Editorial
Entrevista
Uma conversa com Keyna Eleison
Marina Dias Teixeira
25 jun 2021, 15h10
“Curadora, escritora, pesquisadora, herdeira Griot e xamã, narradora, cantora, cronista ancestral” – palavras chave que tentam dar conta da trajetória e da grandeza de Keyna Eleison. Com formação em Filosofia (UFRJ), mestrado em História da Arte e especialização em História e Arquitetura (PUC-Rio), Keyna cresceu bebendo da fonte da cultura, que já contou com suas contribuições em diversas áreas: música, cinema, moda e, claro, artes visuais. Desde setembro de 2020, ao lado de Pablo Lafuente, Keyna Eleison assumiu a Direção Artística do Museu de Arte Moderna do Rio, onde já está movimentando as estruturas, pois como diria Angela Davis, “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”.
Para entender na prática como isso acontece, conversei com Keyna sobre seu percurso pessoal e profissional, a nova empreitada no MAM Rio, a urgência de promover diversidade e inclusão. E muito mais.
Acima: Abdias Nascimento "Frontal de um templo" (detalhe). (Cortesia Fortes D'Aloia & Gabriel)
“Precisamos de pessoas diferentes tomando decisões, não de decisões diferentes pelas mesmas pessoas”
Marina Dias Teixeira : Você contaria um pouco sobre sua trajetória pessoal e acadêmica, e como você ingressou no universo da arte e da cultura?
Keyna Eleison : Para responder essa pergunta, eu não posso negar a minha biografia. Eu devo tudo que eu sou a Heloisa (mãe), Carlos (pai), Amélia (avó materna) e Isaura (avó paterna). Eu sou filha de pais universitários, então sou a segunda geração universitária, mostrando que desde o início a relação de educação e cultura foram muito importantes para a minha ideia de formação familiar. Eu e minha irmã fomos criadas com a ideia de que tínhamos que ser muito cultas. Desde o começo existiam questões que a gente ainda não tinha nomeado de machismo e racismo estrutural, mas entendia o que meus pais queriam dizer quando falavam: “Você precisa ser a mais inteligente, a mais culta, a mais esperta. Você vai trabalhar para chefes que não são tão inteligentes quanto você, mas se você quer ser a chefe, você precisa ser bem mais inteligente do que todo mundo”.
Meu pai é das exatas – matemático, engenheiro e astrônomo –, e minha mãe é das biológicas. Ela se formou em enfermagem sem entender que podia ser médica, pois estruturalmente não tinham médicas pretas, e ela foi orientada a fazer faculdade de enfermagem. Só após ser mãe, ela entende que pode ser médica.
A arte e a cultura vêm pra mim de uma forma potente desde o início. Eu fui cantora lírica e percussionista. Fiz faculdade de Filosofia, e lá fui desenvolvendo a minha pesquisa para o campo da lógica e da estética. Já naquela época eu estava desenvolvendo linhas de pensamento que hoje eu entendo que são curatoriais, mas na época não conseguia entender ainda, porque, mais uma vez, não fui estruturada para entender que eu poderia ser uma curadora. Nesse sentido, segui para o campo da arte-educação e, por também trabalhar muito performaticamente, como cantora e percussionista, me entendi como contadora de histórias e arte-educadora. Paralelo a isso, tenho uma paixão enorme: o cinema. Comecei como voluntária no Festival do Rio em 2000 e continuei trabalhando lá até 2018, fazendo parte, nos últimos dez anos, da equipe curatorial da Premièr Brasil, mostra de filmes nacionais. Eu ia caminhando, entendendo que tinha uma vontade de desenvolvimento de pensamento muito próximo da curadoria, mas eu não conseguia nem falar o termo. Quando comecei a entender um pouco mais, inclui curadoria pedagógica, o termo curadoria, sem sair da arte-educação. Até por uma questão financeira, pois não tinha muito recurso, ideia, possibilidade, abertura, para alguém como eu ser curadora. Até que eu decidi ser.
Estava como gestora do Castelinho do Flamengo e virei gerente de todos os centros culturais do município, um lugar de responsabilidade institucional muito pesado. Me destacava, não pelo meu trabalho, mas por ser uma mulher preta, uma das únicas do lugar. Entendi que já estava desenvolvendo uma pesquisa curatorial, já estava me colocando como curadora dentro do meu trabalho institucional. Já na Prefeitura eu colocava minha gestão como gestão curatorial, trabalhando ética e estética – puxando aqui a filosofia. Fiz então mestrado em História da Arte, dentro da linha de História Social da Cultura, na PUC, orientada por Ronaldo Brito. Foquei especificamente no viés escultural, pois a ideia de espaço-tempo era muito importante para mim. Dentro da minha pesquisa fui entendendo que minhas referências eram muito euro-centradas. A discussão afro-centrada já existia, mas ainda era um pouco mais rarefeita. Pessoas como Audre Lorde, Conceição Evaristo, Lélia Gonzales sempre existiram na minha família, por ter pais politicamente engajados. Abdias Nascimento estava no nosso dia a dia. E isso não estava nos meus modos de estudos, não estava na faculdade de filosofia nem no mestrado. Eu, como outras pessoas da minha geração, corri atrás de diversos campos para isso acontecer. Comecei a me entender como uma curadora melhor, nesse sentido. Eu não consigo entender o meu trabalho como individual, é um trabalho coletivo pela luta, porque sendo mulher e sendo negra, não tem como eu não estar qualificada dentro de uma coletividade.
Marina Dias Teixeira : Qual é o papel e responsabilidade de ser uma herdeira Griot e xamãnica? Como esse legado chegou até você, e como você combina com a sua prática de cronista ancestral?
Keyna Eleison : Minha mini bio é uma grande provocação! Eu sou filha de pais negros. Meus avós por parte de pai são indígenas, e por parte de mãe são negros e indígenas. Tenho influência direta da cultura, do saber, das expressões, das preferências alimentares e intelectuais que vêm dessa rede que me forma. Eu precisava colocar. Mas ao mesmo tempo, é importante falar que esses dois termos, Griot e Xamã, são termos euro-centrados. “Griot” é uma palavra em francês, para definir um modus operandi de vida da África, especificamente no Benin, mas que se espalha culturalmente por várias outras nações da África. “Xamã” é um termo anglo, para explicar a relação entre medicina e liderança que se coloca em algumas nações no norte dos EUA, entre os indígenas mais setentrionais. Tudo isso dentro de um tecido antropológico que rege a nossa cultura e a nossa escolástica europeia. Ao me colocar como Griot e Xamã nesse sentido, chamo pra mim a força que essa palavra coloca na nossa língua, no nosso meio e reforço a ideia desse corpo que é racializado e feminilizado, pois não nasci uma mulher preta, me tornei uma, como inúmeras escritoras e escritores já falaram. Eu consigo entender e perceber que há uma intelectualidade vinda do fazer, do nosso corpo, que é subalternalizada. A “naturalização” nessas questões subalternaliza. Quando eu me coloco como Griot e Xamã (e a primeira palavra que eu boto é curadora), não saio do campo da arte, mas entendo a minha atuação como uma atuação diretamente setorizada, porque me setorizam, e eu quero ganhar com isso. E o meu ganho não é só um ganho estrutural da gaveta da mulher preta, mas é um ganho de conhecimento intelectual e percepção de que a intelectualidade não é uma coisa vinda apenas de uma escola euro-centrada onde nossos corpos estão divididos. Onde a gente é corpo vs. mente, onde o erótico é adoecido, onde a excreção é demonizada, onde a raiva é colocada em oposição à construção. E é nesse lugar que eu me coloco muito. Minha mini bio é uma micro tese (risos).
Marina Dias Teixeira : O que você pode compartilhar de seus projetos futuros para o MAM Rio, enquanto Diretora Artística ao lado de Pablo Lafuente? Quais são as principais mudanças que você espera promover? E quais os maiores desafios?
Keyna Eleison : A minha chegada institucional com o Pablo já deixa o MAM Rio um pouquinho mais inteligente, porque aumenta a percepção dos limites da instituição. O alvoroço que foi, não só no Rio, não só no Sudeste, não só no Brasil, a chegada nossa na Direção já mostra o quão violenta é a estruturação no campo da arte. Eu não sou aquela pessoa que vai achar maravilhoso estar na capa do jornal porque eu sou a primeira Diretora Artística de um museu. Eu vou achar que é muito violento, porque estar sozinha é um inferno.
No MAM Rio a gente tem trabalhado muito com a relação institucional e o que podemos colocar dentro das percepções que a gente dá. É um museu muito mais racializado, muito mais feminilizado com as contratações que estamos fazendo. Não é uma gestão de reparação, porque a ideia de reparação é mais um pouquinho de manutenção, como se a pessoa tivesse o poder de reparar. Sou curadora, não sou curandeira, apesar de ser xamãnica (risos).
A gente quer se perguntar todo dia quais exposições faz sentido existirem nessa instituição. Não queremos negar a existência do que está estabelecido, porque do mesmo jeito que as táticas de reparação são violentas e são de manutenção, a ideia de que a gente vai resolver é absurda. Temos na nossa programação saberes e fazeres da escola de samba que são potências afro-centradas, também estamos pensando uma troca institucional intelectual indígena. O nosso programa de residência está trazendo artistas que se colocam na instituição para fazer trocas intelectuais não só do meio conhecido como artístico, mas também de outras potências.
Assim que eu fui anunciada como diretora artística do MAM Rio, uma curadora que admiro muito, a Fabiana Lopes, disse pra mim: “Que bom que você imaginou isso!”. A gente quer ser uma instituição que possa ajudar pessoas a imaginarem outras coisas. Entender que a ideia de impossível também carrega muita violência.
Marina Dias Teixeira : Como foi a experiência de suas primeiras exposições desde que assumiu essa posição em agosto 2020 (“Bandeira Brasileira”, na exposição do Hélio Oiticica, “Realce” e “Estado bruto”) e como está sendo o processo das exposições em cartaz agora, “Marcos Chaves: as imagens que nos contam” e “Fayga Ostrower: formações do avesso”? Encontrei um fio condutor entre os quatro textos curatoriais, com um olhar atento para as divisas e a revelação daquilo que é invisibilizado. Gostaria que você comentasse um pouco sobre isso também.
Keyna Eleison : A exposição de esculturas “Estado bruto” é uma reflexão sobre a atuação da curadoria no acervo da instituição. Ela vai ser de escultura, mas ainda segue um modus operandi de exposição de acervo, na qual apartamos a coleção de toda uma linha de pensamento possível. O que a gente quer é juntar isso em uma mesma linha.
Eu e Pablo somos os primeiros diretores artísticos do MAM Rio. Antes, o museu tinha uma direção voltada para a institucionalidade executiva, com um modo de se trabalhar que isolava diferentes questões. E, se você pensa só nas exposições, não pensa na equipe de limpeza, na equipe de segurança, de museologia, etc. Você só pensa na equipe de produção, porque tem demanda para entregar. Nisso a exposição “Realce” foi interessante. Foi muito divertido e gostoso a gente começar a se relacionar com as equipes de uma forma que elas já estavam acostumadas, e tentar seduzir a equipe para estar junto da gente nesse lugar de troca.
A gente se auto-seduzir, para poder trabalhar junto. Tanto na exposição do Hélio Oiticica, na qual precisamos pensar a montagem em outro espaço (e eu tenho que agradecer muito o Tomás Toledo e o Adriano Pedrosa, pela troca possível), quanto na ocupação que a gente propôs, trazendo uma análise crítica à romantização da relação do Hélio com a escola de samba Mangueira. Quando a gente chamou o Leandro Vieira, foi como o artista da “Bandeira Brasileira” e como curador convidado para pensar essa ocupação. Mas colocamos para ele: “Faz sentido para você convidar essas pessoas? E por favor, pergunte a essas pessoas se faz sentido para elas estar aqui”.
Marina Dias Teixeira : Uma das colocações do Pablo sobre vocês assumirem a direção artística, foi a vontade de trabalhar a diversidade em uma cultura historicamente branca, como a de museus no Brasil. E ainda, você colocou que a proposta de vocês foi “Pensar o MAM para fora do prédio, de retomar sua relação com a cidade, para que exista a percepção de que ele está realmente de portas abertas a todos, que um museu não é um lugar de exclusão”. Qual é sua visão sobre políticas de inclusão e diversidade nas instituições culturais do Brasil, e quais caminhos ainda temos a percorrer nesse sentido?
Keyna Eleison : Pelos motivos óbvios, eu sou uma pessoa que é muito chamada para falar sobre isso, e a primeira coisa que eu vou dizer é a seguinte: quantidade é qualidade. A gente precisa de mais inteligências outras – e aqui falo outras não no sentido de que estão subalternalizadas, mas porque foram excluídas estruturalmente –, dentro dos espaços para se pensar e para decidir. Precisamos de pessoas diferentes tomando decisões, não de decisões diferentes pelas mesmas pessoas. A gente só consegue fazer isso trazendo essas inteligências para dentro do sistema.
Eu e o Pablo encontramos soluções que a gente não encontraria se estivesse sozinho. Têm desejos de relações estruturais que só porque sou uma mulher preta consigo pensar. Existe, estruturalmente, o lugar que me coloca como uma pessoa que já nasce no erro. Escuto pessoas que me explicam o que eu acabei de falar! O que eu e Pablo queremos é que esse lugar seja cada vez menos excludente. É entender uma mulher funkeira, vinda com background de favela, como artista residente do MAM Rio e propor a sua presença ali. Essa é a diretora que eu quero ser! Quero o museu como um lugar que, no meio da pandemia, possamos ver como tendo inteligências que nunca tinham sido pensadas para estar lá. E isso faz diferença. E não dá pra ser uma só! Não quero ser uma só. Meu desejo maior é que quando acabar meu ciclo de gestão no MAM Rio, se tiver uma nova chamada pública, que muitas outras mulheres e homens pretos retintos se entendam passíveis de serem diretores daquele museu. Que se for uma chamada direta, que se pense e se imagine pretas, pretos, indígenas, trans, como diretores ali.
Marina Dias Teixeira : Na linha desse trânsito entre espaços distintos do sistema de arte, gostaria de perguntar sobre a exposição “Escrito no corpo” na Carpintaria (espaço da Fortes D’Aloia & Gabriel), que encerrou no início do ano e contou com sua co-curadoria. Qual foi a pesquisa por trás da mostra e quais as particularidades de trabalhar em parceria com um espaço comercial? Você vem trabalhando em mais projetos dessa natureza?
Keyna Eleison : Cada vez menos, por conta do tempo e do compromisso com o MAM Rio. Depois que George Floyd foi assassinado nos EUA, teve uma movimentação assanha, uma sede das galerias por mim. Já estávamos numa movimentação pré-George Floyd de trabalhar enlouquecidamente pela correria que tinha atrás de curadoras pretas. Em 2020 eu estava numa movimentação tão pesada no Nacional Trovoa e na 01.01 Art Platform, que entre janeiro e março, antes do mundo acabar, estava desenvolvendo mais de dez projetos diferentes.
Esse “fashion” decolonial estava me capturando. Me divirto com essa briga institucional, eu lembro de ter sido chamada pra falar em uma galeria e disse: “Eu sei que esse convite vem pra deixar essa galeria mais interessante, mas eu não só quero esse dinheiro, como eu quero estar aqui com vocês. Eu quero que vocês me escutem”. Foi bom, porque rendeu frutos. Eu estava numa loucura de projetos, ideias e falas que me levou para algumas trocas interessantes, e aí o Victor Gorgulho me chamou para pensar uma exposição com a Fortes D’Aloia & Gabriel aqui no Rio de Janeiro. A ideia vem porque o Victor teve acesso ao arquivo do Abdias do Nascimento e já tinha colocado algumas imagens fotográficas numa outra exposição do Abdias. Hoje em dia não faz mais sentido você fazer uma exposição do Abdias Nascimento sem botar uma curadora preta. E o Victor, que é um cara sensacional, me convidou e disse: “Keyna, eu queria ser seu assistente”, e eu: “Não querido, você já está desenvolvendo sua pesquisa. Vamos junto!”. Foi e está sendo uma troca maravilhosa, porque eu já tenho na minha conta pessoal uma relação imagética e estrutural com o Abdias do Nascimento muito grande, dele ser uma presença dentro de casa quando eu estava crescendo. Já conhecia a Eliza, a viúva dele, e um pouco do acervo. Para mim foi um bom motivo para estar perto.
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