Editorial
A fundação de Brasília assinalou a consolidação da linguagem modernista no imaginário nacional, marcando a fase de apogeu do móvel moderno brasileiro.
24 mai 2019, 16h01
Por jayme vargas
O século 20 representou um período de importantes transformações estruturais para o Brasil. Uma crescente diferenciação da atividade econômica associou-se, naquela época, a um contínuo processo de expansão urbana e de diversificação do tecido social; e mais, no decorrer de uma trajetória política muitas vezes instável e turbulenta, manifestou-se uma busca persistente por maior representatividade. Tais processos trouxeram, como consequência, a urgente aspiração por novas formas de apreensão e de expressão da realidade para a produção cultural e intelectual brasileira. Como resultado, ocorreu uma participação ativa do país no projeto modernista – então em curso no cenário internacional –, dando origem a uma interessante vertente do movimento, que se estendeu por quase todo o século.
A criação do mobiliário brasileiro seguiu o mesmo princípio de inserção na linguagem modernista do período, incorporando ainda alguns temas específicos ao país, como a busca de uma identidade nacional e a consequente oposição a estilos e proposições passadistas, identificados como acadêmicos, artificiais e não representativos das realidades locais. Tal conjunto de elementos deu-se, ainda, em estreita relação com outras áreas da produção cultural. Um mercado então incipiente para o design e a ausência de formação específica para o setor fizeram com que, não raro, os pioneiros do móvel moderno no Brasil exercessem outras atividades simultaneamente, em particular as práticas da arquitetura e das artes visuais.
É a partir do final dos anos 1920 e no curso da década seguinte que o mobiliário moderno começa a se manifestar de maneira mais constante no país. As criações de John Graz, Gregori Warchavchik e Lasar Segall são reveladoras de uma produção nacional ainda próxima às influências europeias, como o art déco francês e as proposições da escola alemã Bauhaus.
Com a década de 1940, dá-se início à atuação de Joaquim Tenreiro, designer e artista português, radicado ainda jovem no Brasil. Seu trabalho propôs algumas das questões que, mais tarde, se tornaram centrais para o desenvolvimento do móvel moderno nacional. Tenreiro buscou a utilização de materiais construtivos adequados ao clima local, em oposição aos pesados estilos e modelos de revestimentos que predominavam no gosto da época: em seu ofício, os grossos tecidos de veludo foram substituídos pela leveza da combinação entre o jacarandá e a palhinha – leveza essa que se afirmaria sobretudo no aspecto formal de suas peças, e que caracterizaria boa parte da produção nacional subsequente.
Na fabricação de sua mobília, o designer empregou a produção artesanal e a semiartesanal, o que resultou em peças de execução apurada, destinadas a consumidores de alto poder aquisitivo. Apesar do caráter pouco mecanizado de seu trabalho, Tenreiro manifestou a intenção de adotar a produção industrial para promover a popularização de seus produtos. Esse objetivo nunca chegou a ser realizado. A industrialização na produção do mobiliário brasileiro foi alcançada de forma consistente somente a partir do final dos anos 1950, por criadores como Percival Lafer, Michel Arnoult e Geraldo de Barros.
A fundação de Brasília, em 1960, assinalou a consolidação da linguagem modernista no imaginário nacional. A década que então se iniciava marcou ainda a fase de apogeu do móvel moderno brasileiro, que passara a contar com uma multiplicidade de propostas autorais e de empresas dedicadas ao setor, que atendiam a um público consumidor consideravelmente ampliado.
A partir da década de 1970, é possível observar um processo de esgotamento das proposições modernistas – tanto no Brasil quanto no exterior –, não mais consideradas renovadoras ou pertinentes ao período. No âmbito cultural, tal produção permaneceu em geral reconhecida como um importante legado e uma referência para as novas gerações que a partir dali se afirmavam – circunstância que não se estendeu ao mobiliário moderno brasileiro, que experimentou a partir desse momento um processo de quase total esquecimento e passou a ser visto apenas como um modismo ultrapassado. Esse ostracismo só seria revertido tempos depois, já nos anos 1990, quando, acompanhando a tendência internacional de revalorização do design do século 20, se inicia um movimento de redescoberta do que aqui havia sido criado naquele período. Constatou-se, com surpresa, uma vigorosa e múltipla produção de alta qualidade que, apesar das limitações técnicas das empresas nacionais da época, alcançou rara maturidade formal.
A partir desse ponto, novas camadas de significado agregaram-se ao móvel moderno brasileiro: este passa a ser percebido não apenas como objeto utilitário, mas também como possuidor de relevância histórica e da capacidade de incorporar a fruição estética e a prática do colecionismo. Assim, um novo público consumidor começa a se formar: de início restrito, o grupo amplia-se significativamente ao longo do tempo. O renovado interesse pela mobília moderna no país, que agora compreendia a busca pelo conhecimento de sua trajetória histórica e o estudo de seus autores, acabou por criar um mercado vigoroso para os seus exemplares remanescentes, que passaram a ser comercializados por galerias especializadas, semelhantes em muitos aspectos às galerias dedicadas ao mercado de arte. E mais, esta evolução motivou ainda a iniciativa de reedição das peças mais significativas desta produção.
Vale notar que, neste ensaio, serão consideradas apenas as reedições chamadas “autorizadas”; isto é, peças realizadas com a permissão e o acompanhamento dos autores de seus projetos originais, de seus representantes ou ainda das instituições responsáveis pela administração e pela salvaguarda da obra desses autores. As demais reedições ou réplicas se situam em uma área de incerteza e imprevisibilidade que dificulta, em grande medida, a melhor compreensão das condições e das circunstâncias em que são realizadas.
As reedições autorizadas são executadas a partir dos projetos criados para as peças originais de época ou, na ausência delas – o que é frequente –, utiliza-se como modelo um exemplar original, similar ao item a ser reeditado. Embora as reedições compartilhem com as peças de época as mesmas características e sejam presumivelmente suas cópias fiéis, elas acabam estabelecendo uma dinâmica de identificação e diferenciação – ou de aproximação e distanciamento – entre as duas versões. Essa dinâmica abrange diversos aspectos, como os processos de produção, os materiais utilizados, as formas de circulação e distribuição no mercado e os modos de apropriação pelos usuários.
A relevância atribuída ao conceito de autenticidade pode ser compreendida como um ponto de convergência entre as reedições e as peças de época. A ideia de “autenticidade” comporta, sempre, certa fluidez, uma dificuldade intrínseca à definição do alcance e da extensão de seus significados. Aqui, essa ideia pode ser entendida como a busca pela aderência às características originais do projeto de um determinado item de mobiliário ou pela reprodução, a mais íntegra possível, de sua proposta autoral.
Nas peças de época, essa busca decorria habitualmente da intervenção pessoal do autor – que muitas vezes também exercia a função de proprietário da empresa moveleira –, e de seu interesse em assegurar a reprodução fidedigna de suas criações. Nas reedições, por sua vez, verifica-se um processo similar, conduzido também pelo autor dos projetos originais (quando em vida), por seus representantes e herdeiros ou pelas instituições responsáveis pela qualificação dos exemplares reeditados. Na ausência do autor, se estabelece uma mediação e uma complexidade adicionais aos procedimentos que buscam autenticidade.
Para a realização das reedições, um dos frequentes entraves é a virtual impossibilidade de se obter, hoje, os mesmos materiais empregados no momento de fabricação das peças de época. As madeiras mais utilizadas ao longo daquele período se encontram atualmente extintas ou em processo de extinção, como é o caso do jacarandá, madeira emblemática do móvel brasileiro. Da mesma forma, diversos produtos e componentes industrializados empregados anteriormente tiveram a sua produção interrompida ou seus processos de fabricação significativamente alterados. Este foi, entre outros, o caso dos tubos de aço de que Lina Bo Bardi fez uso em sua Cadeira Tripé, ou das placas de madeira compensada, também muito utilizadas por Bo Bardi e José Zanine Caldas nos anos 1950.
A confecção das reedições se faz predominantemente com o uso de materiais equivalentes disponíveis. Uma dificuldade semelhante ocorre na tentativa de reconstituição dos processos produtivos originais: em sua maioria, eles se tornaram inviáveis em virtude de questões tecnológicas e econômicas, ou, ainda, dadas as restrições de determinadas leis ambientais.
Da mesma forma, as reedições no Brasil são habitualmente feitas em quantidades reduzidas, o que de certa forma reaproxima as suas técnicas de produção àquelas da feitura das peças de época.
De início, o móvel moderno trouxe não apenas uma renovada concepção de estilo, mas também a proposta de um novo modo de viver e de morar. Naquele instante, no entanto, predominava ainda o seu caráter utilitário ou funcional. Hoje, os seus exemplares remanescentes e as suas reedições passaram a incorporar a perspectiva histórica que foi associada a eles ao longo do tempo, mas preservaram em sua maior parte a funcionalidade como aspecto central.
As reedições são sobretudo adquiridas em função de seus atributos utilitários, embora esta seja uma aquisição que pode envolver o entendimento de questões históricas pertinentes e particularidades de autoria. As peças de época se situam em uma condição análoga, são essencialmente vistas como autorais e portadoras de valor histórico, mas também utilitárias. Uma parcela dessas peças tem, no entanto, uma finalidade de natureza distinta: são percebidas como colecionáveis, destinadas a pertencer a uma coleção. O filósofo e ensaísta alemão Walter Benjamin menciona, em sua obra “Passagens” (1982), a transição para um círculo mágico dos objetos que passam a integrar uma coleção. Eles se imobilizam enquanto percorrem um último estremecimento ao serem adquiridos, libertando-se da servidão de serem úteis. Para o móvel moderno, essa libertação se relativiza: antes, ele materializa um estado de ambiguidade, fazendo-se fronteiriço, parte objeto funcional, parte motivo de fruição estética e contemplação.
Jayme Vargas é curador independente e historiador formado pela Universidade de São Paulo. Por vinte anos tem pesquisado o mobiliário moderno brasileiro, tendo realizado palestras, textos e curadorias. É coautor, com o fotógrafo Ruy Teixeira, do livro “Desenho da utopia: mobiliário moderno brasileiro” (Editora Olhares, 2016), para o qual escreveu textos e atuou como organizador; o título foi vencedor do Prêmio Design Museu da Casa Brasileira (2017) e finalista do Prêmio Jabuti (2017) na categoria Arquitetura, Urbanismo, Artes e Fotografia. É autor do livro “Percival Lafer: design, indústria e mercado” (Editora Olhares, 2018).
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