Editorial
Crítica de arte
O direito a ser história: a arte de Moara Brasil
Luciara Ribeiro
15 dez 2020, 9h29
Conheci Moara Brasil no início de 2019 através de uma conversa mediada pelo querido amigo e artista Denilson Baniwa. Lembro-me do dia em que Denilson me escreveu dizendo: “Preciso te apresentar uma pessoa, a Moara. Você precisa conhecer o trabalho dela, ela está produzindo coisas interessantes”. Nosso primeiro encontro ocorreu em uma tarde, pelos corredores do Instituto Tomie Ohtake, quando Moara apresentou sua série “Mirasawá”, conjunto de fotocolagens que fala de futuro e de feminilidade.
Depois disso, seguimos com as nossas conversas e fomos construindo uma relação de amizade, que tange tanto as trocas profissionais quanto as afetividades das relações humanas. Os nossos encontros também foram intermediados por diversas ações que surgiram em 2019, como o encontro na Mostra Coletiva Agosto Indígena do espaço Colabirinto, em São Paulo. Visitei essa exposição com os artistas-alunes de um curso que eu ministrava no Instituto Tomie Ohtake. Lá, nos deparamos com o estudo para a obra “Museu da Silva”.
Acima: Moara Brasil "Museu da Silva" 2020. Aniversário do Pedro. Registro familiar, acervo pessoal.
Essa é uma obra instalação-ocupação, onde a artista organiza um possível museu dedicado a sua família. Entre os diversos documentos expostos, estão depoimentos, objetos, desenhos, mapas, fotografias, entre outros. Encontrar o “Museu da Silva” foi me reencontrar com a fotografia. Tenho uma relação afetiva com a fotografia: iniciei, anos atrás, uma graduação em fotografia, a qual não conclui por dificuldades financeiras. Tentei ser fotógrafa, tentei olhar o mundo através das lentes. Desisti. Desisti porque percebi que a minha relação com a fotografia estava em outro campo, o da pesquisa. A fotografia me ajuda a pensar o mundo, a pensar o meu corpo no mundo. Quando entrei naquela sala de museu, me senti tocada. Um Museu pessoal, um museu de si, um museu familiar. O que para muitos pode parecer uma ação muito íntima e distante do coletivo, aquela experiência me mostrou o contrário. Senti-me extremamente atravessada pelas fotografias e relações ali projetadas. E não seria essa a função do museu? Aproximar a experiência pessoal da coletiva? Tocar o nosso interior?
Os que olham o “Museu da Silva” apenas como obra que atinge a subjetividade da sua artista e autora, se enganam. O “Museu da Silva” não fala apenas de Moara Brasil e de sua família, ele fala também sobre nós. Deixar o meu corpo ser atravessado por aquelas imagens familiares, que não eram minhas, mas nas quais eu me reconhecia, foi efetivar uma das funções da fotografia, a do ver e sentir.
Barthesiana de carteirinha que sou, me encanto pela possibilidade de ver e ser tocada pelas nossas imagens, que segundo Roland Barthes (1984) devem ser essas as “imagens que nos interessam”. Para pensar o “Museu da Silva”, recorro a um texto que escrevi sobre a minha relação com Barthes e as minhas fotografias, sobretudo no tocante aos meus álbuns de família. O texto nomeado de Reflexão (inter)pessoal sobre o direito à fotografia e a ser fotografado (2019) traz questionamentos sobre o direito à imagem fotográfica e nossas construções afetivas e identitárias. Foi com o mesmo mover de Moara Brasil que iniciei a escrita afetiva sobre as minhas imagens. Tenho como prática escrever sobre as minhas imagens, sobretudo no que diz respeito às poucas imagens que tenho da minha infância. Há um espaço vazio e uma ausência que os processos de colonialidade, exclusão e racismo deixam na vida de algumas pessoas. Possivelmente, a minha e a de Moara Brasil foram marcadas por essas relações.
BARTHES, Roland. A câmera clara. Notas sobre a fotografia. Tradução Júlio Castañon Guimarães. 9ª impressão. Editora Nova Fronteira. 1984.
Falar de ausência de imagens em um mundo proliferado por imagens pode parecer contraditório para alguns, porém, o “Museu da Silva” nos prova que a democratização das imagens não ocorreu simultaneamente e de maneira igualitária e transversal para todes. Alguns corpos e histórias se tornaram história fotográfica, outros não. Sabendo disso, pergunto-me: Quais corpos merecem ser fotografados? A quem pertence a fotografia e sua história? Quem tem direito à imagem?
Nunca é fácil expor as próprias fotografias, e fazer isso é um ato político pelas memórias, pelo direito a existir em imagem e pela busca de sua própria existência. Acredito na necessidade de animarmos indiscriminadamente os nossos acervos pessoais fotográficos, imaginários, futuristas, etc. O que seria de mim, de Moara Brasil, do “Museu da Silva” sem as nossas memórias? Sem as histórias que a fotografia carrega? Falar dessas imagens e do caráter afetivo da fotografia é trazer novamente à vida aquilo que as faz existir: o direito a ser história, a ser corpo e a ser memória.
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