Editorial
Entrevista
Laís Amaral entrevista Lucia Laguna
Laís Amaral
18 nov 2024, 12h56
Ter a oportunidade de conversar mais a fundo com Lucia Laguna (artista representada pela Fortes D’Aloia & Gabriel) é um marco. Ela é uma das artistas que mais influenciaram o início da minha pintura e continua a influenciar até hoje. Aprendo muito com a dinâmica e a prática dela em ateliê, com a forma que ela conduz todo o processo. Com certeza, é uma das pinturas em que mais mergulho e que mais me impactam.
Ela foi uma das primeiras artistas negras que eu conheci pintando algo entre a abstração e o figurativo. Na minha opinião, sua linguagem é muito única — trata-se de um universo muito particular e, ao mesmo tempo, coletivo quando ela pensa em cidades e paisagens.
Tanto o raciocínio quanto a prática de Lucia são profundamente inspiradores e me aproximam verdadeiramente da possibilidade da arte. É uma artista que, além de inspirar admiração pelo seu trabalho, demonstra ser possível viver da arte e, principalmente, da pintura.
A entrevista abaixo foi feita por Laís Amaral, artista representada pela galeria Mendes Wood DM, no ateliê de Lucia Laguna no Rio de Janeiro no dia 30 de setembro de 2024, e transcrita para este editorial.
Acima: Ateliê Lucia Laguna no Rio de Janeiro. (Foto: Cortesia da artista e Fortes D'Aloia & Gabriel, São Paulo/Rio de Janeiro)
Laís Amaral: Como você iniciou na pintura e por que você escolheu essa linguagem?
Lucia Laguna: O chamado veio de modo indireto, quase por acaso, quando desci de um ônibus para saber o que era uma escola de artes visuais.
Nos anos 1990, eu morava na Zona Norte do Rio de Janeiro, perto da UERJ [Universidade do Estado do Rio de Janeiro] e estava indo para o Shopping da Gávea – eu não ia muito para a Zona Sul. Vi aquela escola de artes visuais [Parque Lage], desci e fui lá. Tinha uma secretaria logo no começo com livros que falavam dos cursos e dos professores, eu dei uma olhada e pensei: “Santo Deus, eu não sei nada disso. Como vou começar?”. Perguntei para a moça que trabalhava lá: “Algum professor recebe aluno que nunca fez nada disso?” e ela disse: “Tem sim, o professor Luiz Ernesto [diretor do Parque Lage de 1998 a 2002]” e então eu me matriculei neste curso. Fui e nunca mais saí, até passar por todos os professores daquela época. Eu adorava aquela escola, adorava o convívio.
Também fiz o curso do Charles Watson [professor da Escola de Artes Visuais do Parque Lage] durante muito tempo e gostava demais das aulas dele, porque tinha bastante discussão, textos e avaliações de trabalhos.
Escolhi a pintura como linguagem porque, para mim, fazia sentido. Eu estava com as artes escritas, mas também com as manuais, porque cheguei a fazer bordados e coisas assim. Tive, com meu marido, uma fábrica de brinquedos para crianças. Depois que você está nesse ambiente e passa para a arte, vê que estava pensando ali [na fábrica de brinquedos] em escultura. Tudo está ligado. Foi muito fácil, muito simples fazer essa passagem.
LA: Quais são as suas referências?
LL: Eu gosto muito, de coração, dos impressionistas e expressionistas. Principalmente os expressionistas, por causa daquelas pinceladas duras e pela escolha da natureza, pela abordagem que eles faziam.
LA: Como se deu e como se dá o seu processo criativo?
LL: É como diz a frase do Milton Santos, geógrafo: “o mundo é o que se vê de onde se está”. E por aí eu fui. Eu estava lá, na rua Nazário [no Rio de Janeiro], tinha uma paisagem em torno de mim, um jardim, a minha casa. Então era disso que eu ia falar na pintura.
Como não tinha nenhuma prática com arte, eu olhava muito pela janela do ateliê que ficava no terceiro andar da minha casa, no alto de uma ladeira, e pintava o que eu estava vendo lá fora. As casas, árvores, vias expressas, ou seja, os bairros da zona norte do Rio de Janeiro. Então, toda aquela extensão de construções, o aglomerado e o sufoco da cidade, estava tudo ali.
E tem a parte de ensinar, de dar muitas informações para os assistentes que não estavam habituados a pintar daquela maneira. Eu passei a ter assistentes porque gostava de fazer quadros grandes, os quadros grandes são difíceis de manejar e, nessa época, eu já tinha mais de sessenta anos. Para descobrir coisas novas, eu rodava o quadro, pintava em uma direção, depois na outra. Ficava uma certa confusão e, nessa confusão, eu ia me achar. Quando encontrava alguma coisa interessante, colocava fitas cobrindo áreas e começava um apagamento de outras áreas. E depois tinha a hora de tirar as fitas e ver se estava muito incongruente aquilo que eu cobri com aquilo que havia em volta.
LA: Como você classifica o seu estilo de pintura?
LL: Acho problemático definir um estilo, sabe? Se você tem um estilo definido e se mantém dedicado àquilo, pode querer mudar, mas fica preso. Então, acho que eu não tenho estilo nenhum. Estilo é o seu, do seu mundo particular. No meu caso, elimino algumas áreas e insiro outras. Sobreponho partes da pintura. Secularmente, a pintura é isso: olhar por uma janela por onde você vê uma realidade lá fora.
LA: Você está acompanhando o trabalho de algum artista atualmente? Quem e por que?
LL: Depois que fui a Londres em 2022 e vi uma exposição do William Kentridge na Royal Academy, me encantei por ele e por seus conceitos novamente.
LA: E qual foi o impacto das suas primeiras primeiras viagens no seu processo?
LL: A primeira vez que vi um Degas ao vivo foi bem encantador e, ao mesmo tempo, agoniante porque não dava para guardar aquelas coisas todas. O livro não era o suficiente, os filmes não eram suficientes.
LA: Para algumas pessoas a pintura é algo superficial, antigo. Mas você apresenta uma perspectiva que já é um marco, sendo uma mulher negra no Brasil. Sinto que a pintura abstrata, feita por mulheres, é muito relevante e tem algo por trás.
LL: A minha pintura não é abstrata. Eu faço uma quebra na figuração da narrativa da pintura. A minha intenção desde o princípio foi reproduzir o que eu via pela janela. Reconstruindo as paisagens a partir do meu ponto de vista e tentando surpreender o espectador.
LA: Você acha que o colorismo já estava dentro de você? É uma intuição natural ou algo que aprendeu na prática?
LL: O que talvez tenha me trazido para perto da pintura desde criança foi a presença um quadrinho de um flamboyant pequenininho que ficava na nossa sala de casa. Tinha uma moldura toda dourada, toda trabalhada. Não me lembro se era uma praia ou um jardim com o flamboyant que caía até o chão. E eu gostava demais daquele quadro, estava sempre olhando para ele e essa memória ficou presente em mim.
Mais tarde, quando comecei a pintar, fui aprendendo a lidar com as cores. Num primeiro momento, não ousava usar cores fortes. Fazia quadros em tons mais claros. Tinha medo do vermelho. Com o passar do tempo, fui ficando mais segura.
LA: A sua atuação como professora de língua portuguesa e literatura repercute de alguma maneira na sua produção artística? Como?
LL: Sim, porque a literatura é feita de narrativas. Mesmo os poemas têm uma narrativa. Então, isso tem influência, certamente, na minha pintura.
LA: Conte um pouco sobre sua relação entre educação e arte.
LL: Certa vez, numa escola, a diretora teve que fazer um encontro com os pais dos alunos porque eles estavam estranhando muito a minha maneira de trabalhar. Comecei do mesmo jeito que eu falava com os alunos. Dei um texto, fiz algumas perguntas e pedi que alguém respondesse. Alguns se levantaram e falaram, e a partir daí comecei a explicar o que desejava sobre minha maneira de trabalhar em sala de aula: por que eu trabalhava dessa maneira, que caminho estava abordando, para onde queria ir.
Eu desejava mais para os alunos. Que eles não ficassem presos somente aos livros didáticos. Então comecei a usar a coleção “Gênios da Pintura” (que estavam nas bancas de jornal naquela época), para fazê-los pensar a partir daquelas imagens.
Para ensinar pré-adolescentes era preciso usar recursos mais atraentes para despertar a reflexão, perguntar para estimular que pensassem e, a partir disso, respondessem. E assim sigo na pintura, sem um caminho pré-definido, ele vai se fazendo à medida em que o processo se desenvolve.
Lucia Laguna (Campos dos Goytacazes, Brasil, 1941)
Na obra de Lucia Laguna, elementos reconhecíveis – folhagem, mobiliário, comida, animais – convivem com linhas e cores justapostas, em gestos calculados que compõem paisagens e interiores em planos fraturados. As formas que preenchem suas telas parecem incompletas, nascendo do acúmulo e do apagamento de camadas de tinta. Laguna tem obras em importantes coleções públicas, entre elas o MAR, MAM SP e Rio, MASP e Museu Nacional de Brasília.
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