Editorial
Artigo
Um celeiro comunitário para Kassel
Ela Bittencourt
4 mai 2022, 13h09
Baseada na noção de coletividade, será inaugurada em junho a documenta 15, com curadoria do ruangrupa – coletivo artístico com sede em Jacarta, Indonésia, fundado em 2000. Não poderia acontecer em momento mais difícil: a pandemia e a guerra na Ucrânia lançam sérias dúvidas sobre se o mundo globalizado pode responder cooperativamente às suas próprias crises. No contexto da arte, certamente há uma questão sobre o que “global”, ou “globalizado”, significa. As enormes e cada vez mais extensas vitrines internacionais de arte tornaram-se ecologicamente e comunitariamente insustentáveis, mesmo antes da guerra e no pré-pandemia. Para quem são as bienais em tempos de desigualdade generalizada? Trabalhadores de museus fazem greve por melhores salários (“Workers Make Biennials” foi um grito de guerra dos trabalhadores de museus na recém-inaugurada Bienal do Whitney Museum, em Nova York). Os ativistas expõem inúmeras maneiras pelas quais a arte pode ser cooptada para lavar fortunas de produtores de armas, grandes empresas farmacêuticas, apoiadores de ocupações colonizadoras e destruidores do meio ambiente. As várias formas de protesto contra essas forças chamam a atenção para o resgate da ideia de coletividade, não apenas como uma resposta imediata e temporária, mas como um esforço sustentado.
O ruangrupa se inspira, para a documenta, no conceito de lumbung: celeiro da arquitetura vernacular indonésia para armazenamento comunal de produtos agrícolas, mais comumente arroz – termo que, no entanto, os membros do ruangrupa consideram ter vasto significado metafórico, indo da cosmologia, como evidenciado pelas sociedades pré-históricas, à tecnologia: tanto um hardware quanto um software. Em sua declaração curatorial, os artistas propõem “uma plataforma de arte e cultura globalmente orientada, cooperativa e interdisciplinar que permanecerá eficaz além dos cem dias (…) um modelo colaborativo de uso de recursos – economicamente, mas também em termos de ideias, conhecimento, programas e inovação.”
Acima: ruruHaus, sede da documenta 15, em 2020. Foto: Nicolas Wefers
Em seu ensaio sobre a história da grande mostra em “documenta: Curating the History of the Present”, o teórico da arte inglês Peter Osborne sugere que, enquanto os críticos de arte tendem a colocar desproporcionalmente em primeiro plano a novidade – de certa forma, mitificando a “ruptura com o passado” – a contemporaneidade pode ser melhor entendida como “não mais [destinada] a superar a história, mas uma retomada autoconsciente dela”, uma reativação de formas e ideias passadas. Certamente é possível perguntar como essa 15ª edição pode se relacionar com a história da documenta. Uma maneira é através da ênfase em ambientes, em vez de obras de arte distintas. A ideia está há muito presente na própria prática coletiva do grupo, como evidencia sua participação na 31ª Bienal de São Paulo, “Como (…) coisas que não existem”, em 2014, em que o ruangrupa apresentou uma instalação em andamento, “RURU”, construída a partir dos diálogos do grupo com coletivos locais em São Paulo.
A documenta não é alheia aos esforços de abertura ao engajamento social. Organizada pela primeira vez em 1955, em Kassel, na Alemanha, a mostra surgiu após a Segunda Guerra Mundial com o objetivo inicial de recuperar os legados das vanguardas alemãs do pré-guerra, especialmente a arte “degenerada”, banida pelos nazistas. Rapidamente mudou de rumo para defender a arte contemporânea, eurocêntrica e americana no início, com cerca de 30 anos para incluir substancialmente a África, Ásia, Austrália e América Latina. A documenta 5, de Harald Szeemann, em 1972, é frequentemente creditada como a primeira edição a se abrir para a arte não-ocidental. A autonomia do objeto de arte – que alega a separação da arte da esfera sociopolítica – foi contestada logo no início da história da documenta: da recuperação dos legados da Bauhaus e Berlin Dada à crítica institucional, por exemplo, na mesma documenta 5. Mesmo a arte abstrata dos anos 50 e 60 foi defendida como uma marca de liberdade pessoal, mas também política, particularmente quando enquadrada em contraste com a arte socialista-realista “não livre”, o figurativismo da Alemanha Oriental e do Bloco Soviético. Ainda assim, a documenta atraiu críticas cada vez mais focadas no espetáculo e no burburinho da mídia. A documenta 9, de Jan Joet, em 1992, é um exemplo-chave.
No entanto, a documenta tem precedentes históricos de uma abordagem mais ambiental do que baseada em obras de arte. Em 1997, a diretora da documenta 10, Catherine David, imaginou uma plataforma interdisciplinar: o Hybrid WorkSpace era um laboratório de mídia temporário, concebido por David com Hans Ulrich Obrist, Klaus Biesenbach e Nancy Spector, instalado em um apartamento de cinco cômodos. A iniciativa apresentou projetos de 15 grupos de artistas, ativistas, críticos e convidados, em torno de temas como imigração, tecnociência, publicação offline e ciberfeminismo – ampliando o alcance da documenta de forma mais dialógica. Outra plataforma foi criada pelo diretor da documenta 11, Okwui Enwezor, em 2002. Desta vez, significou uma série de seminários, ocorrendo em Berlim, Nova Delhi, Lagos, Kassel e Santa Lúcia, antes da abertura da exposição em Kassel. A plataforma repensada de Enwezor enfatizou a teoria pós-colonial, migração, deslocamento e desterritorialização, desafiando a hegemonia norte-atlântica das edições anteriores.
O ruangrupa implementou um modelo de plataforma, online, através do canal da documenta no YouTube. Desde o verão de 2021, eles transmitiram ao vivo e enviaram uma série de sete conversas entre artistas, coletivos e ativistas como parte do programa público do lumbung sobre temas como suficiência, generosidade, independência e transparência, para combater narrativas únicas. Na conversa “Local Anchor”, Melanie Budianta, professora indonésia de literatura que pesquisa ativismo artístico e movimentos de mulheres, e Armin Salassa, agricultor indonésio e ativista em agricultura natural, discutiram como a ideia de lumbung é evocada pelas comunidades contemporâneas em áreas variadas, ou seja, na prática culinária, com diversas tecnologias (sites, cafés, etc.) e distribuição consciente.
Onde o modelo de ruangrupa parece novo está em propor a coletividade não apenas como uma questão de representação (apresentação de coletivos), mas como estratégia curatorial e, de certa forma, estendendo o impulso por trás de iniciativas dentro da documenta, como The Hybrid WorkSpace, para todo o evento. Embora tenham havido algumas tentativas de uma curadoria mais inclusiva e popular na história da documenta – foi um comitê de 26 pessoas para a documenta 4, em 1968, por exemplo -, em geral, a abordagem do ruangrupa se afasta do modelo padrão das edições anteriores que, ao mesmo tempo em que apresentavam grupos e ações coletivas, dependiam em grande parte dos carismas individuais de seus diretores. Ou seja, a documenta de Enwezor – frase propositiva que por si só sugere um cunho autoral singular – apesar de ter seis cocuradores, foi descrita pelo crítico de arte Thomas McEvilley em Frieze: “toda a imensa exposição parecia obra de uma única mente, não de sete mentes diferentes”.
Ruangrupa é o primeiro coletivo de artistas, ao invés de curadores, a dirigir a documenta. A próxima Bienal de São Paulo também contará com uma artista, a portuguesa Grada Kilomba, e a Bienal de Liverpool, em 2023, terá curadoria da artista sul-africana Khanyisile Mbongwa. Pela ênfase no trabalho em consenso, na organização em assembleias originalmente concebidas como presenciais, transferidas para o Zoom na pandemia, pode-se dizer que o coletivo ruangrupa evoca os legados e o ethos de artistas-trabalhadores e assembleias de arte da década de 1960 e os anos 70: a efêmera Art Workers Coalition, fundada em 1969, em Nova York, é apenas um exemplo que me vem à mente.
À medida em que a documenta 15 se aproxima, a questão passa a ser como uma curadoria coletivizada transformará a experiência de visualização e nossa capacidade de vislumbrar um futuro comunitário. Uma esperança para o modelo coletivo foi articulada pela curadora Julieta González, que atualmente dirige o Inhotim, em sua introdução ao livro “Onde Vive a Arte na América Latina (2021)”. Nela, González define “oikonomia: a gestão da casa” como uma experiência de arte mais experiencial, orgânica e convivial, que surge de preocupações de organizações locais diretamente ligadas às necessidades de suas comunidades. González toma emprestado um insight fundamental de Félix Guattari, cujo conceito de “revolução molecular” captou esperança no que o teórico francês chamou de “vitalidade micropolítica”, uma mobilização de base, dentro de quadros informais (Guattari visitou o Brasil em 1982, viagem registrada em livro, Revolução Molecular no Brasil). Transplantando o conceito de Guattari para o mundo da arte, González pede um afastamento de eventos que privilegiam a institucionalização, estreitamente centrados na coleção de objetos de arte e, em vez disso, colaborações orgânicas de grupos menores, mais atentos às necessidades locais. A esperança é de que, ao colocar em primeiro plano as redes desses grupos menores e de artistas trabalhando em colaboração, as instituições maiores também possam aprender a pensar de forma mais crítica, expansiva e inovadora. O desafio para o ruangrupa então se torna se, e como, Kassel pode efetivamente se tornar um hub para uma documenta global mais inclusiva que, embora sustente o sentido de uma rede expandida, esteja enraizada nas comunidades locais. Uma iniciativa que parece cumprir esse modelo está no trabalho do ruangrupa com centros para requerentes de asilo, o Trampoline Huset, em Copenhague.
ruangrupa reconhece que para a documenta 15 funcionar como uma plataforma de recursos, suas redes colaborativas devem se estender além dos cem dias do evento. Esta preocupação reflete-se até agora na selecção dos artistas e colectivos convidados para Kassel. Entre os 51 artistas/grupos, a brasileira Graziela Kunsch é um exemplo de artista socialmente engajada, que insere seus projetos nas comunidades locais. Por exemplo, entre 2001 e 2003, Kunsch abriu sua casa como um espaço semi-público, a Casa da Grazi, para organizar residências e exposições colaborativas. Na 29ª Bienal de São Paulo, a instalação em andamento de Kunsch, Projeto Mutirão, 2007, foi composta por vídeos, som, móveis e uma biblioteca – os vídeos apresentados como excertos, cada um usado para
iniciar uma nova conversa com o público. Kunsch enfatiza uma abordagem aberta ao trabalho em vídeo, em que a duração temporal mais longa, em vez de uma ênfase em um arco narrativo com início, meio e fim, permite que ela capture melhor a natureza complexa da construção de comunidades, projetos urbanos etc. No catálogo da 31ª Bienal de São Paulo, Kunsch propõe o papel do artista como um mediador: a “mediação crítica” (termo de Kunsch) funciona fora dos marcos educacionais habituais. A ideia é consistente com a prática de Kunsch, que privilegia as redes informais sobre as formais, ou seja, adjacentes aos movimentos populares, como o Passe Livre, e os esforços colaborativos, a Clínica Pública de Psicanálise na Vila Itororó, centro comunitário de psicanálise, que Kunsch dirigiu, juntamente com Daniel Guimarães, de 2016 a 2020, em prédio histórico em São Paulo.
A ênfase de Kunsch no local, colaborativo e comunitário, na funcionalidade, no diálogo, na mediação e na informalidade ecoam no ethos de ruangrupa e no tipo de presença que eles esperam ter em Kassel, que eles descreveram em uma entrevista recente à Artnet: “Nós alugamos casas e nos transferimos de casa em casa depois de as transformar num espaço mais público. Consequentemente, entendemos o termo ‘público’ de maneira diferente das instituições públicas. Nós apenas abrimos espaços sem chamá-los de ‘espaço de exposição’ ou ‘espaço de residência’, ou encaixotá-lo com esses termos. As atividades acontecem lá. Não é metafórico; é um espaço que achamos que pode realmente funcionar.”
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