Detalhe da obra Sem título (1961), da fase "Anóbios" de Ivan Serpa. (Foto: Divulgação).
Ensaio

Professores de uma geração moderna

Felipe Molitor
23 fev 2021, 12h14

Em cartaz na São Paulo pandêmica, duas silenciosas exposições retrospectivas repassam a trajetória de duas figuras essenciais para a arte brasileira: a polonesa Fayga Ostrower (1920–2001), na Pina Estação, e o carioca Ivan Serpa (1923–73), no Centro Cultural Banco do Brasil. Cada uma das mostras apresenta mais de cem trabalhos nas diversas linguagens exploradas por eles — desenhos, pinturas, aquarelas, ilustrações e gravuras de todo tipo. Embora tivessem práticas absolutamente distintas entre si, ambos engrossaram o mesmo caldo cultural de uma geração que, a partir das décadas de 1940 e 1950, seguiu perseguindo as “novidades” de uma modernidade cada vez mais internacional, ao passo que abria caminhos mais autóctones para as artes visuais em um Brasil persistentemente conservador. 

Ostrower e Serpa viveram a maior parte da vida no Rio de Janeiro e tiveram um mestre em comum no início de seus estudos, o multiartista austríaco Axl Leskoschek, que morou e trabalhou intensamente na capital brasileira após fugir da perseguição nazista em 1939. “Lesko lesko” trouxe na bagagem um imenso repertório como gravurista, introduzindo uma série de técnicas com papel, madeira e pedra, aulas sobre pintura, desenho e composição, atravessado sempre por uma poética ligada ao expressionismo. Foi a partir daí que a até então autodidata Fayga Ostrower abriu-se para o exercício da arte impressa e abstrata, e assim permaneceu até o fim da vida.

Acima: Detalhe da obra Sem título (1961), da fase "Anóbios" de Ivan Serpa. (Foto: Divulgação).

Ilustração de Fayga Ostrower para o álbum “Os Anjos e os Demônios de Deus: abstração e cores vibrantes” (Foto: Divulgação)

Ilustração de Fayga Ostrower para o álbum “Os Anjos e os Demônios de Deus: abstração e cores vibrantes” (Foto: Divulgação)

“A gravura me interessa como forma de arte, somente à medida em que ela serve de meio para exteriorizar uma visão artística. Todos os problemas de ordem técnica ou estética para mim se reportam a esse ponto, e, por isso, antes de gravador me interessa o artista, cuja ação gráfica se transforma em expressão.”
Fayga Ostrower (1957)

“Frisos” (1956), Fayga Ostrower (Foto: Divulgação)

“Frisos” (1956), Fayga Ostrower (Foto: Divulgação)

Não sem resistência da crítica e do público, que buscava os regionalismos e o realismo social, a artista polaco-brasileira desempenhou um papel fundamental ao reposicionar a gravura dentro das artes, valorizando sua complexidade artesanal e seu caráter reprodutivo. As linhas, as cores, as formas e os gestos preservados nas suas matrizes e impressões resguardam um fazer metódico e exigente — os nomes numéricos das obras referem-se ao ano de feitura e ao número de ordem da matriz — ao passo que a abstração libertava para um lirismo profundo e sem receios. Das artes aplicadas e industriais, experimentando com a criação de estamparias sobre tecido e até com composição de cartazes gráficos, Ostrower foi uma artista absolutamente moderna e coerente com seus princípios.

Entre 1954 e 1970, a artista lecionou no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, instituição que, àquela altura, era uma usina criativa com diversos professores-criadores trabalhando ativamente na formação de uma comunidade artística livre e experimental. Foi nessa toada que muitos nomes da arte brasileira surgiram e se consolidaram, formando um palco teórico e estético variado para a cena nacional. A artista Anna Bella Geiger (1933) é a maior herdeira viva das lições de Fayga Ostrower. Mesmo após ter guinado para a nova figuração e para os usos conceituais de novos meios a partir dos anos 1960, Geiger nunca perdeu uma certa linha de raciocínio gravurista nas suas composições, característica que se reflete em sinal invertido, por exemplo, nas inúmeras gavetas de ferro com mapas e diagramas que realizou nos anos 1990. 

"5502" (1955), Fayga Ostrower (Foto: Divulgação)

"5502" (1955), Fayga Ostrower (Foto: Divulgação)

"7502" (1975), Fayga Ostrower (Foto: Divulgação)

"7502" (1975), Fayga Ostrower (Foto: Divulgação)

A partir de 1952, o mesmo MAM-Rio teve o jovem Ivan Serpa como professor pioneiro e um dos principais agitadores culturais do museu em constante construção. Tanto ele quanto Ostrower haviam sido premiados na I Bienal de São Paulo, de 1951. Serpa desenvolveu cursos livres para crianças e adultos, levando à cabo a noção de que a arte moderna não era apenas uma linguagem, mas uma agenda para a sociedade. Toda uma turma encontrou no artista um eixo que ajudou a sistematizar e pôr no mundo o programa moderno abstrato geométrico que marcava o interesse de muitos naquele momento. Junto com alguns alunos e colegas, Serpa liderou o “Grupo Frente”, bastião do concretismo que fincou alicerces na arte brasileira. Lygia Pape, Lygia Clark, Hélio Oiticica, Franz Weissmann e Abraham Palatnik não seriam os mesmos sem a influência de Serpa.

“Biombo concretista” (1952), Ivan Serpa (Foto: Divulgação)

“Biombo concretista” (1952), Ivan Serpa (Foto: Divulgação)

“Faixas em ritmo resultante” (1956), Ivan Serpa (Foto: Divulgação)

“Faixas em ritmo resultante” (1956), Ivan Serpa (Foto: Divulgação)

Do artista suíço Max Bill ao grupo de artistas internos do hospital psiquiátrico Pedro II, coordenado pela Dra. Nise da Silveira, foram muitas as fontes de que o artista bebeu. Sua produção artística esparramou-se por uma pesquisa múltipla a ponto de ter sido classificada como incoerente. No entanto, Serpa preservava sua própria liberdade criativa ao esgotar as possibilidades dos meios e dos temas que o interessavam. Ele experimentou o ritmo e o rigor com a geometria do concretismo, misturou op e pop art, e até as traças da Biblioteca Nacional, onde trabalhou como restaurador, o ensinaram a trabalhar o papel e deixar impressões que pudessem entrever suas sensações sobre a técnica. A principal guinada figurativa de Serpa aconteceu nos anos 60, com a instauração da ditadura civil-militar do Brasil e a Guerra do Vietnã. Sua série “Negra”, ou “Crepuscular”, como o artista preferia, deu vazão à monstros internos e externos.

“Eu só posso pintar o que sinto.”
Ivan Serpa

“A grande cabeça”, da série “Negra” ou “Crepuscular” (1964), Ivan Serpa (Foto: Divulgação)

“A grande cabeça”, da série “Negra” ou “Crepuscular” (1964), Ivan Serpa (Foto: Divulgação)

Sem título (1965), Ivan Serpa (Foto: Divulgação)

Sem título (1965), Ivan Serpa (Foto: Divulgação)

Fayga Ostrower e Ivan Serpa nunca separaram a vida e o mundo de suas criações, mergulhando o corpo e a alma nas questões de seu tempo. Seus legados trazem a perseverança, a coragem e a liberdade como as principais aliadas de um artista. Para ambos, toda e qualquer navegação artística, mesmo quando solitária ou aparentemente individual, tinha como missão final revelar tesouros de e para um coletivo maior. 


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Felipe Molitor é jornalista e crítico de arte, parte da equipe editorial da SP–Arte.

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