Editorial
Para o centenário de Zanine Caldas, Amanda Beatriz Carvalho faz um panorama da carreira e do envolvimento ambiental do designer e arquiteto
10 mai 2019, 12h54
José Zanine Caldas (1919-2001) nasceu em Belmonte, pequena cidade no sul da Bahia, situada no interior de uma planície entre o rio Jequitinhonha, antigo rio Grande, e o oceano Atlântico. Desde menino, observando os construtores de sua cidade natal, ficava encantado pela mágica do fazer. Ele mesmo comenta que: “Com terra e madeira foram construídos os abrigos da humanidade. As casas de taipa e adobe de Belmonte, cobertas por telhas de barro cozido em fornos de barro com o calor da madeira no fogo. Foi por aí, exatamente, olhando o fazer, que aprendi a fazer, também. Sobretudo casas.”
Figura múltipla, inquieto e curioso, conhecido pelas residências e móveis feitos em madeira, Zanine desenvolveu projetos em diversas áreas: trabalhou como desenhista de placard, desenhista de arquitetura na empresa Severo & Villares, artesão, escultor, ceramista, maquetista, designer, paisagista, arquiteto, planejador de cidades e professor. Deslocou-se pelo Brasil e fora dele em busca de novas experiências de trabalho, aprendizado, ensino e vida. Para Zanine, importava o prazer de viver e, como parte dele, o prazer do fazer. Sempre com o desejo de realizar um trabalho benfeito, que respondesse à sua crítica e exigência pessoal, sua obra é vasta, diversa e de qualidade.
O que motivava Zanine era a materialização de ideias, a mágica de transformar materiais encontrados na natureza em objetos que ajudassem o ser humano a desfrutar o seu dia a dia. O olhar curioso e livre, a partir do qual descobria as técnicas e os materiais usados por pessoas comuns, somado à inventividade, fê-lo obter resultados surpreendentes, diferentes do que era esperado dos arquitetos e designers da época, seja no uso de materiais de demolição e madeira para a construção das casas da Praia da Joatinga, no Rio de Janeiro, seja pelo aproveitamento de sobras de desmatamento para a construção de seus móveis-denúncia.
Foi assim que, em 1941, inovou a forma de produção de maquetes de arquitetura ao abrir a fábrica Maquete Studio. Zanine inseriu o compensado na confecção de suas maquetes e usou películas transparentes como superfície para demarcar as esquadrias das portas e janelas, permitindo que o interior da obra passasse a ser visto. Com isso, transformou a maquete – antes uma representação volumétrica feita em gesso – numa representação fiel do projeto de arquitetura, despertando a atenção dos principais arquitetos do Brasil, entre os quais Oscar Niemeyer, Lúcio Costa, Oswaldo Bratke, Affonso Eduardo Reidy, Luís Saia e Alcides da Rocha Miranda. À época, Zanine produziu cerca de setecentas maquetes de arquitetura.
Com o conhecimento adquirido no uso do compensado naval para a confecção de maquetes, Zanine passou a desenhar diversos móveis para sua própria casa. Foi então que decidiu abrir a fábrica Móveis Artísticos Z.
Móveis Artísticos Z
O final da década de 1940 e início da década de 1950 foram marcados pela industrialização do Brasil, como consequência das Grandes Guerras Mundiais, do aumento da população urbana e, por conseguinte, do mercado consumidor nas cidades. Como resultado, houve uma crescente demanda por habitação, que virou importante tema de discussão entre os principais arquitetos do país. Os apartamentos residenciais surgiram como resposta à necessidade de adensar as cidades, o que significou uma mudança no modo de vida, exigindo a adaptação dos seus moradores a espaços menores.
Zanine, como importante maquetista dos arquitetos do período, participou das discussões vigentes sobre habitação. Pensar a habitação faz pensar o mobiliário. Ainda, a crescente demanda por moradia (e, consequentemente, por móveis), causada pelo crescimento populacional, punha em xeque as formas de produção moveleira: a produção nacional não supriria, a tempo, a quantidade necessária de peças. Todos esses questionamentos já estavam colocados pelos arquitetos modernos durante as décadas de 1930 e 1940, mas as experiências de industrialização do mobiliário eram raras.
Foi nesse contexto que Zanine Caldas fundou, em sociedade com Sebastião Henrique da Cunha Pontes e Paulo Mello, a Móveis Artísticos Z, em São José dos Campos, São Paulo, no ano de 1949. Com a fábrica, Zanine se constituiu como um dos pioneiros do país no desenho e na produção de móveis manufaturados e na utilização de compensado naval em suas mobílias. Segundo a pesquisadora Maria Cecília Loschiavo dos Santos, a montagem de suas peças era extremamente simples, o que permitiu o uso de mão de obra não especializada nessa função. Unindo esse fator ao aproveitamento máximo da placa de compensado, a Móveis Artísticos Z conseguiu reduzir de 70% a 80% o preço da mobília em relação ao montante praticado com o uso da madeira comum. A fábrica tinha em torno de 150 funcionários e vendia muito: “Toda a linha de móveis era modulada e possibilitava a composição de arranjos de acordo com as necessidades do cliente. Os assentos utilizavam as molas nozague e estofamentos forrados com tecido sem costura – lona, lonita ou materiais plásticos coloridos em azul, amarelo, marrom ou listrados –, fixados por baixo com grampos ou tachinhas e uma placa de compensado para dar certo acabamento. Aliás, a presença da cor e da assimetria na composição dos móveis de Zanine é um aspecto inovador para a época, pois até então as superfícies dos móveis eram praticamente neutras, sóbrias e simétricas”.
As peças de Zanine utilizavam o compensado como estrutura, muitas vezes recortado em forma de Z ou em formato ameboide. Havia uma busca por leveza nos móveis, permitindo a sua mobilidade e flexibilidade no layout dos espaços.
Zanine acreditava que a industrialização permitiria uma melhoria na qualidade de vida de grande parte da população. De certa forma, atingiu seu objetivo: a redução do valor da mobília em comparação aos móveis antes desenvolvidos pelo Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, e ainda em relação a outras fábricas de móveis modernos do período, fez com que os Móveis Z chegassem às casas de amplas camadas da população brasileira.
Apesar dessa conquista, a experiência de Zanine com a fábrica durou pouco. Em 1953, teve desentendimentos com seus sócios, saiu da sociedade e queimou todos os desenhos dos móveis.
É possível observar o pensamento humano presente em toda a obra de Zanine. O arquiteto insistia, com frequência, na necessidade de desfrutar a vida e de viver bem, o que para ele dependia do convívio em harmonia com o meio ambiente. Esse pensamento o fez experimentar outras técnicas de construção de móveis, agora na década de 1970, em Nova Viçosa, Bahia.
O móvel-denúncia
Ao chegar em Nova Viçosa, uma cidade pequena ao sul da Bahia, Zanine conheceu uma grande madeireira e produtora de compensado laminado, a Elecunha, onde encontrou sobras de pedaços de tronco e raízes. Deparou-se, também, com habilidosos construtores de canoas, artesãos que sabiam esculpir barcos em troncos de árvore.
Ao perceber a quantidade de madeira desperdiçada, Zanine indignou-se com a falta de cuidado com a natureza, e com a possibilidade daquela prática levar toda a floresta à extinção. Decidiu usar as sobras de madeira na fabricação de móveis e, dessa forma, denunciar o desflorestamento: criou, assim, o móvel-denúncia. Segundo ele, a iniciativa provaria a existência dessas madeiras no futuro, quando provavelmente estariam extintas.
Os móveis eram feitos em pequenas séries, a partir de maquetes produzidas pelo próprio Zanine, em escala 1:10. Segundo depoimento de carpinteiros que colaboraram com ele nesse período, ao utilizarem restos do desmatamento da floresta acabava que trabalhavam, não com uma madeira específica, mas com todas que encontravam. Zanine escolhia e separava a madeira que seria usada para cada móvel, instruía os carpinteiros e fazia as marcações necessárias. Por fim, o móvel era executado na escala 1:1 pelos carpinteiros.
A peça Namoradeira, por exemplo, uma das produções desse período, pode ser encontrada em diversas residências. Percebem-se, no entanto, diferenças no desenho das primeiras e das últimas Namoradeiras, resultado de um desenvolvimento construtivo adquirido com o tempo. As primeiras peças eram feitas inteiras em um único tronco. Sua forma de produção mudou com o tempo: os braços passaram a ser esculpidos separadamente, em madeira distinta do corpo do móvel, e acrescentados ao final, tornando mais simples e rápida a construção da peça e otimizando a matéria-prima.
Outra prioridade de Zanine era a busca por conforto: “O que ele sempre falava pra fazer era sentar pra sentir o conforto, porque muitas vezes a pessoa tem aquela curiosidade de fazer, mas não sabe o conforto que a pessoa senta. Você pode sentar, mas tem que ficar à vontade, num sofá desse de madeira, ele tem que ter o apoio certinho nas costas.”
Sobre o formato escultórico dos móveis desenvolvidos em Nova Viçosa, podemos notar as formas arredondadas caracteristicamente encontradas em canoas, resultado do uso do instrumento enxó. Em muitos casos, Zanine enfatizou essas formas em seus móveis, criando certo movimento. A madeira também foi utilizada em sua forma natural, como podemos perceber em muitas de suas mesas: em um determinado projeto, um tronco de ponta-cabeça, com as raízes voltadas para o céu, suporta um tampo de vidro; noutro, a fatia de um tronco transforma-se em tampo de mesa.
Nos móveis-denúncia, Zanine desenvolveu um design associado ao conhecimento humano do local onde se trabalha. Trata-se de permitir que as técnicas regionais sejam valorizadas e desenvolvidas, ao invés de importar técnicas e máquinas de lugares industrializados.
Amor e respeito pelo meio ambiente
Zanine acreditava que a emoção era capaz de subverter a lógica da produção repetitiva, de fazer repensar as estruturas da economia, apontando para um futuro em que o ser humano e a natureza fossem partes de um todo. Em suas palavras: “A madeira é uma riqueza que a natureza dá ao homem, que não temos direito de destruir, nem de gastar. Quanto mais pessoas no mundo, mais teremos que aproveitar o máximo da madeira.”
Zanine Caldas foi um precursor no uso sustentável de matéria-prima para a construção de móveis e casas, além de um grande defensor das florestas brasileiras. Percorreu um extenso caminho, de maquetista à paisagista, de designer a arquiteto e urbanista. Foi perseguido por muitos arquitetos brasileiros por não ter diploma. Ainda assim, ganhou, das mãos de Lúcio Costa, grande admirador de seu trabalho, o título de Arquiteto Honorário, atribuído pelo Instituto de Arquitetos do Brasil, no ano de 1991. Da mesma forma, fora do país também teve seu trabalho reconhecido. Na França, em 1989, foi homenageado na exposição Zanine – L’Architecture et la forêt, no Musée des Arts Décoratifs do Musée du Louvre, e premiado com a Medalha de Prata do Collège d’Architectes.
Celebrar o centenário de seu nascimento, em tempos de mudanças climáticas, poluição atmosférica, poluição dos rios e desflorestamento, é lembrar que nossa vida é condicionada pelo ambiente onde vivemos e transformamos. Para enfrentarmos esse problema, teremos de repensar a forma de construir cidades e objetos, de nos locomover, reconsiderar o uso de determinados materiais e aprender outras formas de viver. Retomar o pensamento de Zanine, brasileiro pioneiro no cuidado com a natureza, pode contribuir nessa busca, resgatando outras formas de projetar e produzir, e ajudar a encontrar novas soluções para os problemas atuais.
Amanda Beatriz Palma de Carvalho é doutoranda no programa de pós-graduação em Design da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, orientada pela Professora Titular Maria Cecília Loschiavo dos Santos.
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