Editorial
Glosas sobre colonialidade, arte, América Latina e Brasil, por Maria Angélica Melendi para publicação especial da SP-Arte
20 mai 2019, 16h03
(…) habrá un momento para todos nosotros en el que no seremos ni Peruanos, ni Bolivianos, ni Argentinos, ni Dominicanos, ni Haitianos, ni Uruguayos, ni Venezolanos, ni Ecuatorianos, ni Colombianos, ni Centroamericanos… seremos todos latino-americanos!
José María Torres Caicedo
Meu sangue latino/minh’alma cativa…
João Ricardo e Paulinho Mendonça
Sob o mesmo sol
Em 1987, Times Square, o centro turístico de Nova York, era um bairro de teatros pornô, prostitutas e viciados. Naquele local, em um grande painel instalado logo acima da longa faixa que transmite as notícias da bolsa de valores, luzes amarelas atravessam o contorno de um mapa dos Estados Unidos e anunciavam: “This Is Not America” [Isto não é América]. “This Is Not America’s Flag” [Isto não é a bandeira americana] lia-se em seguida sobre a luminosa imagem da bandeira estadunidense. Finalmente, a palavra “América” surgia e, em seu centro, o mapa do continente americano. De autoria do artista chileno Alfredo Jaar, o trabalho “A Logo for America” [Um logo para a América], uma animação sobre painel luminoso, exibido pela primeira vez naquele ano, foi remontado no Times Square em 2014. Em 2016, a obra também iluminou o Piccadilly Circus, em Londres, Reino Unido, como parte da exposição de arte latino-americana contemporânea “Under the Same Sun” [Sob o mesmo sol], promovida pela South London Gallery, e em 2018 integrou o Faena Festival como intervenção pública.
“A Logo for America” remete à pintura do artista belga René Magritte, “La trahison des images (Ceci n’est pas une pipe)” [A traição das imagens (Isto não é um cachimbo)] (1929), mas transforma a afirmação contida no quadro em comentário político. Apesar do que pensam a maioria dos estadunidenses, os Estados Unidos não são a América, porque América é o nome de um continente, não de uma nação. Um continente onde se multiplicam várias Américas, onde habitam os sobreviventes dos povos originários e os descendentes dos africanos escravizados, dos conquistadores espanhóis e portugueses e das levas migratórias do século 20.
Patria Grande, Nuestra América, Indo-América
O conceito de América Latina teria se forjado na França, durante o século 19, como um derivado da ideia de “latinidade” e com o objetivo de se opor à persistente expansão dos Estados Unidos em direção ao sul do continente. O estudioso Walter Mignolo afirma que a América Latina é um projeto político das elites “criollas” e mestiças:
«A “ideia” de América Latina é a triste celebração por parte das elites “criollas” de sua inclusão na modernidade, quando em realidade se afundaram cada vez mais na lógica da colonialidade. (…) A palavra “latinidade” englobava uma ideologia na qual se incluía a identidade das antigas colônias espanholas e portuguesas na nova ordem de um mundo moderno / colonial, tanto para os europeus como para os americanos.»
Na última metade do século 19 (e até pouco tempo), na América do Sul e no Caribe, latinidade identificava uma sociedade civil instruída que, além do espanhol ou do português, falava também o francês, pois, culturalmente, voltava-se para a França e ignorava a Península Ibérica. Ainda, a ideia de integração dos povos latino-americanos para além das fronteiras de seus países esteve presente no projeto do venezuelano Simón Bolívar – projeto que acabou derrotado. Na sequência, durante os séculos 19 e 20, o conceito torna-se uma ideia menos prática do que lírica: às denominações Patria Grande e Nuestra América, soma-se a de Indo-América, criada pelo peruano Víctor Raúl Haya de la Torre que retoma as ideias de Bolívar para construir seu ideal de defesa continental frente ao imperialismo.
Inmensa luna, cielo al revés…
Se pensarmos na conformação física da América Latina, percebemos o aspecto triangular e ístmico de seu traçado. Uma imponente cadeia montanhosa, a cordilheira dos Andes acompanha o oceano Pacífico da Venezuela ao estreito de Magalhães como uma longa muralha seguindo em direção ao sul. Segundo o historiador francês Pierre Chaunu, tal característica contribuiria para a “vocação atlântica” dessas nações e para sua “dificuldade de se realizar como um todo”. Dessa forma, a verticalidade alongada percebida em Nuestra América acentuaria os vínculos com a Europa e seria um dos motivos do isolamento entre os países que a constituem.
A “vocação atlântica” de que falamos também foi determinante para as formas de população do continente, que viu grandes cidades crescerem e prosperarem ao longo do litoral, deixando o interior quase deserto. Nem a aventura modernista de Brasília, afastada de tudo e de todos, conseguiu reparar essa falha de origem. O litoral do Pacífico, por sua vez, prensado pela cordilheira, teve um desenvolvimento diferente: por muito tempo, a América Latina buscou na Europa seu espelho invertido.
Nós sempre tivemos Paris (ou Nova York ou Berlim…)
Durante o período colonial, o esplendor das artes barrocas, impulsionado pela Espanha e por Portugal, expandiu-se nos vice-reinados do México e do Peru (e em menor escala em Guatemala, Equador e Brasil). Os artistas e arquitetos oriundos das metrópoles formaram novos mestres, agora nativos, que contaminaram o barroco europeu com os traços da cultura local. Criaram, assim, um novo barroco – um barroco-outro –, que definiria um momento histórico-estrutural heterogêneo na estrutura complexa do mundo moderno / colonial.
Depois da expulsão dos jesuítas do império espanhol no ano de 1767, fundou-se no México, em 1781, a Academia de San Carlos, que nasceu como Academia de las Tres Nobles Artes de San Carlos: arquitectura, pintura y escultura de la Nueva España e seguia o modelo das academias europeias. No Brasil, a Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, ativa entre 1816 e 1822, e que se tornaria, posteriormente, a Academia Imperial das Belas Artes, até 1989, foi fundada por um decreto de Dom Joao VI, sob orientação da Missão Francesa. À época, os vice-reinados mais ricos da América Hispânica receberam academias de artes antes dos domínios pecuários do sul do continente.
Já no século 19, bolsistas passavam temporadas em Paris ou em Roma, onde treinavam técnicas para pintar as telas fundacionais de suas novas nações. Mais tarde, os modernistas latino-americanos também desfrutaram longos períodos em Paris. Durante estadia na capital francesa, o mexicano Diego Rivera e a brasileira Tarsila do Amaral estavam sempre rodeados de outros pintores e artistas latino-americanos, como o chileno Manuel Ortiz de Zárate e os mexicanos Gerardo Murillo e Roberto Montenegro. Rivera frequentou os círculos artísticos de Montmartre e Montparnasse, onde conheceu Amedeo Modigliani, Piet Mondrian e Pablo Picasso; também em Paris, o pintor teve contato com imigrantes russos, daí sua amizade com Leon Trótski, Ígor Stravinski e Ilya Ehrenburg. O ateliê de Tarsila de Amaral, na rua Hégésippe Moreau, era o ponto de encontro da vanguarda europeia e latino-americana. Supõe-se que foi durante esses encontros que Tarsila e Oswald de Andrade conheceram o indigenismo que impulsava a criação literária e pictórica de muitos artistas latino-americanos à época. O trânsito para a França continuaria: em 1926, o pintor uruguaio Joaquín Torres García mudou-se para Paris, onde conheceu o neerlandês Theo van Doesburg e os membros do grupo De Stijl, entre eles Mondrian. Em 1929, Torres García fundou, ao lado desses artistas e de Michel Seuphor, o grupo Cercle et Carré, que teve publicação de mesmo título em periódico. De 2 de fevereiro de 1953 a 2 de fevereiro de 1954, como consta em sua carte de séjour [autorização de residência na França], o argentino Edgardo Antonio Vigo também morou em Paris, como estudante-bolsista. Lá, Vigo conviveu com o grupo de intelectuais, músicos e artistas liderado pelo venezuelano Jesús Rafael Soto. Naqueles anos, Soto ganhava a vida como concertista de violão em um cabaré de Paris, onde, entre uma atuação e outra, ele e seus companheiros discutiam arte e música: “Os cafés de Paris, como as universidades, são algo real. Não íamos à Grand Chaumière, nem à École des Beaux-Arts, nem a nenhum lugar desses”. Era o tempo da música dodecafônica e das primeiras experiências do Groupe de Recherche de Musique Concrète e da Elektronische Musik, que Soto acompanhava, e através dos quais aliava o conceito do dodecafonismo a uma escritura plástica.
León Ferrari, Alberto Greco, Martha Boto – argentinos –, Cícero Dias, Arthur Luiz Piza, Lygia Clark – brasileiros –, Wifredo Lam – cubano –, Roberto Matta – chileno –, Rufino Tamayo – mexicano –, Carlos Cruz-Diez – venezuelano –, e muitos outros, contribuíram para a construção de uma imagem peculiar: a do artista latino-americano em Paris. De certa forma, também contribuíram para confirmar um lugar-comum: o de que os latino-americanos nunca se encontravam em seus países de origem, sempre na capital da França. Em poucos anos, a capital europeia deixaria de ser o centro de atração intelectual. A partir dos anos 1960, os artistas partiriam para a cidade de Nova York, que, após o fim da Segunda Guerra Mundial, roubou de Paris o conceito de arte moderna, conforme afirma o historiador de arte Serge Guilbault. A ação conjunta do Itamaraty e das fundações Guggenheim e Rockefeller atraíram para os Estados Unidos artistas como Luis Camnitzer, Liliana Porter, Hélio Oiticica, Rubens Gerchman, Abdias Nascimento e muitos outros. O historiador Daniel Emilio Rojas destaca, porém, a existência de uma distinção secular entre o Brasil e o resto das nações latino-americanas, no que se refere ao trânsito cultural:
«Salvo pelos casos do periódico Le Brésil ou da pintora Tarsila do Amaral, a cisão entre uma América hispânica e outra portuguesa continuou tendo um peso considerável e seria um erro pensar que o credo continental lograria superá-la. Os contatos esporádicos entre brasileiros e hispano-americanos não foram suficientes para acreditar que houve um diálogo e uma compenetração efetivos.»
Ao longo dos anos, essa distinção transformou-se em uma relação tensa, porém, produtiva. O acadêmico Robert Patrick Newcomb afirma que a relação entre o Brasil e a América Hispânica pode ser definida, por um lado, pela forte projeção da ideia de união – a Nuestra América – e, por outro, pela afirmação brasileira de uma singularidade nacional. Enquanto intelectuais hispano-americanos como José Enrique Rodó e Alfonso Reyes ressaltaram a unidade do Brasil com o restante dos países latino-americanos, os brasileiros Joaquim Nabuco e Sérgio Buarque enfatizaram as peculiaridades do país. A coexistência entre as duas tradições culturais persiste, e é impregnada por ideias falsas, contradições e mal-entendidos.
Foi provavelmente nas décadas de 1960 e 1970 que as artes brasileiras se identificaram mais profundamente com o restante da América Latina. O trabalho “A Nova Geografia / Homenagem a Torres García” (1971), de Rubens Gerchman, reconduz a questão identitária latino-americana aos debates da segunda metade do século, como também o faz Antonio Manuel, na instalação “Soy loco por ti” [Sou louco por ti] (1969), e Claudio Tozzi, em suas várias pinturas que aludem à situação do continente. A música popular também entoa a raiz comum da latinidade ou mistura o português ao espanhol – “antes que a definitiva noite se espalhe em Latino-América”.
Em algum lugar entre l’Extrême-Occident e the Global South
O diplomata e acadêmico Alain Rouquié subtitula seu livro sobre a América Latina de Introducción al extremo occidente [Introdução ao Extremo Ocidente] (1987). No entanto, com relação aos estudos de história da arte, a arte que se produz na América Latina é nomeada por vários intelectuais deste campo como a non western art [arte não ocidental].
A arte ocidental (e também a história da arte) é uma invenção europeia. A exposição “Westkunst. Zeitgenössische Kunst seit 1939” [Arte Ocidental, arte contemporânea desde 1939], montada em 1981, em Colônia, na Alemanha, se propunha a agrupar a arte produzida depois de 1939, ao reivindicar a existência de uma “modernidade não esgotada” durante a Segunda Guerra Mundial. Na mostra, os curadores Laszlo Glozer e Kasper König invocaram a continuidade de uma modernidade universal. Apesar de interrompida durante o regime nazista, tal modernidade teria florescido na América do Norte, a partir das mãos de artistas emigrados. De acordo com o historiador de arte alemão Hans Belting, a exposição teria representado o marco em que a “modernidade suspensa” europeia se completaria com a participação dos Estados Unidos, país cujas criações se integram, assim, à arte ocidental. As tardias modernidades latino-americanas (modernidades sem modernização), trazidas da Europa ou dos Estados Unidos pelos artistas do sul ou pelos mesmos modernistas europeus – lembremos as viagens de Marinetti pelas Américas ou as de Blaise Cendrars ao Brasil –, pretendiam introduzir o imaginário moderno-industrial em países ainda extrativistas. A Bienal de São Paulo é outra mostra reveladora desse propósito: durante muito tempo, a produção das metrópoles era destaque.
Já em 1984, a primeira Bienal de La Habana limitou seu campo de pesquisa aos artistas da América Latina, incluindo o Caribe. Desde sua segunda edição, em 1986, o foco ampliou-se e artistas da África, Ásia e do Oriente Médio passaram a integrar o programa, com o qual se afirmou um lugar de encontro para artistas “não ocidentais”. Assim, a atenção concentrou-se, de maneira inédita, nos artistas do sul, cujos trabalhos apresentam situações e conflitos comuns à cada região. É possível afirmar que, a partir dessa Bienal, o Ocidente começa a olhar para além de seus limites: um olhar para o que hoje conhecemos como o Sul Global.19 Há de se acrescentar a multiplicação das grandes exposições que – de Veneza a Berlim – abriram as portas para a non western art.
Brasil é ¡América Latina!
O artista uruguaio Joaquín Torres García produziu uma imagem desnaturalizada do continente americano em seu desenho-manifesto “Mapa invertido” (1943). De acordo com Walter Mignolo, traçar o mapa da América do Sul com o sul apontando para o topo da página, como o fez Torres García, é um começo importante, mas não é suficiente: a representação muda o lugar de enunciação, mas persistem os termos do diálogo que ainda se mantém entre um sul e um norte mesmo que deslocados e os vazios gerados pela perda da cartografia indígena e da afro-americana. Em Mapa invertido, incluía-se o Brasil; já em A Logo for América, de Jaar – trabalho com o qual inauguramos esta discussão –, o país foi excluído, assim como o restante da América Latina e do Caribe. Se para os latino-americanos que falam o espanhol, o Brasil sempre fez parte da latinidade, esta é uma realidade refutada pela maioria dos brasileiros. Nesse contexto, uma dificuldade inaugural seria a língua; outra, o afastamento histórico, iniciado no processo de independência do estado brasileiro em relação aos países latino-americanos, para que as ideias republicanas permanecessem distantes do território nacional.
Em 2018, o jovem artista mineiro Randolpho Lamonier apresentou na exposição “MitoMotim”, realizada no galpão do Videobrasil, o trabalho “Profecias”, uma série de painéis de tecidos coloridos, ao modo de estandartes, nos quais revelavam-se irônicos presságios que oscilam entre o desejo e a fantasia utópica. Em um deles, em letras garrafais, sobre um fundo multicor em que se juntavam flores, armas, caveiras, cobras, guias de umbanda e símbolos cristãos, lia-se: EM 2050 DESCOBRIMOS: BRASIL É ¡AMÉRICA LATINA!. O trabalho de Lamonier é a resposta irônica a um debate que parece se alongar através dos séculos. Teremos que esperar até 2050 para lograr essa unidade tão adiada? Entre perguntas, propostas e presságios o território do sul desliza: cartografia de um desejo, espaço de projeção, margem, fronteira, norte.
Maria Angélica Melendi é pesquisadora e professora do programa de pós-graduação em Artes da Escola de Belas Artes (UFMG). Investiga as relações entre arte visual, memória, violência e política na América Latina. É autora de Lorenzato (C/Arte, 2011); Estratégias da arte em uma era de catástrofes (Cobogó, 2017), finalista do Prêmio Jabuti (2018); e organizadora de Diálogos entre linguagens (C/Arte, 2009), entre outros.
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