Editorial
Artigo
Raquel Arnaud: Meio século de coerência
Antonio Gonçalves Filho
1 mar 2024, 13h
Embora sua convivência com a arte seja mais longa, a marchande Raquel Arnaud considera o marco zero de sua carreira a abertura do seu Gabinete de Artes Gráficas, em 1974. Nesse mesmo ano, convidada pelo histórico marchand Franco Terranova (1923-2013), ela assumiu simultaneamente o cargo de diretora executiva da galeria Arte Global. São, portanto, 50 anos de uma excepcional trajetória associada aos maiores nomes da arte contemporânea brasileira, de Amilcar de Castro (1920-2002) a Waltercio Caldas, passando por Sergio Camargo (1930-1990), Willys de Castro (1926-1988) e Tunga (1952-2016), além de tantos outros artistas internacionais que passaram por sua galeria.
Poucos galeristas no mundo reuniram um time tão expressivo e coeso. Assim como o marchand ítalo-americano Leo Castelli (1907-1999) é com justiça reconhecido o grande incentivador da arte pop americana, Raquel Arnaud já é historicamente identificada como a marchande dos principais artistas brasileiros de tendência construtiva, não esquecendo que dois dos maiores nomes da arte cinética venezuelana, Cruz-Díez (1923-2019) e Jesús Rafael Soto (1923-2005), foram também representados pela galerista.
Não por coincidência, os dois cinéticos são associados a uma outra mulher que revolucionou o mercado de arte europeu ao exibir pela primeira vez, nos anos 1940, obras de Max Ernst e Mondrian em sua galeria parisiense, Denise René (1913-2012), de quem se tornaria amiga após uma exposição conjunta da dupla, nos anos 1980. Denise, assumidamente, foi o modelo de Raquel Arnaud, que, como se disse, já convivia com a arte muito antes de se unir à sócia Mônica Filgueiras (1943-2010) no Gabinete de Artes Gráficas, para colocar no mercado obras em papel de grandes mestres.
“Conheci Denise nos anos 1950 e me impressionei com o time de artistas que ela representava”, conta Raquel, que, a exemplo da amiga francesa, adotou no Brasil uma postura rara entre os galeristas, de trabalhar exclusivamente um segmento formal ligado à abstração geométrica. “Eu era uma fanática pela geometria desde o início”. Por início deve-se entender sua convivência com Lasar Segall (1889-1957) nos anos finais da vida do pintor. Casada com Oscar, um dos filhos do artista, ela circulava livremente por seu ateliê e lá conviveu com intelectuais do porte de Sérgio Milliet e dona Jenny, mulher de Lasar e grande tradutora.
Outra experiência determinante na formação da futura marchande foi sua passagem pelo Masp, onde, orientada por seu fundador e diretor, Pietro Maria Bardi, se interessou por curadoria (ajudou Lina Bo Bardi na exposição “A Mão do Povo Brasileiro”). Posteriormente, ela ingressou no mercado, deixando de lado a carreira de cientista social. Sua entrada no Masp aconteceu em 1968. Bardi, aliás, apresentou Raquel, em 1970, ao cineasta de origem argentina Hector Babenco (1946-2016), futuro diretor de “Pixote”. Com ele foi casada por 14 anos. Tiveram uma filha, Myra, hoje diretora na galeria que a mãe criou, em 1980.
O começo da vida de Raquel como marchande foi marcado pela Collectio, casa de leilões onde conheceu Mônica Filgueiras. Pelo Gabinete de Artes Gráficas criado pelas duas, na rua Haddock Lobo, passaram artistas internacionais como o gravador Arthur Luiz Piza (1928-2017), um dos mais fiéis amigos, que realizaria exposições antológicas em sua galeria.
“Naquela época do Gabinete e da Arte Global, o mercado era incipiente, com poucas galerias em atividade em São Paulo”, lembra Raquel. Colecionadores de arte contemporânea eram raros. “Quando comecei, os compradores só queriam saber dos impressionistas.” Para atender a demanda do mercado, ela recorria a galeristas amigos estrangeiros, mas, para Raquel, era uma situação desconfortável. Ela ambicionava trabalhar com artistas jovens, ousados. Como Tunga, por exemplo.
Nos anos 1980, com a emergência de uma nova geração de artistas no Brasil e a eclosão de movimentos artísticos como a transvanguarda italiana e o neoexpressionismo alemão, esse momento de renovação chegou. Com ele vieram novos colecionadores com disposição de apostar no inusitado. Exemplo de uma coleção que deve muito ao olhar de Raquel Arnaud é a do empresário (e ex-presidente da Bienal de São Paulo) João Carlos Figueiredo Ferraz (1952-2021), para ficar num único exemplo. Para ele, Raquel reservou um dos poucos “sarrafos” da derradeira exposição de Mira Schendel (1919-1988).
“Quando fiz a exposição de Tunga, ‘As Joias de Madame de Sade’, em 1983, ainda na galeria da Nove de Julho, fiquei chocada com a atitude de um comprador que, desdenhando das obras expostas, jogou um chaveiro na mesa, ironizando que também aquilo podia ser considerado arte.” Esse tipo de reação nunca desestimulou Raquel.
Paralelamente à atividade de galerista, ela aceitou um desafio ainda maior, o de deixar registrada a história da arte de seu tempo no Instituto de Arte Contemporânea (IAC), que criou em 1997, um centro de estudos e pesquisas inicialmente concebido para abrigar obras e documentos de artistas com os quais trabalhou, entre eles Waltercio Caldas, artista que inaugurou a nova sede da Galeria Raquel Arnaud da Rua Fidalga da Vila Madalena, onde está em cartaz uma mostra com curadoria de Jacopo Crivelli Visconti com obras dos principais artistas representados por Raquel.
Um deles foi o escultor carioca Sergio Camargo (1930-1990), que acompanhou por toda a vida e cujo espólio é representado pela marchande. Grandes curadores estrangeiros se interessaram por sua obra. Um deles foi o inglês Guy Brett (1942-2021), um dos nomes mais respeitados da crítica de arte internacional, que ajudou a promover a carreira de Hélio Oiticica e Mira Schendel na Europa, organizando exposições na histórica galeria Signals de Londres. Meca da arte experimental nos anos 1960, foi lá que Brett organizou uma mostra de Sergio Camargo visitada por Raquel em plena guarra do Vietnã.
“Sergio Camargo era contra a guerra e a Signals fechou suas portas na semana de abertura da mostra em protesto contra o conflito”, conta, revelando como o compromisso dos galeristas com seus artistas, na época, ia além de acordos financeiros. Os tempos são outros, mas o maior legado da marchande é justamente a fidelidade ao seu time de artistas e ao abstracionismo geométrico nesses 50 anos, resistindo a modismos. Seu credo: “Quero ter a certeza de que aquilo que estou vendendo hoje vai conservar seu valor amanhã”, resume.
Perfil SP–Arte
Faça parte da comunidade SP–Arte! Somos a maior feira de arte e design da América do Sul e queremos você com a gente. Crie ou atualize o seu perfil para receber nossas newsletters e ter uma experiência personalizada em nosso site e em nossas feiras.