Editorial
Muralismo
Uma breve história dos murais zapatistas
Giovana Christ
2 jun 2020, 14h29
O zapatismo é um movimento histórico no México que, além da política, influenciou diversos setores do país, tal como a arte. Os murais pintados dentro de seu território, cobrindo suas paredes e edifícios importantes, são grandes obras que marcaram e ainda marcam a estética do movimento, contando a história dos zapatistas, influenciando novos artistas, e muitas vezes, deixando sua contribuição no mercado da arte.
Acima: Retrato de Emiliano Zapata em um mural (Foto: Kethevane Gorjestani / Divulgação)
O movimento surgiu de forma clandestina na década de 1980 em uma região do sudeste mexicano habitada por povos indígenas deslocados de sua terra nativa por causa da ocupação de terra pelos não-indígenas, que vinham usando a terra para a criação de gado e o cultivo de café. Em decorrência, os indígenas foram expulsos das regiões mais produtivas das montanhas e empurrados em direção às florestas, lugares com o solo menos fértil e, consequentemente, com maior dificuldade de produção de alimentos. A eles, se juntaram guerrilheiros perseguidos pelo exército no pós-Revolução Mexicana que fugiram para as mesmas regiões inóspitas, e assim se formou a comunidade zapatista. Lucas da Costa Maciel, antropólogo especializado na estética criada pelo movimento mexicano, diz que “Na época da clandestinidade já existia muita coisa falando de arte como poesia e teatro, por conta também da tradição guevarista desses guerrilheiros, um pouco inspirados na produção de arte da guerrilha cubana.”
No dia 1º de janeiro de 1994, o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), presente até hoje no país, ocupou as prefeituras de diversas cidades na região de Chiapas e chamou a atenção para suas reivindicações: o fim da marginalização dos indígenas; o combate à corrupção na política local; e o grande gancho do ato, a extinção do NAFTA, tratado de livre comércio entre México, Estados Unidos e Canadá, criado no mesmo dia do levante. A arte zapatista começou a se solidificar já nos momentos iniciais da ocupação. Em uma das reuniões do movimento que recebeu gente de fora — jornalistas que vieram de várias partes do mundo para fazer a cobertura do que estava acontecendo — o primeiro mural conhecido começou a ser pintado, dando início à grande tradição de murais existentes nas áreas ocupadas pelos zapatistas.
MACIEL, Lucas da Costa. Os murais zapatistas e a estética tzotzil: pessoa, política e território em Polhó, México. 2018. Dissertação (Mestrado em Estética e História da Arte) – Estética e História da Arte, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.
É importante pontuar que a tradição muralista mexicana não se originou nos zapatistas. Os maias, maioria étnica entre os povos que fazem parte do movimento, têm uma história extensa com o muralismo. Em zonas arqueológicas mexicanas, existem pinturas de grandes murais que se assemelham à estética muralista zapatista atual, ocupando paredes de edifícios e narrando as histórias dos governantes, de disputas e sacrifícios.
“São povos que estão acostumados com uma tradição visual de murais, o que conflui com as práticas populares e a história ameríndia, indígena, que produz esse tipo de arte”, cita Lucas.
Além da tradição dos maias, o próprio governo mexicano iniciou esforços para criar uma tradição estatal de murais. Entre as décadas de 1910 e 1960, o estado mexicano estava preocupado em produzir uma identidade nacional que contrastava com a arte produzida na Europa. Para isso, contrataram diversos artistas para produzir obras públicas, encomendando pinturas para locais como estações de metrô, edifícios de universidades — como a Biblioteca Central da Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM) — e o interior de prédios públicos. Assim, nasceu o famoso painel “A epopeia do povo mexicano”, obra do artista Diego Rivera pintada entre 1929 e 1935 no palácio nacional, sede do governo mexicano localizado na Cidade do México.
Os murais confeccionados nos territórios zapatistas, no entanto, visam ir contra as premissas de uma única identidade para todos os mexicanos, e sim comemorar as diferenças entre eles, principalmente entre os povos indígenas e não-indígenas.
As zonas territoriais autônomas — conhecidas por caracóis — formadas pelos zapatistas nos territórios ocupados, são renomadas por se assemelhar a museus a céu aberto, com grandes quantidades de murais pintados que podem ser visitados por todos que andam nas ruas. “A tradição no muralismo zapatista tem uma marca forte da saturação de cores, e as cores produzem um contraste muito intenso”, conta Lucas.
Além da tonalidade das pinturas, imagens de milhos com o rosto humano, a figura de caracóis, animais falantes e seres humanos representados de forma lateralizada, referência que vem da tradição mesoamericana maiense, se repetem nas obras. Os murais também serviram como meio de divulgar os ícones do movimento, que estão sempre presentes nas pinturas: nomes como o subcomandante Marcos, porta voz do movimento zapatista desde seu início, e o próprio general Emiliano Zapata. Além disto, diversas figuras representadas nos murais fazem uso das balaclavas e bandanas, opção estética do movimento desde o começo.
Vale pontuar que os critérios estéticos utilizados pela população no geral para avaliar estas obras são diferentes dos que comumente vemos. “Têm peças que são, do ponto de vista da estética da arte ocidental, refinadíssimas, com traços finos, várias técnicas, sob diferentes suportes, com profundidade, algumas realistas, outras mais conceituais. E têm outras que são mais simples, mais chapadas, sem profundidade, sem pretensão de realismo, e, no entanto, não existe um critério de diferenciação entre esses tipos de peças”, diz o antropólogo.
Toda a tradição criada a partir de murais no país influenciou diversos movimentos artísticos criados desde então no México, muitas vezes não chegando diretamente ao mercado da arte, mas pontuando algumas características e conceitos conhecidos dos murais.
As imagens zapatistas também circulam pelo mundo e fazem parte de um imaginário de utopia, podendo ser encontradas em referências de diversos países. “Você vai a Buenos Aires e encontra uma replicação de um mural, você caminha pela cidade de Paris e encontra folhetos, pequenas imagens zapatistas sendo vendidas”, conta Lucas.
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