Nadia Taquary, “Exú”, da série “Dinka”, 2019 (detalhe). Foto: Filipe Berndt. Cortesia: Galeria Leme.
SP–Arte Viewing Room

Os saberes ancestrais na arte contemporânea do SP–Arte Viewing Room

Julia Flamingo
29 ago 2020, 8h12

Não fosse o Covid-19 e o fechamento dos museus, ao menos quatro exposições relacionadas ao universo indígena estariam acontecendo em São Paulo: MAM-SP, Pinacoteca e Sesc Ipiranga, além da Bienal de São Paulo que abriria agora em setembro com a participação de três artistas indígenas (enquanto os museus não retomam sua programação, vale aproveitar a enxurrada de lives sobre o assunto). Sabemos também que o MASP tem agora uma curadora indígena na equipe, a Sandra Benites, e anunciou que o eixo curatorial “Histórias indígenas” irá guiar a programação da instituição em 2023. Ancestralidade e cosmologia também vêm sendo palavras-chave nos maiores eventos globais da arte: na 32ª Bienal de São Paulo, em 2016, a curadoria trouxe diferentes visões de mundo a partir de trabalhos que tinham claras relações com espiritualidade e os saberes antigos como possíveis respostas para a tal da “Incerteza Viva”. A última Bienal de Veneza, em 2019, “Que você viva em tempos interessantes” foi preenchida por artistas de todas as nacionalidades que comentavam sobre os nossos tempos com trabalhos onde a conexão com conhecimentos antigos eram uma constante. Isso sem mencionar episódios como o do insaciável Damien Hirst, que está estudando e expondo mandalas, e a mostra de Hilma af Klimt, cujo caráter místico fez dela um blockbuster (a exposição da sueca no Guggenheim de Nova York em 2019 foi a mais visitada da história do museu). O cenário da arte – e não só ele, é claro – está buscando novas formas de estar no mundo, e um possível caminho para isso é nos conectarmos aos nossos saberes ancestrais. 

Acima: Nadia Taquary, “Exú”, da série “Dinka”, 2019 (detalhe). Foto: Filipe Berndt. Cortesia: Galeria Leme.

Melvin Edwards, "Canção das correntes partidas”, 2019. Cortesia: 01.01 Art Platform.

Melvin Edwards, "Canção das correntes partidas”, 2019. Cortesia: 01.01 Art Platform.

Não é preciso navegar muito tempo pelos 136 stands do SP-Arte Viewing Room para perceber que esse movimento também está presente nesta edição da feira. Artistas contemporâneos nacionais e internacionais exploram antigos saberes a partir de trabalho manuais como a tapeçaria e o bordado, através de performances que mais se assemelham a rituais, ou trazendo histórias locais, oralidades e crenças para seu repertório artístico. O projeto para o Viewing Room da 01.01 Art Platform constrói uma narrativa pautada na ancestralidade: “Todos nós seremos ancestrais um dia. Ancestralidade é a passagem da matéria para o estado transcendental. Ancestrais são todas as pessoas que viveram e cujas existência são importantes para nós que ficamos aqui na terra”, explica a curadora Ana Beatriz Almeida no vídeo do stand, que traz trabalhos de nomes como o brasileiro Moisés Patrício e o estadunidense Melvin Edwards. Em “Canção das correntes partidas”, o escultor do Texas aborda temas como resistência, liberdade e submissão, mas também faz um elogio a Ogum – na sua simbologia, ferramentas de aço representam a abertura de caminhos. 

Na Arteedições Galeria, o belíssimo múltiplo de Sônia Gomes, feito em parceria com a Mendes Wood DM, mostra a forte relação que a artista mineira tem com o tecido e o bordado. Intitulada “Livro de Fábulas”, a obra remete às narrativas orais, e envolve o livro com um trabalho manual minucioso que constrói ainda mais camadas de história para aquela publicação. Ela herdou o gosto pela costura da avó materna, extremamente espiritualizada e habilidosa. Desde pequena se interessa pelas festas populares e pelas práticas manuais que envolvem esses rituais: o ritmo, o movimento e o colorido dessas festas dão forma às suas instalações.

Sonia Gomes, “Branca de Neve”, da série “Livro de Fábulas II”, 2019. Cortesia: ArtEEdições

Sonia Gomes, “Branca de Neve”, da série “Livro de Fábulas II”, 2019. Cortesia: ArtEEdições

Marlene Crespo, “Mano”, 2004. Cortesia: b_arco.

Marlene Crespo, “Mano”, 2004. Cortesia: b_arco.

O saber manual transmitido entre gerações também está presente no bordado “Mano” de Marlene Crespo, no projeto da b_arco, que nos leva a pensar no processo de feitura da própria peça, como um ato repetitivo, longo e espiritual.

É coerente e singela a seleção que a Galeria Periscópio fez para seu estande, principalmente pelas cerâmicas de Benedikt Wiertz, alemão radicado no Brasil que trabalha a partir de pedaços de cupinzeiros e plantas da Serra da Moeda, em Minas Gerais. As esculturas da série “Não domesticado” deixam claras as marcas da mão e da natureza na argila, indicando o comportamento agressivo do homem perante à natureza, como se a arte fosse uma maneira de nos reconciliarmos com ela. Nos trabalhos do mesmo estande feitos em parceira com o artista guatemalteco Edgar Calel Apén, surgem desenhos muito característicos de padrões indígenas da sua região. Na mesma galeria, o bordado sobre tecido do mineiro Randolpho Lamonier intitulado “Deusa Chantiko” bebe na fonte da Mitologia Asteca para construir uma estética primitiva e lúdica. 

Nadia Taquary, “Exú”, da série “Dinka”, 2019. Foto: Filipe Berndt. Cortesia: Galeria Leme.

Nadia Taquary, “Exú”, da série “Dinka”, 2019. Foto: Filipe Berndt. Cortesia: Galeria Leme.

Na Galeria Leme, Nadia Taquary apresenta a obra “Exú”, feita a partir da escultura da artista sobre a joalheria afro-brasileira: para muitos, os adornos corporais sãos elos com a ancestralidade. É nesse sentido que Cadu, da Anita Schwartz Galeria, vem produzindo objetos escultóricos em parceria com o joalheiro e artista Virgílio Bahde. “Craca Ganga Arapuca III” tem ao mesmo tempo a forma de um animal, um objeto de culto e uma armadilha indígena utilizada para capturar árvores. A pesquisa extensa sobre a cultura e os rituais afro-brasileiros de Ayrson Heráclito são representados pela fotografia “Sangue, sêmen, saliva”, na Paulo Darzé Galeria. Nas suas performances, Ayrson resgata a relação entre a arte e o sagrado para exorcizar alguns fantasmas da história e construir um novo presente. Seus vídeos longos convidam a nós, público, a pararmos por alguns minutos e, se possível, olhar para dentro. 

Este tipo de escuta também nos ajuda a repensar na efemeridade do tempo e na nossa pequenez perante a força da natureza, questões que com a pandemia se tornaram impossíveis de serem ignoradas. É isso o que diz a colombiana Maria Elvira Escallón, da Galeria Eduardo Fernandes, na fotografia da instalação “Desde el umbral” que ela fez durante a pandemia: no seu falso-monumento de areia, ela nos lembra que com um simples sopro tudo pode se desfazer. 

Maria Elvira Escalon, “¨Desde el Umbral¨”, 2020. Cortesia: Galeria Eduardo Fernandes.

Maria Elvira Escalon, “¨Desde el Umbral¨”, 2020. Cortesia: Galeria Eduardo Fernandes.


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Julia Flamingo é jornalista de arte e fundadora do Bigorna, plataforma didática de arte contemporânea. Tem graduação em jornalismo pelo Mackenzie, e história pela PUC-SP. Vive em Lisboa, onde é mestranda em Culture Studies na Universidade Católica, e colabora com veículos do Brasil e Portugal. Trabalhou como repórter e crítica de exposições da revista Veja São Paulo entre 2015 e 2017.

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