Editorial
Entrevista
Em conversa com Caio Rosa, o fotógrafo Eustáquio Neves fala sobre sua trajetória artística
Caio Rosa
20 jun 2023, 16h15
É curioso que tenha sido um pesquisador africano quem me falou pela primeira vez o nome de Eustáquio Neves (artista representado pela galeria Vermelho). Eu ainda estava dando meus primeiros passos na fotografia quando em 2016 ou 2017 conheci o curador camaronês Bonaventure Ndikung durante uma visita que fez ao Rio de Janeiro. Muito solícito, ele disse que seria disruptivo para minha pesquisa conhecer a obra do Eustáquio – e foi exatamente o que aconteceu.
Anos mais tarde, quando me transferi para São Paulo, pude conhecê-lo pessoalmente por intermédio de Nô Martins, artista e amigo que temos em comum, e desde então ficamos bastante próximos.
Nascido em Juatuba, região metropolitana de Belo Horizonte, em 1955, hoje Eustáquio Neves vive e trabalha na cidade histórica de Diamantina. Daí surge mais um elo entre nós, já que parte da minha família é de lá. Eu e meu pai, que é músico e escritor, estamos preparando uma viagem para descobrir mais sobre o avô que eu não conheci, que tem uma história longa e que pouco sabemos – houve uma espécie de êxodo forçado, e a parte branca dessa minha família ainda é conhecida na cidade.
Eu admiro imensamente o Eustáquio por seu trabalho e visão de mundo, que foram divisores de água para minha carreira e para muitos outros artistas espalhados pelo mundo. É um grande prazer mediar algumas inquietações com o mestre e ter a oportunidade de revisitar sua fotografia e trazer questões que considero importantes para o debate artístico e cultural no Brasil.
Acima: Eustáquio Neves, detalhe da obra "Série Arturos", 1994
Caio Rosa: Eustáquio, começando da sua juventude, quais caminhos te levaram a imaginar-se artista? Como a formação em química entrou na sua vida e como ela ainda se relaciona com o seu processo criativo?
Eustáquio Neves: Na minha juventude, como muitos outros jovens inquietos, passava pela minha cabeça um universo de coisas, desejos, conquistas e possibilidades que eu almejava. Quis ser músico, cheguei a ter o que hoje eu considero mais um grupo de estudo ou um experimento do que uma banda, fiz pouco mais de um ano de violão clássico, gostava de teatro, pintura e via a fotografia como algo mais distante. Colecionava discos, livros e gibis, fui criado por várias mães muito fortes. Também frequentei uma escola pública que foi muito importante para mim na infância. A relação da química com o que eu faço na fotografia tem mais a ver com o meu interesse pelo experimento do que com os processos em si, mas não deixa de contribuir para esses processos já que tenho um certo conhecimento e zero medo de errar.
CR: Seu trabalho realiza uma busca intensa pela genealogia de sua família, resgatando e até criando uma memória visual, simbólica e afetiva de parentes – como na série Retrato falado* –, e o corpo cultural que te cerca, o que restaura uma lacuna comum de grande parte da população afrobrasileira. Qual a importância dessa mudança na construção e reconstrução da nossa imagem, antes norteada por um olhar branco e colonial, e nos últimos anos por artistas como você e tantos outros?
EN: Você praticamente respondeu o que eu diria, mas claro, o que alimenta meu trabalho são inquietações que não deixam de lado a indignação e os questionamentos sobre o projeto frustrado de apagamento das memórias e cultura dos povos afrodescendentes. Quando eu comecei na fotografia, há pouco mais de uns quarenta anos, por não ouvir nada que não fosse desse lugar do qual eu não tinha interesse, do qual eu não me via representado, com poucas exceções, foi que eu acabei indo para esse caminho que quase sempre acaba falando de mim mesmo e das minhas origens, ou seja, uma autorrepresentação para trazer as questões de nós, pretos.
*Em Retrato falado (2019), projeto vencedor da Bolsa de Fotografia ZUM/IMS 2019, reconstruiu o retrato do avô, que não conheceu e de quem não tem imagens nos álbuns da família, a partir de descrições de parentes e de recursos analógicos e digitais de manipulação fotográfica.
CR: Acredito que seja uma boa oportunidade de resgatar certas inquietações que já trocamos: muito da construção identitária do negro no Brasil está atrelada a uma matriz baiana/nagô, reforçada no passado por fotógrafos como Pierre Verger ou Mário Cravo Neto, diminuindo ou talvez até apagando ao longo das últimas cinco/seis décadas da história oficial a importância de outros braços da diversidade cultural afrobrasileira e suas cosmogonias, como a matriz afro-mineira, por exemplo. O que você pensa sobre esses pontos e como o seu trabalho atua no processo de reescrita da história e fotografia do negro no nosso país?
EN: A gente sabe o quanto nosso país é diverso, e essa diversidade não deixa de acontecer nas comunidades pretas de diferentes lugares no Brasil. Somos formados por povos diferentes dessa imigração forçada da África para cá, mas tem sempre um elo que nos une — já experienciei isso inclusive fora do Brasil, nos Estados Unidos e em África, por exemplo.
Assim, vejo que não há uma barreira entre uma região e outra. Há, sim, peculiaridades e modos de fazer, mas penso que o imaginário coletivo e esse DNA de resistência é que nos move. Estamos nós dois aqui, de duas gerações diferentes, discutindo algo que herdamos, que é resistir e viver com dignidade, ter voz e direitos.
Vale rememorar um movimento importante, do qual faço parte, de autores pretos que surgiu nos anos 1990 em Minas [Gerais], onde já tínhamos a Leda Martins, e seguidamente, não menos importantes, vêm Rui Moreira, da dança, Gil Amâncio na música, Edimilson de Almeida e Ricardo Aleixo na literatura, Jorge dos Anjos nas artes plásticas. Esse movimento, que não foi combinado, foi bem lembrado pelo Ricardo Aleixo mais recentemente. Se não me engano, ele chamou de Encruzilhadas.
CR: Já faz algumas décadas que o campo da fotografia lida com inúmeras discussões centradas na revolução digital, e atualmente nos deparamos com a criação de imagens a partir de inteligência artificial, com suas infinitas possibilidades e controvérsias. Como o seu trabalho, que se apropria de diversas camadas, percorre muitas técnicas e processos entre a captação, manipulação, impressão, incluindo também desenho e pintura, se relaciona com essas novas formas de produção de imagem?
EN: As novas tecnologias de hoje, como não poderiam deixar de ser, são muito mais sofisticadas, pois vieram de precariedades que às vezes os criadores enfrentam para se expressarem. Eu trabalho no limite da precariedade mesmo tendo acesso a mecanismos mais sofisticados. Manipular imagens não é nada novo, uma foto instantânea em si já é uma manipulação de uma realidade. Vejo tudo isso apenas como novas ferramentas.
CR: Sei que a música é muito importante no seu desenvolvimento como artista. Poderia falar um pouco sobre essa conexão? Você já pensou ou tem planos de produzir algo nessa linha futuramente?
EN: Não tenho grandes pretensões, mas ela acaba sendo um refúgio para mim de tempos em tempos. Tenho voltado a estudar meus instrumentos. [Nota: apesar dele não ter contado, o grande hobby dele é com a guitarra, rock n’ roll!]
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