Editorial
Revista SP-Arte
Notas sobre Amrita Sher-Gil e Tshibumba
Kanda-Matulu
Maria do Carmo M. P. de Pontes
12 mai 2020, 9h
Faz alguns anos que venho pesquisando artistas, do século 20 até o presente, que morreram jovens. Essa pesquisa serviu como base para a minha curadoria do setor Masters na 16ª edição da SP-Arte e, neste artigo, compartilho as histórias de Amrita Sher-Gil e Tshibumba Kanda-Matulu, dois artistas que, apesar de terem sofrido grandes desafios pessoais e circunstanciais, produziram obras excepcionais ao longo de suas breves vidas.
Acima: Amrita Sher-Gil, "Two Girls", 1939. Óleo sobre tela. 1,29x89 cm (detalhe)
Amrita Sher-Gil
Considerada por muitos como a grande dama da arte indiana — embora, como era de se esperar, não em vida —, a pintora Amrita Sher-Gil (1913–41) era a filha mais velha de um pai aristocrata sikh, estudioso das línguas sânscrita e persa, e de uma mãe húngara, cantora de ópera, nascida em uma família abastada. Sher-Gil passou a maior parte de sua infância na Hungria. Tendo mostrado um talento artístico excepcional já aos cinco anos de idade, aos oito anos ela começou a estudar arte. Em 1921, sua família mudou-se para a cidade anglicizada de Shimla, no norte da Índia, onde, ao lado de sua irmã mais nova, Indira, ela se apresentava em concertos e peças no teatro local. Três anos mais tarde, aos onze, ela foi com a mãe para Florença, onde estudou arte por um breve período antes de retornar à Índia. Foi em 1929, ao se mudar para Paris com a mãe e a irmã, que Sher-Gil iniciou sua educação artística formal; primeiro na Académie de la Grande Chaumière, e depois na École des Beaux-Arts.
No período entreguerras e no auge da grande depressão econômica mundial, Paris não vivenciava mais um clima de efervescência, pois o grande fluxo de talento artístico que começara com os expressionistas e culminara com a abundância de movimentos, tais como o surrealismo, no início da década de 1920, já havia atingindo seu clímax. O ingresso na academia despertou dois elementos na vida de Sher-Gil: por um lado, serviu para aprimorar suas habilidades como pintora; por outro, permitiu que ela se deixasse influenciar pela rigidez inerente a esse tipo de ambiente acadêmico. De fato, embora tenha sido sempre uma boa aluna, seus primeiros dois anos na École des Beaux-Arts foram descritos como meramente competentes, ou mesmo banais, durante os quais ela produziu um enorme volume de obras em grande velocidade. Na segunda metade dos seus estudos, ela adotou um ritmo mais lento, dedicando-se à busca de sua própria linguagem — embora tenha-se observado várias vezes que a irregularidade marcou sua produção como um todo, por vezes até em uma mesma pintura. Em Paris, ela dividia seu tempo entre a produção de retratos dos colegas de curso — a maioria mulheres, possivelmente amantes — e o desfrute da vida noturna da boêmia parisiense. Suas pinturas desse período são bem executadas, mas bastante acadêmicas, empregando uma paleta de cores e uma temática um tanto europeias. Além disso, sua passagem pela academia significou que ela dependeria de modelos vivos pelo resto de sua carreira. Nessa época, a pedido de sua mãe, ela ficou noiva de um proeminente jovem indiano. No entanto, o casamento foi cancelado alguns meses depois por falta de interesse, ou de afeto. Como uma forma de punir sua mãe, seus romances com homens e mulheres se tornaram cada vez mais intensos, e ela precisou fazer dois abortos nessa época.
Em 1934, Sher-Gil expressou vontade de voltar para a Índia. Seu sobrinho Vivan Sundaram sugere duas razões principais: uma romântica, que demonstrava um desejo de se conectar com suas raízes, e outra prática, para estar em um local onde a competição era menos acirrada. “A Europa pertence a Picasso, Matisse; a Índia é toda minha”, ela escreveu em seu diário. Ao voltar para Shimla, a artista foi recebida como uma espécie de celebridade, com convites para as reuniões e os eventos sociais mais badalados da cidade. Sua sensação de desconforto nessas situações era recorrente: sentia-se entediada pelo elitismo monótono das conversas, embora ela mesma pertencesse a uma família da elite pró-britânica. Contradições e ambiguidades marcaram a vida de Sher-Gil desde o início, sendo a primeira delas, e talvez a mais formativa para sua personalidade, a sua dupla origem europeia e asiática. Isso a colocava em um certo limbo, em um lugar intermediário em relação tanto ao seu vocabulário artístico quanto à sua personalidade, descrita como “encantadora, amável, fascinante e excepcional”. No entanto, tais elogios não eram unanimidade, e, durante sua vida, recebeu críticas na mesma medida que louvores. Seu trabalho contava com apenas um punhado de apoiadores e compradores, e a artista frequentemente tinha que aceitar encomendas — o que ela detestava — para garantir seu sustento.
Em 1936, Sher-Gil fez uma viagem para o sul da Índia, onde visitou as cavernas de Ajanta e Ellora — antigos monumentos budistas cuja arte havia influenciado várias gerações anteriores de artistas. Foi então que também entrou em contato com as tradições Mughal e Rajput de pintura em miniatura. Esses encontros tiveram um impacto enorme na sua produção posterior, e, ao retornar para Shimla, a artista pintou três dos seus mais celebrados quadros, conhecidos informalmente como Trilogia do Sul da Índia (Brahmacharis, Bride’s Toilet [Toalete da noiva] e South Indian Villagers Going to Market [Aldeões do Sul da Índia indo ao mercado], todos de 1937.) Essas pinturas foram executadas com um estilo muito mais simplificado do que havia usado até então, abordando figuras humanas mais como formas do que como corpos. Sua paleta de cores, girando em torno de tons quentes e crus, também era fundamentalmente diferente de sua produção anterior. Apesar de seu interesse persistente pelas populações campesinas da Índia, suas pinturas eram apolíticas em sua essência, e seu fascínio por essa parte da população puramente estético. Contudo, ela simpatizava com Gandhi, e dizem que conheceu Jawaharlal Nehru intimamente.
Vivan Sundaram et. al. Amrita Sher-Gil. Bombaim: Tata Press Limited e Marg Publications, 1972.
Cerca de um ano depois, contra a vontade de seus pais, Sher-Gil voltou à Hungria para se casar com um primo de primeiro grau, o doutor Victor Egan. É sabido que o casamento foi um acordo de conveniência, pois ele não tentaria domá-la para que se tornasse uma dona de casa, permitindo que exercesse sua arte e vivesse suas paixões. Ela, então, passou mais de um ano no país europeu, permanecendo no interior a maior parte do tempo. Nessa época, sua paleta e seu tratamento da tela voltaram a ser europeizados, mas de uma forma diferente da fase parisiense. Foi lá que iniciou uma de suas pinturas mais fascinantes, uma composição vertical intitulada Two Girls [Duas meninas] (1939), que mostra duas jovens, ambas nuas: a menina de pele mais escura está sentada com as mãos cruzadas, parcialmente coberta por um pano branco, enquanto a menina com a pele mais clara está em pé com o braço esquerdo rodeando o ombro da outra. Um retrato de seu próprio limbo. Muitos compararam Sher-Gil com Paul Gauguin (1848-1903) por compartilharem um interesse por temáticas não-europeias. No entanto, enquanto Gauguin era um homem europeu fascinado por um outro exotizado, os temas indianos de fato faziam parte da identidade de Sher-Gil.
Com a deflagração da Segunda Guerra Mundial, em 1939, o casal foi forçado a deixar a Hungria fascista e mudar-se para Saraya, no norte da Índia. O novo local apresentava potencial para aventuras selvagens, mas era absolutamente monótono em termos de vida social. Sher-Gil começou a sofrer de tédio e provavelmente de depressão; como consequência, trabalhou muito pouco, sendo que durante um longo período não produziu obra alguma. Em setembro de 1941, o casal mudou-se para Lahore, onde havia um grupo social mais interessante com o qual interagir. Foi então que Sher-Gil começou sua última e inacabada pintura: um pátio visto por cima. Embora o gênero do retrato tenha moldado seu vocabulário, não era a primeira vez que ela voltava o olhar para uma paisagem. Sher-Gil morreria alguns meses depois, dias antes da abertura de uma exposição individual em Lahore. O motivo exato da sua morte continua desconhecido, embora acredite-se que tenha sido o resultado de uma tentativa malsucedida de aborto, feita pelo marido. Ela tinha 28 anos.
Tshibumba Kanda-Matulu
Tshibumba Kanda-Matulu (também conhecido como TKM) nasceu em 1947 no Congo Belga, na época chamado de Zaire, atual República Democrática do Congo (RDC). Vindo de uma cidade mineradora próxima a Lubumbashi, no sul do país, Kanda-Matulu foi um pintor autodidata que passou seus anos formativos mudando de uma cidade mineradora para outra com o pai, que buscava emprego. Mesmo na idade adulta, seu estilo de vida pode ser descrito como seminômade, pois estava em constante mudança de paradeiro. Embora tenha começado a pintar no início dos anos 1960, o artista assumiu a pintura como profissão somente anos depois, em 1969. Na época em que o Congo se tornou independente da Bélgica, em 1960, a prática de “pintura de gênero” passou a ser moda entre os congoleses que seguiam a Escola do Zaire de Arte Popular. Muitos, entre eles TKM, beneficiaram-se de um momento de relativa paz trazida pela independência e conseguiram ganhar a vida com a arte, vendendo seus trabalhos em mercados ou de porta em porta para famílias da classe trabalhadora e da pequena burguesia. A restrita comunidade europeia também formava uma boa clientela.
Um dia, em 1973, com o propósito de vender suas pinturas, TKM visitou a casa do antropólogo alemão Johannes Fabian, que estava então vivendo em Lubumbashi. Com o consentimento do artista, Fabian gravou o áudio desse encontro casual, que seria o primeiro de muitos. O pouco que se conhece hoje da vida de Kanda-Matulu é resultado dessas gravações. Juntos, eles começaram a formular a ideia de uma história pintada do Congo, que culminaria em 101 composições cujas narrativas se iniciam na era anterior a Cristo e seguem até 1976, quando a última pintura foi produzida. Além de suas habilidades artísticas, TKM era um talentoso contador de estórias, com um extraordinário conhecimento de história.
Os eventos anteriores à independência do Congo – abrangendo dezenas de séculos – estão representados em pouco mais de quarenta trabalhos: a etimologia mitológica do nome Zaire, que, supostamente, foi o resultado de um desentendimento entre o navegador português Diogo Cão e uma autoridade local; a chegada dos primeiros exploradores; as atrocidades perpetradas pelo Rei Leopoldo II da Bélgica enquanto o país era de sua propriedade pessoal e, subsequentemente, uma colônia belga; os heróis nacionais, como os líderes Katanga e Ngongo Lutete, entre outros. Fabian revela que TKM muitas vezes se confundia sobre datas e eventos, mas, em vez de serem acidentes, esses deslizes eram, com efeito, uma licença poética do artista. Como afirma o antropólogo, “a maioria dos seus desvios dos fatos – em especial de fatos aparentemente simples, tais como datas – são ficções que carregam uma mensagem. Sua intenção é “fazer-nos pensar”.
De acordo com Johannes Fabian, em diversas ocasiões o artista fornecia relatos conflitantes acerca de sua formação.
Pinturas com as mesmas cenas ou temas. Elas eram normalmente composições “ativadoras de memória”, fossem paisagens ou cenas históricas ou folclóricas.
Movimento que se destacou nas décadas de 1960 e 1970, consistia de pintores, em sua maioria autodidatas, que se utilizavam de cor e escrita em suas pinturas para criar obras políticas, denunciando o passado escravocrata da República Democrática do Congo.
Embora a cronologia oficial diga 101 pinturas, constatou-se que um dos trabalhos foi numerado duas vezes (54 e 76) na cronologia.
Johannes Fabian, Remembering the Present: Painting and Popular History in Zaire. Berkeley: University of California Press, 1996, p. XIII.
As duas figuras centrais da independência do Congo, Patrice Lumumba e Joseph Kasa-Vubu, ocupam uma posição fulcral na narrativa de TKM. Eles se tornaram, respectivamente, o primeiro-ministro e o presidente da nação independente a partir de 1960. No entanto, o mandato de Lumumba foi de brevíssima duração, interrompido por seu assassinato em 1961. A admiração do artista pelo líder político é evidente na forma como ele o retratou. Longe de ser um marco na conquista da paz, a independência do Congo despertaria várias insurreições e guerrilhas locais. Em 1965, por meio de um golpe de Estado orquestrado por militares, Mobutu Sese Seko subiu ao poder. Com seu discurso ultranacionalista, ele mudou o nome e a bandeira do país para assim governá-lo de maneira impiedosa até 1997.
Não há dúvida de que esse conjunto de obras, atualmente mantido pelo Tropenmuseum em Amsterdã, é a produção mais importante de Kanda-Matulu. O artista explica que teve de terminar as pinturas às pressas, pois Fabian precisava deixar o país devido ao aumento da instabilidade política, o que o levou a ignorar vários detalhes.
Apesar de sua carreira curta, a produção de Kanda–Matulu foi prolífica. Ele conseguia produzir cerca de cinco pinturas por dia, embora declarasse que as paisagens sempre levavam mais tempo. Seus trabalhos, assim como os dos seus colegas artistas de Lubumbashi, eram, em geral, assinados. Suas composições eram feitas em sacos de farinha preparados com uma camada de látex branco e depois pintados com tinta acrílica. Normalmente, as telas eram circuladas por uma fina linha preta, como se fosse uma moldura, e todas as pinturas têm títulos e breves explicações escritas sobre a cena que retratam. É provável que a extraordinária economia de cores que ele usava estivesse mais relacionada com a situação de escassez do país do que com suas escolhas estéticas. Pode-se dizer o mesmo do seu tamanho preferido de tela, 40 × 60 cm, pois essa dimensão é equivalente à maior parte de superfície que pode ser retirada de um saco de farinha. Ele pintava a partir de fotografias, revistas e memórias. O artista manteve–se interessado pela política do seu país após a partida de Fabian. Sabe-se, por exemplo, que ele pintou as Guerras de Shaba (1977-78). Além disso, seu interesse pela história continuou a florescer e culminou na escrita de um livro de 72 páginas sobre o Zaire. Ou seja, ele insistiu no fazer artístico apesar de todos os problemas que seu país enfrentava. É muito provável que, assim como vários de seus conterrâneos, ele tenha assumido outras funções para conseguir se manter. Sabemos que pintou até 1981. A conclusão mais plausível é que tenha morrido naquele ano como vítima de um dos diversos conflitos que assolaram o país.
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