Editorial
Os pontos altos da mostra dedicada a um dos maiores expoentes da arte brasileira mundo afora; confira!
18 out 2019, 16h32
Texto felipe molitor
fOTOS ALEXANDRE DROBAC
Coloque um gelo doce e um gelo salgado ao mesmo tempo na boca antes de caminhar brevemente por um túnel quente e sem saída. Esta é a senha de entrada para “Entrevendo”, instalação que nomeia e abre o percurso da maior exposição de Cildo Meireles realizada no país em dezenove anos. A grande estrutura horizontal no espaço e a premissa de interação com a obra despertam curiosidade nos visitantes do Sesc Pompeia, em São Paulo, onde a mostra ocupa inicialmente a área de convivência, o galpão e também o deck da antiga fábrica. Parece um convite um tanto sombrio quando colocado assim, solto. O que se busca, entretanto, é que a ativação simultânea dos cinco sentidos, em curto deslocamento, nos situe no território de questões referidas na exposição e instaure um estado de alerta: as sensações podem ser traídas, e dali para frente será preciso duvidar dos sentidos.
A curadoria de Júlia Rebouças e Diego Matos reúne cerca de 150 trabalhos de Cildo – entre instalações, desenhos, objetos, situações – que perpassam cinco décadas de uma trajetória fundamental para a arte brasileira, que consta nos livros de história da arte mundo afora e, ao mesmo tempo, pulsa com o presente. Optou-se por quebrar a linha cronológica e formalista com o intuito de oferecer entradas mais amplas, conjugando relações entre as obras a partir de verbetes quase científicos como “medida”, “deflagração”, “resistência”, “linguagem” e “memória”. Para guiar-se, valeria “ir de encontro” e não “ao encontro” das obras, como comentado por Diego Matos durante visita à mostra. É preciso colidir os conceitos apresentados pelos curadores com os trabalhos para encontrar outras camadas de entendimento sobre, por exemplo, de que maneira e com qual finalidade alguns trabalhos nos demandam participação, os deslocamentos virtuais e reais do espaço e do tempo, além dos arcos entre o momento de concepção das obras e sua contundente reatualização.
Na área de convivência
“Entrevendo” é parte da série “Blindhotland“, desenvolvida principalmente ao longo dos anos 1970, quando Cildo viveu em Brasília. A palavra se assemelha sonoramente a um palavrão gringo, e quando traduzida, “terracegaquente”, traz uma pista da opinião do artista sobre nossa condição nacional à época. “Eureka” (1970-75) desequilibra nossa maneira de mensurar, apenas através dos sentidos, os pesos e as medidas das coisas. O nome do trabalho remete ao súbito estalo do filósofo grego Arquimedes ao descobrir uma maneira de calcular a proporção entre peso e volume. Na instalação, acessamos um ambiente lúgubre, cindido das leis naturais da física, com uma lâmpada de escritório iluminando melancolicamente uma balança e o chão cheio de bolas, que parecem ser feitas de borracha. Antes desse trabalho, “Para ser curvada com os olhos” (1970-75) apresenta duas barras de ferro claramente distintas em uma caixa com a inscrição “duas barras de ferro iguais e curvas” – são poéticas que embaralham a apreensão dos limites do nosso corpo, e que em seguida, desafiarão a arbitrariedade de fronteiras ainda maiores, da geografia e da matemática, como os diversos gestos e registros da longa série “Arte física“, iniciada em 1969, em torno das linhas imaginárias do continente.
Engajamento
As instalações “Olvido”, “Amerikkka”, “Missão/missões (como construir catedrais)”, são as obras de maior literalidade material, em que o acúmulo provoca forte impacto visual e presentifica maciçamente suas intenções. Todavia, é importante notar como, através de procedimentos específicos e a partir de outro lugar de fala, esses trabalhos demonstram como o pensamento decolonial há muito está demarcado e atravessando a arte brasileira, se entendermos o próprio fazer artístico como produtor de conhecimento ativo na sociedade. “Olvido” (1987-1989), falso cognato entre nosso membro auditivo e “esquecimento” em espanhol, é constituída por 70 mil velas brancas religiosas, que cercam três toneladas de ossos de bois e uma tenda indígena norte-americana feita com cédulas de dinheiro de países latinos. No interior da cabana, o carvão e um barulho de motosserra amplificam o assombro. “Amerikkka” (1991-2013) alude à Klu Klux Klan, organização estadunidense fundada no século 18 e que prega o supremacismo branco: o visitante pisa sobre uma base de ovos enquanto é ameaçado por um teto de balas reluzentes. Com alusões formais, conceituais e críticas ao barroco brasileiro e seu momento histórico, “Missão/missões (como construir catedrais)” (1987-2019) é uma instalação em que uma coluna de hóstias consagradas conecta um céu de ossos a um piso de moedas. As obras ganham pertinência espantosa em meio às sombras que inebriam nosso tempo, fazendo eco às discussões contemporâneas sobre as crises socioambientais e os apagamentos históricos trazidos à tona a custo da resistência dos grupos mais marginalizados pelo processo colonial e, atualmente, neoliberal.
O curador Diego Matos explicou que muitos artistas da geração de Cildo conduziram a ideia de participação com a obra de arte quase como uma necessidade de engajamento político, que devolve para o espectador o papel do agente que faz o trabalho acontecer – visão essa que remove uma noção lúdica de participação pela participação, e compreende a dinâmica e a fragilidade da arte de forma mais adequada. Compromisso ético semelhante está dado em “Inserções em circuitos ideológicos” (1970-2019), possivelmente um dos legados mais conhecidos de Cildo e que nada tem de panfletário. Diz o verbete dos curadores: “A definição de ‘modo e meio’ enquanto equação operacional para a arte constitui uma das hipóteses para a pesquisa e o fazer artístico de Cildo Meireles. Para ele, tal perspectiva crítica e contextual compreende uma visão sintética dos modos de produção, circulação e interpretação das artes na esfera pública”.
de saída
Não menos importante, o galpão reúne e exibe obras de maneira mais intimista, adicionando outras tonalidades para a mostra e repercutindo os desenhos e esquemas que estavam na área de convivência. Ali também estão outros trabalhos icônicos de Cildo, como o “Razão/loucura“ (1976), outro exemplo de conceitos caros à mostra: através de um truque com correntes e cadeados, somente a loucura poderia operar uma abertura efetiva para outras possibilidades de apreensão do mundo. Diversos trabalhos da série “Espaços virtuais: cantos“ (1967-1968/2008/2013), pinturas à óleo sobre tela que imitam quinas de paredes tortas, estão agrupados em um mesmo ambiente, deixados de tal forma que revelam seus versos e truques. A rota de saída da exposição, tanto por motivo conceitual quanto expográfico, é através de “Volátil” (1980-1994), onde uma única vela incandeia uma sala totalmente escura, com pó de talco no chão, e cheirando a gás. O estado de tensão provocado converte-se em sensação de iminência, no eterno jogo de Cildo que não separa estética e política. Dá para sair dali em explosão revolucionária.
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