Obra inédita de Vânia Mignone que integra o livro "Fazenda dos animais". Cortesia da artista e Galeria Casa Triângulo.
Entrevista

George Orwell de cara nova: Conversa com Máquina Estúdio

Barbara Mastrobuono
9 fev 2021, 15h12

Internacionalmente consagrado, o autor inglês George Orwell entrou para os anais da história escrevendo sobre repressão política e estados de controle. Duas de suas mais importantes obras, 1984 e A fazenda dos animais chegam ao Brasil pela editora Companhia das Letras em projeto gráfico especial desenhado pelos designers Felipe Sabatini e Kiko Farkas, da Máquina Estúdio. Nestas novas edições, o projeto gráfico é construído em torno de ensaios de Vânia Mignone e Regina Silveira.

Acima: Obra inédita de Vânia Mignone que integra o livro "Fazenda dos animais". Cortesia da artista e Galeria Casa Triângulo.

Foto Rodrigo Lins. Cortesia Máquina Estúdio.

Foto Rodrigo Lins. Cortesia Máquina Estúdio.

BARBARA MASTROBUONO : Recentemente, a Máquina Estúdio encabeçou o projeto gráfico de duas obras seminais do séc. 20, 1984 (1949) e A Fazenda dos Animais (1945), ambas de George Orwell, publicadas pela Companhia das Letras. Orwell nos apresenta com cenários de estruturas omniscientes e opressivas de poder em diferentes escalas, e com insurreições — bem ou mal-sucedidas — lideradas contra elas. Embora tenham sido escritos em torno da Segunda Guerra Mundial, podemos traçar diversos paralelos com as crises de poder e informação que estamos vivenciando no séc. 21. Como foi pensar um projeto gráfico para os dois títulos levando em conta nossa atual conjuntura?

ME : Muitas editoras estavam se preparando para lançar edições — com enfoques variados — de obras do autor. Detentora dos títulos do Orwell nas últimas décadas, a editora chamou a Máquina para pensar um projeto que olha para as suas duas principais publicações a partir de nossa atual realidade. Além de ser uma nova edição das obras, as duas publicações também deveriam conter um caráter comemorativo; em 2019, 1984 comemorou 70 anos de lançamento e, em 2020, A Fazenda dos Animais, 75 anos.

No briefing inicial eles estavam propondo uma edição com vários textos de apoio que percorriam a recepção dos títulos através de cada década. Isso levou a nos perguntarmos qual seria um comentário possível na atual conjuntura brasileira. Acabamos optando por um comentário visual: cada edição é aberta com um ensaio visual assinado por duas artistas brasileiras — Regina Silveira e Vânia Mignone.

Foto Rodrigo Lins. Cortesia Máquina Estúdio.
Foto Rodrigo Lins. Cortesia Máquina Estúdio.

Foto Rodrigo Lins. Cortesia Máquina Estúdio.

Foto Rodrigo Lins. Cortesia Máquina Estúdio.

Desde o início do projeto nós ficamos impressionados com a atemporalidade da narrativa de Orwell. É incrível — e desolador — como seu texto continua pertinente e como as questões levantadas são urgentes ainda hoje. Essa urgência temática foi um dos pilares para o desenho das capas das edições. A capa, uma serigrafia em tecido com alto contraste, traz em letras grandes e garrafais o sobrenome do autor e o título de cada edição. Sua obra é tão amplamente conhecida e relevante que abrimos mão do nome do autor na primeira capa — uma rara oportunidade. A construção tipográfica, inspirada nos cartazes de 1984 (Big Brother Is Watching You), garante uma potente legibilidade independente do local onde a capa é vista. 

As edições contam também com uma impressão em duas cores no corte. Essa é uma nova tecnologia de impressão que tivemos o privilégio de experimentar nesse projeto. No 1984 um grande olho corta a lateral do livro e se desfragmenta no manuseio da objeto. Em A Fazenda dos Animais, o livro é cercado por dentes animalescos que compõem uma raivosa mordida. 

BM : A nova edição especial dos livros conta com uma linha do tempo das capas apresentadas em edições anteriores dos dois livros. Como os projetos passados influenciaram o novo desenho? E quais foram as principais referências gráficas que o inspirou?

ME : O projeto gráfico anterior das edições do Orwell na Companhia das Letras também foi feito pela Máquina. Foi uma grata surpresa voltar ao autor depois de quinze anos. Para essa edição especial, nós pensamos num livro muito mais maduro, para um outro público. Fizemos um paralelo com a fortuna crítica e pensamos também numa linha do tempo de capas das obras. Cada publicação conta com catorze capas de diferentes países e diferentes momentos históricos. É muito interessante ver como as capas vão se transformando e se adaptando a cada contexto cultural. Aqui, a atemporalidade e universalidade da obra de Orwell transparecem.

Linha do tempo de capas passadas de "A Fazenda dos Animais". Foto Rodrigo Lins. Cortesia Máquina Estúdio.

Linha do tempo de capas passadas de "A Fazenda dos Animais". Foto Rodrigo Lins. Cortesia Máquina Estúdio.

Linha do tempo de capas passadas de "1984". Fotos Rodrigo Lins. Cortesia Máquina Estúdio.
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Linha do tempo de capas passadas de "1984". Fotos Rodrigo Lins. Cortesia Máquina Estúdio.

BM : Embora a denúncia contra o totalitarismo apresentada em ambos os títulos seja adotada ao redor do mundo como um hino contra opressão, cada país e continente têm particularidades dos regimes que tiveram de enfrentar. Como foi pensar em um projeto que aproxime os temas trabalhados por Orwell do contexto latino-americano, situado nas cargas de memória de nossa própria ditadura militar?

ME : Durante o desenho do projeto percebemos que o 1984 era o principal terreno para estabelecer essa conexão. A escolha dessa série de trabalhos da Regina Silveira passa por essa decisão. Nelas, a opressão do poder do Estado e das corporações ficam explícitas. Entendemos também que as obras narram, acima de tudo, a opressão como uma força da natureza humana, independente de contextos políticos regionais. Nesse sentido foi muito importante ressaltar uma virtude universal da narrativa. Nos interessa falar de nós como um todo. Por isso a linha do tempo de capas — e a própria fortuna crítica — estabelecem conexões para fora, para a produção de outros países, construindo assim uma visão multifacetada da obra.

Regina Silveira "Destrutura executiva II", 1975, apresentada no livro "1984" (Companhia das Letras). Foto Rodrigo Lins. Cortesia Estudio Regina Silveira e Luciana Brito Galeria

Regina Silveira "Destrutura executiva II", 1975, apresentada no livro "1984" (Companhia das Letras). Foto Rodrigo Lins. Cortesia Estudio Regina Silveira e Luciana Brito Galeria

Regina Silveira “Mesa Executiva”, 1975, apresentada no livro "1984" (Companhia das Letras). Foto Rodrigo Lins. Cortesia Estudio Regina Silveira e Luciana Brito Galeria.
Regina Silveira “Situação executiva”, 1974, apresentada no livro "1984" (Companhia das Letras). Foto Rodrigo Lins. Cortesia Estudio Regina Silveira e Luciana Brito Galeria.

Regina Silveira “Mesa Executiva”, 1975, apresentada no livro "1984" (Companhia das Letras). Foto Rodrigo Lins. Cortesia Estudio Regina Silveira e Luciana Brito Galeria.

Regina Silveira “Situação executiva”, 1974, apresentada no livro "1984" (Companhia das Letras). Foto Rodrigo Lins. Cortesia Estudio Regina Silveira e Luciana Brito Galeria.

BM : Vocês podem falar um pouco sobre como se deu a escolha pela artista Vânia Mignone para o ensaio inédito apresentado em A Fazenda dos Animais? Como foi o processo de trabalho? Pergunto o mesmo a respeito do ensaio de Regina Silveira.

ME : Desde o início a Regina Silveira foi nossa primeira escolha para o 1984. Nos primeiros rascunhos o ensaio visual era estruturado através das fotografias da série Plugged (2011). Posteriormente, em visita ao ateliê da artista, entramos em contato com as serigrafias das séries Destruturas Executivas (1975) e Armadilha para Executivos (1975). Os dois conjuntos caíram como uma luva para o clima dessa edição, eles transportam a atmosfera da narrativa e introduzem o leitor ao universo distópico de Orwell. Além desses trabalhos, cada capítulo da obra é acompanhado de um labirinto da série 15 Laberintos (1971).

Somos grandes admiradores do trabalho da Vânia Mignone. Suas imagens têm uma carga poética muito intensa e há uma relação forte com os animais. O universo de suas obras conversava muito com a leitura que fazemos do A Fazenda dos Animais hoje. Já desenvolvido durante o isolamento social o processo foi ligeiramente diferente. Desde o início ela se entusiasmou com o projeto. Mandamos o 1984 e ela viu o cuidado com o qual tratamos o trabalho da Regina. Nossa ideia inicial era usar um material já pronto, mas logo ela sugeriu fazer um trabalho original. O ponto de partida foi pensar nas pinturas como comentários visuais das obras e não como uma ilustração. Oito pinturas fazem parte desse ensaio, os cenários criados por Vânia expandem a literatura de Orwell e coroam essa edição. 

Ensaio de Vânia Mignone para o livro "A Fazenda dos Animais" (Companhia das Letras). Fotos Rodrigo Lins. Cortesia Máquina Estúdio.

Ensaio de Vânia Mignone para o livro "A Fazenda dos Animais" (Companhia das Letras). Fotos Rodrigo Lins. Cortesia Máquina Estúdio.

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BM : Por último, vocês já gostavam dos livros antes de iniciarem o trabalho de projeto gráfico?

FELIPE : Meu primeiro contato com o Orwell foi no colégio. Li as clássicas edições da Companhia de 1984 e a Revolução dos Bichos. Tenho uma memória afetiva com as publicações, elas foram uma porta de entrada para todo um novo segmento literário. Foi revelador reler o autor depois de tanto tempo, fiquei ainda mais impressionado com a potência dessas histórias.

KIKO : Eu já havia lido os dois livros e gostado de lê-los naquele momento. Não reli 1984 porque me lembrava do essencial. Reli A Fazenda dos Animais para poder conversar com a Vânia, mas não foi fundamental porque ela já sacou direto o que estava em jogo.

Cortesia Máquina Estúdio.

Cortesia Máquina Estúdio.


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Barbara Mastrobuono é editora, tradutora e pesquisadora. Trabalhou em casas editoriais como Editora 34 e Cosac Naify, e atuou como coordenadora editorial da Pinacoteca de São Paulo. Entre os títulos que traduziu estão “Tunga, com texto de Catherine Lampert; “Poesia Viva”, de Paulo Bruscky, com texto de Antonio Sergio Bessa; e “Jogos para atores e não autores”, de Augusto Boal. Defendeu sua dissertação de mestrado pelo departamento de Teoria Literária da USP.

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