Editorial
Mina Warchavchik escreve sobre o mobiliário de seu bisavô, e a experiência de ter crescido entre peças tabulares do modernismo brasileiro
31 mai 2019, 16h49
por Mina Warchavchik Hugerth
Desde cedo, notei que não morava como os meus amigos. O apartamento em que cresci tinha portas e janelas e paredes e teto, e para todos os efeitos era bem normal. Só que meus pais, assim como meus tios e avós em suas respectivas casas, haviam ocupado aquele espaço estandardizado de maneira diferente do que eu via em outros lugares. Mesmo sem ter me debruçado a entender os porquês daquela distinção, entrei numa faculdade de arquitetura, e lá pela primeira vez não precisei soletrar meu nome: ser da linhagem Warchavchik significava alguma coisa, embora eu nem tivesse conhecido o tal arquiteto modernista. Evidentemente estava familiarizada com o trabalho do meu bisavô e admirava seus projetos e visão de mundo, mas foi só mais tarde que plenamente compreendi o que essa ascendência significava na minha formação e como ela construiu um ideal de domesticidade bastante particular.
Algum contexto se faz necessário. Gregori Warchavchik, o biso, nasceu em Odessa, Ucrânia (à época Império Russo) em 1896, iniciou sua formação em arquitetura na escola de arte local e a concluiu em 1920 em Roma. Em 1923, imigrou para São Paulo para atuar na Companhia Construtora de Santos e logo tomou contato com os círculos modernistas da cidade, publicando em 1925 um artigo-manifesto que defendia os princípios do modernismo arquitetônico. Dois anos depois, Warchavchik casou-se com a bisa, Mina Klabin, e no mesmo ano projetou a residência do casal à Rua Santa Cruz. Embora esta seja considerada a primeira casa modernista do Brasil, foi em 1930 que Warchavchik organizou a “Exposição de uma Casa Modernista” para apresentar publicamente o que seria aquele morar do futuro. Realizada na segunda residência que construiu, à Rua Itápolis, a arquitetura e interiores por ele desenvolvidos foram complementados por trabalhos de artistas como Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti e Brecheret, além de inéditos jardins tropicais criados por sua esposa. No mesmo ano, a convite de Lúcio Costa, Warchavchik passou a integrar o corpo docente da Escola Nacional de Belas Artes e, entre 1931 e 1932, no Rio, inaugurou outras obras com uma nova exposição pública de arquitetura moderna.
Embora as primeiras casas de Warchavchik no Brasil constituam o capítulo mais conhecido de sua trajetória, o arquiteto continuaria atuando profissionalmente nas quatro décadas seguintes. Distanciando-se daquelas construções experimentais, foi responsável por inúmeros edifícios residenciais e corporativos em São Paulo, tornando-se a partir dos anos 1940 também um empreendedor em sintonia com as mudanças urbanísticas da cidade. Ao longo de sua trajetória, Warchavchik promoveu um viver moderno e anti-conformista, defendendo a arquitetura como algo maior do que sua manifestação puramente material.
Meu bisavô nunca desenhou móveis para o mercado. Talvez o tivesse feito se houvesse um público interessado em comprá-los à época, mas seu interesse era primordialmente ocupar de forma coerente os espaços que criou e onde morou. Eram os anos 1920 e a arquitetura e o design no Brasil viam-se marcados pela ornamentação ligada a estilos históricos, que por sua vez possuíam certos significados culturais. Já os móveis do arquiteto eram despidos de elementos decorativos e foram concebidos a partir do encontro e justaposição de formas e planos geométricos, dialogando especialmente com o modernismo alemão. Não obstante, ainda que ambicionassem a indústria, todas as peças de Warchavchik foram feitas em oficinas e de maneira artesanal.
Os móveis projetados para a casa da Santa Cruz foram pintados de preto, e os da Itápolis de prata. Já ouvi que este segundo acabamento buscava emular o metal num momento em que só era possível fazer peças em madeira, mas me pergunto se essa justificativa tenta demasiadamente funcionalizar uma escolha antes de tudo estética. O estofado dos móveis prateados era azul marinho e ficavam numa sala verde-água com cortinas roxas. Pouco se fala disso devido aos registros em preto-e-branco, mas os interiores de Warchavchik iam muito além das cores primárias ou de um minimalismo austero.
Os móveis da Itápolis foram para o jornalista Geraldo Ferraz e hoje fazem parte da coleção de Adolpho Leirner. Da Santa Cruz, cada herdeiro ficou com algumas peças, complementadas por tantas outras de design assinado ou feitas por encomenda para suas futuras residências. Ao longo do tempo, cada móvel do arquiteto assumiu para nós um status de referência e reverência, bem como um sentido afetivo. Não se tratavam mais de vanguarda, mas tradição. Configura-se aí uma contradição em termos, pois subverte-se a ideia original mesmo mantendo seu partido. Assim, nunca me sentei numa poltrona com pata de leão ou num sofá com revestimento florido, não admirei gabinetes de bibelôs ou reproduções renascentistas. Por outro lado, guardei álbuns de família em uma mesa-estante de círculos sobrepostos e amarrei meus sapatos em uma cadeira de dois planos de madeira em ângulo reto travados por um tubo metálico. Sem julgamento de valor, não morei como os meus amigos.
Quando convidada a escrever sobre as memórias de ter crescido com os móveis do biso, lembrei-me de quando desenvolvi a mesa de centro W para a Marcenaria Baraúna e levei o protótipo para a casa da minha mãe. Lá, tiramos o tampo de uma mesa do Warchavchik para colocar na minha e ver se ficava bom. Ficou. À época, não pensei estar em diálogo com meu antecessor, mas o próprio nome que posteriormente dei ao móvel me desmente. Também ponderei se me tornei historiadora de design precisamente por acreditar que o espaço em que vivemos e os objetos que escolhemos para ter à nossa volta informam de maneira profunda nossos valores e ambições. Talvez Warchavchik tenha me ensinado essa lição. Talvez sua herança tenha me permitido refletir o suficiente para levantar a bandeira de que o design e mesmo a decoração não são uma arte menor ou ocupação para diletantes, mas tão vigorosos quanto a arquitetura e verdadeiramente íntimos. E, quem sabe por esta natureza, seja mais fácil ilustrar suas potências a partir da experiência pessoal.
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