, 6:45 pm
Regina Vater (Rio de Janeiro, 1943) é a suma do que pode ser chamada de artista transmidiática: do lápis aos pincéis, de instalações a vídeos, Vater não se limita. A experimentação dita e acompanha os seus trabalhos, que não somente se baseiam em reflexões profundas e muitas vezes científicas, mas exigem de seu observador um exercício intelectual que leva seus discursos para casa.
O diálogo entre sociedade, natureza e tecnologia tem sido mote da sua arte nas últimas quatro décadas, e é a partir dele que Regina Vater debate sobre ecologia, religião e história e desbanca discursos estabelecidos sobre o corpo feminino e a presença brasileira no mundo.
“A Celebration for the GOoD Time“
Na retrospectiva em cartaz pela Galeria Jaqueline Martins, o visitante é recebido por “Oferenda ao ancestral” (1988) — trabalho inspirado no Kuarup, ritual que homenageia a memória dos mortos, celebrado tribos indígenas do Xingu brasileiro —, seguida de críticas à exploração predatória e consequente morte da natureza, como em “Nature Morte”, que ironiza a presença da fartura da natureza brasileira, ora lado a lado, ora contida em objetos de luxo e prataria.
Trabalhos sobre tempo e mortalidade introduzem a obra de Vater que, nos últimos pisos da galeria, faz uma figuração metaforizada de suas inspirações em crenças e tradições originárias e declara “Que saudade do Brasil”. O trajeto da artista culmina em uma crítica-lamento, com “Deus dá nozes a quem não tem dentes”. Vater encontra beleza nos mitos e crenças indígenas e africanos, se sente provocada pela suposta “malandragem” do jabuti, herói solar, e, finalmente, junta isso àquilo e idealiza a alma brasileira.
“O mundo é mágico, não é?”
Paula Nunes : Você escreve muito sobre como as suas instalações vão além de oposições entre natureza e cultura, buscando encontro e fusão entre arte e vida. Queria ouvir de você sobre isso.
Regina Vater : Bom, na minha opinião, tudo que se faz com um certo cuidado, com uma certa beleza… pra mim é arte. Como fazer uma comida maravilhosa, de apelo degustativo e colocá-la de uma maneira muito bonita na mesa, eu acho que é um ato de arte, uma performance. Deixar a sua casa de uma maneira muito agradável para quem entra ou para que você mesmo exista nela, acho que é uma maneira de fazer arte. Fiz um trabalho no início dos anos 1970 que se chamava “X-Range” onde fotografei várias casas, inclusive de artistas. Acho que viver em sua casa é ser artista em termos da sua própria existência, tá entendendo?
Não acho que tudo na arte é essa beleza convencional que nós ocidentais construímos, esse gosto, estética ocidental. A beleza pode vir de muitas maneiras. Por exemplo, quando Picasso fez Demoiselles D’avignon, ele foi buscar um outro tipo de beleza que era uma coisa feia para os ocidentais. As máscaras africanas não cabiam no padrão de beleza da estética ocidental, mas ele quis quebrar com aquilo.
Eu tenho até uma certa birra com ele. Ele não está interessado no que aquela estética traz, no conteúdo daquela estética. Porque as máscaras africanas não são feitas pra decoração, elas são feitas para rituais. Então ele não estava interessado na verdadeira cultura africana, ele tava interessado na embalagem da cultura africana.
Minha instalação “Golias”, que tá na galeria, tem a ver com isso.
Aliás eu acho que a boa arte é aquela que você entra no museu e leva pra casa. É aquela que você às vezes não consegue nem dormir porque fica pensando nela; e aquela você se lembra sempre porque ela te marcou, quer dizer, ela tem uma marca forte em você.
X-Range é um “work in progress”. Regina Vater buscou retratar as formas como um indivíduo ou grupos lidam e existem no espaço doméstico exprimem suas condições sociais, culturais e psicológicas. Nessa série de dezenas de fotografias, está presente a paixão pela poesia cotidiana.
“Golias” é uma alegoria de estilingue. Um casco de jabuti pintado com simbologias indígenas ameaça atirar uma pedra em um olho Picassiano, que observa seu destino por cima. Esta instalação de Vater enfrenta o olhar de Picasso — e europeu — sobre a arte africana, questionando o apagamento de discursos e belezas alternativas feitas por culturas desprezadas pela cultura ociental.
Paula Nunes : Você pode se aprofundar um pouco sobre essas influências e inspirações nas culturas indígena e africana no seu trabalho? Qual a sua relação com elas?
Regina Vater : Desde pequena, a coisa do tempo sempre me intrigou, por ser uma dimensão na qual a gente vive mas que não consegue explicar. Varia muito, é uma dimensão elástica. Eu fiz até um trabalho sobre isso em Paris, em 1974, chamado “Christmas Underground“
Essa minha curiosidade do que é do tempo desde a adolescência me levou mais tarde a ler sobre tempo, procurar investigar vários autores, Jorge Luis Borges, o Santo Agostinho, Heráclito. Aí eu me dei conta de que com certeza haveriam outras definições de tempo em outras culturas, e fui procurar investigar os mitos amazônicos.
Christmas Underground é uma série de fotografias assinadas por Regina Vater e Miro, tiradas em noite de Natal. A obra é um comentário sobre a passagem do tempo em que os artistas fotografaram as plataformas do metrô parisiense: “Como numa estação de metrô você sempre tem a mesma luz, o mesmo clima e o espaço não se altera, a única coisa que muda é a passagem do trem”.
“Para mim, tudo é lápis”
Paula Nunes : Sobre sua passagem para o vídeo e mídias digitais: o que te levou a esse lugar de criação? Como você explicaria essa passagem para obras e mídias digitais?
Regina Vater : Desde criança eu fui uma pessoa que adorava experimentar coisas, tentar uma coisa nova ou então me inspirar, algo assim! Quando tinha nove anos, fiz um jardim com as flores dos vasos da casa de mamãe. Tinha tido uma festa, a casa estava cheia de flores… eu abri a cera entre os assoalhos de madeira, enfiei as flores e quando minha mãe chegou eu tava regando.
Em arte eu nunca me contentei de ficar numa coisa só. Eu nunca me restringi. Qualquer técnica pra mim é um instrumento. Um vídeo pra mim é como um lápis. Arte é como ciência. É um campo onde você faz as suas indagações sobre a sua existência, sobre o mundo e a maneira como você vê as coisas. Então, a arte pra mim tem essa liberdade total.
Mas eu acho interessante tentar, digamos assim, violar o estabelecido. Pra mim, o que existe é um instrumento. Eu comecei usando lápis e pra mim tudo é lápis. Eu não vejo limitação não.
O Jabuti é protagonista de muitas obras de Regina Vater. Derivado de “Iauo’ti”, ou Yauti, Vater o descreve como “um herói solar que corre com animais que simbolizam a lua” e que comenta sempre a passagem do tempo, do dia para a noite. Em “Yauti Marandua”, Vater coloca em uma “jaula”, um coelho e um jabuti abaixo da frase “Oh dear, oh dear, I shall be too late”. De cada lado, um desenho: primeiro, em estágios iniciais e, depois, apagado. “Então o presente eram os animais vivos. E o passado e o futuro.”
Paula Nunes : Pensando nessa liberdade de criar sobre o que você comenta, fico curiosa em relação a como que é seu processo de experimentação, e que foi vivido, eu imagino, junto com o Hélio Oiticica e outros artistas também.
Regina Vater : O Hélio foi um garantidor da minha liberdade. Até quando eu fiz o trabalho do coelho ele me deu a maior força. Ele disse “Genial”. Eu tive algumas parteiras na vida. Uma foi o Iberê, e a outra com certeza o Hélio – e a Lígia Clark também.
O Hélio foi uma pessoa que realmente abriu muito a minha cabeça. Ele disse: “Você tá na arte, a arte é o caminho da experimentação, você não tem nada que ficar em em regras acadêmicas e tal”. E realmente foi uma coisa que me deu muito fôlego.
Paula Nunes : Você comenta muito sobre beleza e a ligação da arte com a vida. Vejo um sentimento de reencantamento do mundo e, ao mesmo tempo, um de revolta nos seus trabalhos. Como você vê essas duas “vertentes” na sua obra?
Regina Vater : O meu modo de operar é tentar chegar às pessoas, à existência, seduzir pela beleza, mesmo de uma coisa cruel. Por exemplo nas “Nature morte”, que estão na galeria.
As fotografias, feitas entre 1987 e 1988, retratam restos de animais, as penas e peles e que Vater encara como “vestígios dessa tragédia que foi a colonização das Américas. […] Violenta mesmo. E muito hipócrita, uma coisa que destruía com uma face sorridente, amigável, essa coisa gentil… que nada! Os índios estão muito revoltados, com certeza. E têm toda a razão.”
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