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Artigo

Por uma geografia da arte paulistana

Gabriela Longman
22 fev 2024, 11h53

Proponho aqui um passeio pela São Paulo de 2004: o parque do Povo e Parque Augusta não existiam; a linha 4 do metrô não passava de um traçado no papel. Até 2014 não havia Uber, e quem quisesse um táxi precisava ligar para uma central e aguardar até que a mesma retornasse. Ligava-se na pizzaria para pedir uma margherita. Eu estive lá.

Duas décadas mudam sempre muita coisa, mas a aceleração trazida pelos processos tecnológicos faz o impacto parecer maior. Se, em 2004, o principal corredor financeiro da cidade era a avenida Paulista e as sedes dos grandes bancos, hoje Faria Lima e Berrini são a espinha dorsal de um sistema formado por techs, fintechs, start-ups. Nenhuma análise pertinente pode ser feita sem levar em conta as transformações trazidas pela tecnologia pós-industrial e por todo um novo poderio a ela vinculado.

Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, na Avenida Paulista. Foto: divulgação

Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, na Avenida Paulista. Foto: divulgação

Mas é de arte que viemos falar: do curioso tabuleiro de museus, galerias e espaços independentes se movimentando pela ação do tempo, dos desejos, da moda e das disputas individuais e coletivas que marcam a história de qualquer cidade. Embora os três museus emblemáticos da São Paulo moderna – Masp, MAM, MAC – tenham mantido seu poder e prestígio, as duas últimas décadas viram florescer novas instituições: o Instituto Moreira Salles abandonou a tímida galeria subterrânea junto à Praça Buenos Aires para ocupar um edifício majestoso na Paulista. A Pinacoteca cresceu e desdobrou-se em Pina Estação (2004) e Pina Contemporânea (2023), tornando-se o mais importante complexo artístico da cidade. O Pivô surgiu em 2012 para se transformar num dos espaços mais disruptivos de experimentação, ajudando a ressignificar o Copan e seu entorno. O Sesc SP ampliou significativamente seu número de unidades.

Vista da SP–Arte em 2014. Foto: divulgação

Vista da SP–Arte em 2014. Foto: divulgação

A criação da SP–Arte (2005), sem dúvida, mexeu peças nesse jogo. De uma cidade que realizava salões (o mais famoso deles, o Salão de Artes e Antiguidades do Clube Hebraica), passamos a sediar uma das principais feiras do calendário – a mais importante da América Latina ao lado da mexicana Zona Maco. Foi a partir dos anos vividos em Buenos Aires, quando teve contato com outra feira latina, a ArteBA, que Fernanda Feitosa vislumbrou a possibilidade de um evento paulistano. Cerca de quarenta galerias toparam a empreitada da primeira edição, realizada apenas no piso térreo do Pavilhão da Bienal, com direito a um icônico carpete vermelho nos corredores. 

Se a criação da Bienal, em 1951, havia marcado a entrada de São Paulo num sistema de circulação internacional de arte, a feira vinha como confirmação de que a cidade tinha fôlego – criativo e financeiro – para ostentar um mercado digno do nome e um setor que se entende como tal. Não por acaso surgiria apenas dois anos depois a ABACT – Associação Brasileira de Arte Contemporânea e Galerias de Arte, entidade sem fins lucrativos que hoje representa cerca de 60 galerias de arte contemporânea no Brasil.

De lá para cá, multiplicou-se o número de curadores, colecionadores, residências artísticas e mais recentemente os art advisors (figuras até então inexistentes e hoje peças poderosas dentro do sistema)

Segunda edição da SP–Arte, no Pavilhão da Bienal. Foto: divulgação

Segunda edição da SP–Arte, no Pavilhão da Bienal. Foto: divulgação

Instalação do banner na primeira edição da SP–Arte. Foto: divulgação

Instalação do banner na primeira edição da SP–Arte. Foto: divulgação

Houve um momento, aproximadamente entre 2008 e 2015, que o Brasil pareceu ser o centro do mundo. Galeristas, curadores e colecionadores  falando idiomas dos quatro cantos aportavam por aqui, a arte neoconcreta e as pinturas de Beatriz Milhazes e Adriana Varejão batiam recordes de preço no exterior – quem se lembra do Cristo Redentor levantando voo na capa da The Economist?  

Aliás, a própria SP–Arte era, ao mesmo tempo, reflexo e embaixada deste momento. Uma rápida fotografia dos artistas estrangeiros que foram exibidos na edição de 2014: Kris Martin, na Sies + Höke; Oscar Murillo e Francis Alÿs, na David Zwirner; Gabriel Orozco, Abraham Cruzvillegas e Rirkrit Tiravanija, na mexicana Kurimanzutto; Olafur Eliasson, na alemã neugerriemschneider; Lucio Fontana, nas galerias Cardi e Van de Weghe; Gerhard Richter e William Kentridge, na americana Marian Goodman, Alexander Calder e Donald Judd, na espanhola Elvira González; Michelangelo Pistoletto, na galeria italiana Continua; Ai Weiwei e Anish Kapoor, na Lisson. 

Como nos ensina a yoga, a tristeza é sempre passageira, e a alegria também: aos anos dourados seguiram-se tempos marcados pela recessão, pela extinção do Ministério da Cultura e pela pandemia. Eu (também) estive lá. E o fato de termos permanecido em pé – não sem perdas –, serviu ao menos para mostrar a solidez do nosso sistema artístico e cultural.

Instalação "Forever Bicycles", de Ai Weiwei, na SP–Arte, em 2018. Foto: divulgação

Instalação "Forever Bicycles", de Ai Weiwei, na SP–Arte, em 2018. Foto: divulgação

Pintura de Beatriz Milhazes exposta na SP–Arte, em 2016. Foto: divulgação

Pintura de Beatriz Milhazes exposta na SP–Arte, em 2016. Foto: divulgação

Deslocamentos

Entre altas e baixas, o número de galerias e art spaces aumentou, com  novos players como Zipper (2010), Jaqueline Martins (2011), Gomide&Co (2013), Central (2016), HOA (2020), Galatea (2022), para citar alguns. Com uma estratégia de expansão fora do eixo Rio-São Paulo, a Almeida & Dale cresceu e ramificou-se. Nara Roesler deu um passo mais além e abriu filial em Nova York. Surgida em 2010, Mendes Wood DM inaugurou há pouco meses sua sede em Paris (2023). O mundo é grande e ele gira, poder-se-ia dizer.   

Em torno de 2005, a Vila Madalena era um reduto boêmio formado majoritariamente por casas, pequenos comércios e oficinas, com um conglomerado de bares, ateliês, galerias e espaços independentes. Para estar “perto dos artistas”, algumas das galerias mais interessantes da cidade tinham ali sua sede – a Fortes d’Aloia & Gabriel, na época Fortes Vilaça, fez história ao sediar a primeira exposição importante de grafite, com osgemeos envelopando a fachada na esquina da Fradique com a Purpurina. Enquanto isso, a Barra Funda era um distrito industrial distante, com uma ou duas boates alternativas surgindo entre os galpões.

Hoje, a Vila mudou um bocado sua paisagem e é impensável imaginar qualquer roteiro artsy que desconsidere a Barra Funda, num descolamento complexo envolvendo comportamento geracional, especulação imobiliária e os próprios rumos de crescimento da cidade.  Esse fenômeno não é exclusivo nosso: a título de exemplo, no início do século 20, a efervescência artística parisiense moveu-se de Montmartre, nos anos 1910, para Montparnasse, nos anos 1920. Décadas adiante, muitas principais galerias de Nova York foram migrando do Soho para Chelsea. Por outro lado, Jardins e Jardim Europa seguem concentrando museus e galerias do alto de sua elegância atemporal, tal e qual um Upper East paulistano. 

Galeria Mendes Wood DM, na Barra Funda. Foto: divulgação

Galeria Mendes Wood DM, na Barra Funda. Foto: divulgação

Sede da galeria Gomide & Co. Foto: Leonardo Finotti

Sede da galeria Gomide & Co. Foto: Leonardo Finotti

Fachada da galeria Raquel Arnaud. Foto: divulgação

Fachada da galeria Raquel Arnaud. Foto: divulgação

É importante ressaltar que 20 anos atrás as pautas de inclusão e diversidade que hoje definem boa parte das diretrizes da vida cultural pouco figuravam no horizonte. Se fosse dito, na ocasião, que teríamos intérpretes de libras em praticamente todo espetáculo ou que artistas e curadores indígenas assinariam a concepção do Pavilhão do Brasil na Bienal de Veneza muitos teriam duvidado.

Nessa linha do tempo, foi justamente em 2004 que Emanoel Araujo inaugurou o Museu Afro-Brasil, abrindo caminhos para importantes iniciativas mais recentes como o Museu das Favelas (2022) e o Museu das Culturas Indígenas (2022). Hoje, poucos são as instituições e galerias que não incluíram negrxs, mulheres, LGBTQ+ entre seus times de gestão e seus artistas representados, revirando hierarquias. Sabemos, no entanto, que o mercado de arte, ao mesmo tempo em que levanta bandeiras, é especialista em contemplar (e defender) interesses do 0,5% mais rico da população. Ninguém está imune à contradição.

Por falar em mulheres, uma cidade é feita por pessoas. São elas que se encontram, disputam espaços, selam acordos, criam impérios. Em qualquer geografia do mercado de arte que se tente traçar para São Paulo – e esta aqui, bastante pessoal – duas lanternas brilham quase que como pontos cardeais: as galerias fundadas há exatas cinco décadas por Luisa Strina e Raquel Arnaud. Locais de encontro e experimentação intergeracional, elas são a prova de que a história é feita de renovação e mudança mas também de certas permanências.Um passeio pela São Paulo dos anos 1970, 80, 90, 2000 e adiante as encontrará, pioneiras que foram em desenvolver e transformar os rumos da arte brasileira. Eu não estive exatamente lá, mas quem esteve me contou. 

Ao comemorar seus 20 anos a SP–Arte começa uma história que entra neste outro registro, o da longa duração.

Museu das Culturas Indígenas. Foto: divulgação

Museu das Culturas Indígenas. Foto: divulgação

Museu das Favelas. Foto: divulgação

Museu das Favelas. Foto: divulgação

Museu Afro Brasil. Foto: divulgação

Museu Afro Brasil. Foto: divulgação


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Gabriela Longman é jornalista, editora e pesquisadora, é mestre em Arte e Linguagem pela EHESS-Paris e doutora em teoria literária pela USP. É sócia do Guia Orbit.

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