Retratistas do Morro - Afonso Pimenta, "Aniversário de 6 anos da Renatinha", 1988. Cortesia do artista
Artigo

Rotas diaspóricas, rotas migratórias

Mateus Nunes
24 jul 2023, 16h47

Para além das subjetividades e expressões pessoais, as produções artísticas são estruturadas por sistemas culturais que englobam, de modo coletivo, tradições, sistemas de pensamento e formas de enxergar o mundo. Pensar o Brasil é refletir sobre seus movimentos e cruzamentos: fluxos diaspóricos forçados, vindas em busca de exílio, migrações internas em buscas de sonhos.

Resultado de uma tessitura extremamente rica por seus intercâmbios e hibridismos culturais, a arte contemporânea brasileira é paulatinamente amparada por dispositivos analíticos que revisam uma hegemonia eurocêntrica instaurada pela invasão colonial e pelos seus sucessivos movimentos de rebote na história. Rotas brasileiras são, portanto, rotas migratórias e diaspóricas, em encontros múltiplos muito maiores do que esse texto pretende ilustrar a partir das obras de alguns artistas que reiteram a diversidade cultural brasileira.

Acima: Retratistas do Morro - Afonso Pimenta, "Aniversário de 6 anos da Renatinha", 1988. Cortesia do artista

Em contemplativas paisagens pintadas sobre seda, Fran Chang (Millan) utiliza-se da gênese de lugares como dispositivo de acolhimento. Testemunho da migração taiwanesa para o Brasil, os aspectos pacíficos e solitários demonstram as dores dessa diáspora, escapando de amarras misóginas e sistemas sociopolíticos conservadores. Mesmo a desviar dessas chamas, eternizadas em cicatrizes e traumas pessoais e familiares, reencontra com a violência através da crescente sinofobia no Brasil. Além de reafirmar suas origens no âmbito matérico – executa tradicionais técnicas de pintura sobre uma seda translúcida esticada sob o chassi de madeira, em cujo verso assina seu nome em sinogramas em guóyǔ – Chang retrata paisagens plácidas que legam possibilidades de existências em plenitude.

Fran Chang, After Laughter Comes Tears, 2023. Cortesia Galeria Millan - foto: Ana Pigosso

Fran Chang, After Laughter Comes Tears, 2023. Cortesia Galeria Millan - foto: Ana Pigosso

Fran Chang, Trust Won't Always be on Solid Ground, 2023. Cortesia Galeria Millan - foto: Ana Pigosso

Fran Chang, Trust Won't Always be on Solid Ground, 2023. Cortesia Galeria Millan - foto: Ana Pigosso

Partindo da análise da diáspora africana e da constituição da cultura afro-brasileira, Ayrson Heráclito (Paulo Darzé) concentra-se nos deslocamentos entre a África e o Brasil: quase todos forçados, na violência desumana da escravização colonial e da mercantilização do corpo; embora inúmeros de resistência e força, como o avivamento de tradições, oralidades e sistemas simbólicos. A água do Atlântico é fluxo vivo pois permite o retorno, assim como o azeite de dendê que compõe o sangue ancestral do corpo afrodiaspórico. Heráclito movimenta-se também como atestado de liberdade e insubordinação a amarras históricas: além de robusta prática acadêmica, transita entre múltiplas plataformas artísticas a fim de denunciar as correntes de dor e apagamento, ao mesmo passo que louva os movimentos de resiliência, continuidade e vida.

Ayrson Heráclito, Barrueco colar, 2005. Cortesia do artista

Ayrson Heráclito, Barrueco colar, 2005. Cortesia do artista

No combate à desigualdade simbólica e historiográfica brasileira, Retratistas do Morro – João Mendes e Afonso Pimenta (GDA) compõem um enorme arquivo incontornável à história da fotografia do país. Há quase 60 anos, retratam o dia-a-dia dos moradores da comunidade do Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, segunda maior favela do país, onde moram mais de 70 mil pessoas. Em suas fotos, vivem a acuidade do cotidiano, com fotos de dias especiais como casamentos e formaturas a registros corriqueiros de dias comuns; a mudança da realidade de onde vivem e das favelas brasileiras em mais de meio século; e a perpetuação de mecanismos de disparidade social manifestados na formação de núcleos urbanos periféricos e na segregação da ocupação de espaços – cicatrizes abertas da diáspora africana reverberada em migrações intranacionais e intraurbanas. Mendes e Pimenta, atravessando a crítica, eternizam momentos de felicidade, conquista e celebração de vínculos afetivos em sua comunidade.

Retratistas do Morro - João Mendes, da série Becas, 1985, cortesia do artista
Retratistas do Morro - João Mendes, da série Becas, 1985, Cortesia do artista

Retratistas do Morro - João Mendes, da série Becas, 1985, cortesia do artista

Retratistas do Morro - João Mendes, da série Becas, 1985, Cortesia do artista

Por meio da produção de máscaras de Cazumbá, Zimar (Lima Galeria) mantém viva a manifestação popular do bumba-meu-boi, típica do Maranhão. Expressões de sincretismo religioso e cultural, as brincadeiras acontecem nos dias de festa de São João, reafirmando tradições africanas profundamente enraizadas na cultura maranhense. Zimar incorpora Cazumbá, nome de origem banto, entidade mascarada com vestes em coloridos bordados de tradição africana e sino de boi na mão: ser que borra binarismos entre humano e animal, homem e mulher, assustador ou encantador.

Zimar, Sem título, 2023, Registro fotográfico de Márcio Vasconcelos, Cortesia Lima Galeria
Zimar, Sem título, Da série Careta de Cazumba, 2022, Cortesia Lima Galeria

Zimar, Sem título, 2023, Registro fotográfico de Márcio Vasconcelos, Cortesia Lima Galeria

Zimar, Sem título, Da série Careta de Cazumba, 2022, Cortesia Lima Galeria

Mesmo após novas agendas ecológicas, a Amazônia ainda é vista como um entreposto, reiterando ferramentas coloniais que extração de bens a serem convertidos em capital e atração de mão-de-obra barata. Dinâmicas de idas e vindas são materializadas na produção de Marcone Moreira (Arte Pará), sobretudo em seus trabalhos que analisam o labor. Em Sinergia provisória (2015-2023), o artista esculpe ganchos metálicos à forma dos que sustentam carne para armazenamento, transporte e exibição, em leitura análoga ao corpo humano perfurado, estigmatizado por práticas violentas de exploração. Pendurados em sequência, como em grilhões, aborda questões metalinguísticas do próprio suporte e da exposição do trabalho. De forma precisa, Moreira endereça essas questões ao viver próximo a Carajás, no sudeste do Pará, onde se situa a maior mina de minério de ferro do mundo.

Marcone Moreira, Sinergia provisória, 2015-2023, Cortesia do artista

Marcone Moreira, Sinergia provisória, 2015-2023, Cortesia do artista

As práticas de exploração mineradora também são abordadas por Luana Vitra (Mitre) através de esculturas e instalações. Minas Gerais, estado em que a artista nasceu, carrega feridas do extrativismo mineral desde o século 18 com o saqueamento de ouro por agentes europeus, ainda abertas com as atividades industriais e siderúrgicas da região em trânsito efervescente. Os elementos minerais – da pedra, ao ferro e a fuligem – são operados por Vitra na composição de obras que a reconectam com histórias vitais de seu próprio passado e de sua individualidade presente, reincidindo correntes que oscilam entre micro e macrocosmos.

Luana Vitra, Abraçadeira 1, 2023, Cortesia da artista
Luana Vitra, Para cauterizar a ferida é necessário aquecer a faca (Parte 2) Clavícula, 2023, cortesia da artista

Luana Vitra, Abraçadeira 1, 2023, Cortesia da artista

Luana Vitra, Para cauterizar a ferida é necessário aquecer a faca (Parte 2) Clavícula, 2023, cortesia da artista

Fluxos similares aconteceram na região centro-oeste em meados do século passado com a construção de Brasília. A cidade absorveu dezenas de milhares de trabalhadores de todas as regiões do Brasil vendendo sonhos de sorte e prosperidade com a aceleração da construção civil. Além de gente, Brasília foi um ímã de ideias estrangeiras, sobretudo quanto ao legado arquitetônico e as epistemologias sobre a forma. Por mais que operados por princípios locais, o modernismo arquitetônico mantém dinâmicas de exploração e de hierarquização de modos de viver eurocêntricos, materializados nos edifícios da capital do país. Erika Verzutti (Fortes D’Aloia & Gabriel) analisa essas dinâmicas migratórias nas esculturas da série Brasília (2010-2011), em que jacas – frutos implantados em solo brasileiro por portugueses colonizadores que os trouxeram da Índia – são cortados por planos ortogonais, próximas à geometria rígida da arquitetura brasiliense. Para além das relações arquitetônicas, Verzutti aborda as práticas naturalistas do imperialismo, em que seres de fauna e flora de países explorados eram dissecados em cortes exatos, gerando planos descritivos tidos como ferramenta de controle científico pelos países europeus.

Erika Verzutti, Brasília, 2010, Cortesia da artista
Erika Verzutti, Brasília TV, 2011, Cortesia da artista

Erika Verzutti, Brasília, 2010, Cortesia da artista

Erika Verzutti, Brasília TV, 2011, Cortesia da artista

No Brasil, a formação de novos núcleos de atração e ocupação territorial andam mutuamente com a expulsão e dispersão de povos originários. Carmézia Emiliano (Papel Assinado) propõe reflexões da sua cultura macuxi: pensar a integração com a natureza e das pessoas entre si deve seguir caminhos que não o da aniquilação, mas da dança, dos rituais e de práticas sustentáveis ao se relacionar com a terra. A artista incentiva e luta por revisões sociopolíticas ao demonstrar propostas ecológicas de respeito e com mais responsável senso de comunidade.

Carmézia Emiliano, Parixara, 2020, foto MASP, Eduardo Ortega

Carmézia Emiliano, Parixara, 2020, foto MASP, Eduardo Ortega

Carmézia Emiliano, Wazaká - Árvore da vida, 2022, foto MASP

Carmézia Emiliano, Wazaká - Árvore da vida, 2022, foto MASP

Embora seja cenário de constantes crises políticas internas, o Brasil portou certa neutralidade diplomática em grandes conflitos internacionais do século 20. Recebeu, por exemplo, inúmeros europeus refugiados da segunda guerra mundial que criaram núcleos tradicionais a preservar suas culturas. Nesse contexto, em 1949, imigrou Mira Schendel (Steiner), suíça com ascendência judaica, tchecoslovaca, alemã e italiana. Debruçou-se de forma enfática nas interseções entre a abstração e a relação entre imagem e palavra, em uma superação do obstáculo do idioma estrangeiro, além de estabelecer pontes entre discussões artísticas internacionais e o então cenário local. Como cidadã do mundo, a artista propõe a construção de dinâmicas comunicacionais a partir de arranjos livres de elementos linguísticos que atravessam idiomas.

Mira Schendel, sem título, da série Objetos gráficos, 1967, foto Museum of Modern Art, New York (MoMA)

Mira Schendel, sem título, da série Objetos gráficos, 1967, foto Museum of Modern Art, New York (MoMA)


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Mateus Nunes (1997, Belém/PA) é curador e pesquisador. Doutor em História da Arte pela Universidade de Lisboa, desenvolve pós-doutorado em História da Arte e da Arquitetura na Universidade de São Paulo e na Getty Foundation. Professor do MASP em cursos sobre arte contemporânea paraense e barroco brasileiro. Escreve para revistas de arte brasileiras e internacionais. Interessa-se pelos hibridismos culturais na história da arte brasileira, sobretudo pelas reverberações contemporâneas da arte do período colonial na Amazônia através da teoria da imagem.

 

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