Editorial
Bienal de Berlim #1
Especial Bienal de Berlim, primeira parte: curando bienais, aspectos práticos e conceituais
Dereck Marouço / Felipe Molitor
2 dez 2019, 17h42
O especial “Bienal de Berlim” foi elaborado a partir de uma apresentação do projeto da 11ª Bienal de Berlim em São Paulo, na Casa do Povo, no dia 21 de outubro, e uma entrevista com a curadora Lisette Lagnado, quatro dias depois, em Berlim. Nesta primeira parte, a longa conversa com a pesquisadora conecta suas indagações curatoriais na 27ª Bienal de São Paulo – em larga escala inspirada na obra de Hélio Oiticica e seu conceito de “Programa Ambiental” –, e a próxima edição da bienal na capital alemã, cujo pontapé inicial se baseia na obra “Os ossos do mundo” e as experiências do modernista Flávio de Carvalho. O papo também girou em torno de reflexões sobre as instituições, as cidades, e processos de pesquisa.
Lagnado é crítica e curadora independente. Foi curadora da 27ª Bienal de São Paulo – Como viver junto (2006) e do 33º Panorama da Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna de São Paulo (2013). Dirigiu a Escola de Artes Visuais do Parque Lage, Rio de Janeiro, entre 2014 e 2017.
Antes de iniciar a leitura, vale retomar brevemente no que consistiam as experiências de Flávio de Carvalho, artista multidisciplinar que ainda nos anos 30 evocou suas inquietações pessoais para renovar o fazer artístico. Ele nomeou algumas ações de investigação do comportamento como “experiências”. Na Nº2, ele caminhou no sentido contrário de uma procissão de Corpus Christi, em 1931, com a cabeça coberta por um chapéu de veludo verde, despertando a ira dos fiéis que queriam linchá-lo. No caso da Nº3, Flávio desfilou pelas ruas de São Paulo vestindo o “New Look”, uma indumentária específica adequada aos trópicos, segundo o próprio. E a Nº4 diz respeito à uma expedição para a Amazônia – o que, de fato, ocorreu em 1958 – para encontrar e estudar uma tribo de índios louros de olhos azuis e produzir um filme sobre a “deusa loura”. O filme nunca aconteceu.
DERECK MAROUÇO: Em 1981, Walter Zanini organizou uma Bienal de São Paulo na qual, pela primeira vez, os artistas eram relacionados pela sua prática artística e não mais expostos fechados por países, e a sua Bienal, em 2006, foi a primeira a abolir a representação nacional. Foram duas afirmações importantes de atualização dos modelos vigentes. Você pode discorrer um pouco sobre como se dava a escolha do curador da Bienal brasileira e como as delegações internacionais escolhiam os artistas expostos?
LISETTE LAGNADO:
Essa foi a primeira Bienal que eu vi, e foi super controverso para a época. Zanini introduziu a montagem por “afinidade de linguagem”. Se o Canadá enviasse um artista trabalhando com vídeo e, digamos, a Coreia outro artista com vídeo, a instalação arquitetônica da Bienal os colocaria próximos. Dada a transdisciplinaridade das pesquisas dos artistas, fazer isso hoje resultaria em uma montagem formalista.
A Bienal de São Paulo é diferente de qualquer bienal do mundo por ser um projeto que nasceu com a missão de modernizar o país e colocá-lo dentro de um circuito internacional – leia-se: ocidental. Há ainda o caráter pedagógico das Salas Históricas de artistas de pesquisas inéditas, pois no Brasil, país distante da Europa, os museus não conseguiam cumprir essa agenda. Isso era fundamental, mas também gerava uma disparidade. Evidentemente, o público tinha mais facilidade para se identificar com salas de caráter moderno, pois eram mais museológicas e didáticas, enquanto a ala mais contemporânea (e radical!) não conseguia atrair o público por razões óbvias.
Eu fui a única curadora até hoje escolhida a partir de uma etapa de seleção independente, na qual a voz do júri externo à direção da instituição foi soberana. No caso, quando enviei o projeto, eu o defini a partir da frase famosa tanto do Cildo Meireles quanto do Hélio Oiticica, “eu não estou aqui representando nenhum país”, justamente para contornar escolhas deliberadas por órgãos governamentais.
Acho que o mais importante de tudo isso era minimamente equalizar a participação dos países mais frágeis em termos de infraestrutura institucional a países com maior poder econômico, que investem mais em cultura e nas suas representações internacionais, independentemente das relações diplomáticas que o Brasil tenha com esses países.
Acima: Curadores da 11ª Bienal de Berlim, em 2020: da esq. para a dir., a chilena María Berríos, o espanhol Augustin Pérez Rubio, a argentina Renata Cervetto e Lisette Lagnado (Foto: Divulgação)
DM: Qual a importância de mudar-se para Berlim na concepção da Bienal? O público é bem diferente, certo?
LL: Sim! Primeiro em termos de escala, a Bienal de São Paulo sempre oscila em torno de um milhão de visitantes. Depois em termos de acessibilidade: é uma Bienal gratuita, com um contingente de escolas que raramente vi em outras bienais. Isso faz com que a Bienal de São Paulo, que é muito singular e muito especial para o Brasil, cumpra uma agenda educativa.
A Bienal aqui em Berlim não tem apenas um prédio fixo. Ela nasce no Kunst Werke Institut for Contemporary Art (KW) e cada curador, dependendo do seu projeto, acaba se aliando a um museu ou algum outro espaço. É uma bienal espalhada, um pouco como a Bienal de Istambul. O interessante é que, se na Bienal de São Paulo você tem esse desejo criado a partir de uma vontade de ser moderno, de ver o que está acontecendo no mundo afora, por outro lado, quando você tem edições que propõem obras engajadas politicamente, a recepção crítica é muito hostil – uma edição, por exemplo, que possa trazer questões de gênero, periferia, preconceito, ainda fere a estrutura histórica da Bienal criada pelo empresário e magnata Ciccillo Matarazzo, que ainda atende uma uma elite econômica e financeira que tornou possível a fundação da Bienal. Aqui em Berlim tem-se uma outra situação, nós temos os museus que fazem regularmente o seu dever de casa e você tem iniciativas diferenciadas.
A Bienal envia, internamente, uma vez por semana, o que está acontecendo na cidade para que possamos acompanhar as exposições, performances, os debates e é impossível dar conta. Você tem uma Bienal por semana aqui. Então, como fazer com que a proposta desperte interesse em uma cidade que já é um pólo de nacionalidades e de culturas, que tem artistas de mil lugares e com um nível crítico elevado? Qual é a verdadeira identidade da Bienal de Berlim? É uma coisa que cada curador, quando chega, deve enfrentar. Portanto, me parece necessário expor artistas desconhecidos do circuito europeu, Veneza, Alemanha…
DM: Berlim é mesmo uma cidade de resistência?
LL: O que você chama de resistência?
DM: Vocês sentem a cidade mais aberta, experimental em algum sentido artístico?
LL: Isso que nós estamos fazendo aqui, de ter um espaço de trabalho com a exposição e recebendo as pessoas, é uma experiência que eu tive na Escola de Artes Visuais do Parque Lage em 2017. Abri uma exposição derivada do “Desvio para o vermelho” (1967-1984), de Cildo Meireles, e nós não tínhamos mais nenhuma verba do educativo, para monitores e até vigias. Tínhamos uma exposição do Cildo a partir da colaboração de alunos, ex-alunos e professores. E não havia condições de abrir o local. Então levamos nossas mesas de trabalho para lá, e quando alguém visitava o Parque eu atendia e falava do Cildo e da coleção de objetos vermelhos etc. Claro que era um trabalho de resistência em escala micro para não fechar a Escola. Aqui está acontecendo uma coisa linda. Houve um workshop com os artistas Florian Gass e Mirja Reuter, com escolas e desde então, todos os dias, duas crianças vêm sozinhas achando que tem atividades para elas. Elas ficam na mesa, recortam, eles assistem aos vídeos e isso se tornou um espaço que eles frequentam regularmente. Se eu estivesse em São Paulo, sei que teria maior agilidade de atender essas crianças com um programa específico. O que está implantado por enquanto são pequenas células de ativações. A gente entende que essa bienal processual permite que as pessoas tenham mais tempo para conhecer aquilo que vai chegar como um OVNI em junho de 2020 [data “oficial” de abertura da Bienal]. Como o próprio Flávio de Carvalho, que ninguém conhece, mal conhecem no Brasil, mas estão começando a conhecer. Eu acredito nesta maneira de sensibilizar as pessoas em relação a alguns nomes, ao longo de um período, que não seja uma lista de sessenta nomes que, na realidade, precisa de tempo para ser trabalhada com cuidado.
DM: É, eu acho que no nosso meio, tão hierarquizado, simplesmente se por disponível já é um ato bastante radical, porque no final das contas, uma exposição como processo também é isso: convidar as pessoas a participar neste diálogo de maneira aberta e menos como cubo branco institucionalizado.
LL: Sim, eu até posso te dizer que talvez, fazer uma bienal processual aqui, tem sido uma grande mudança. Porque o modelo Bienal é uma máquina, e é uma máquina acostumada a fazer exposições. E quando diz-se “a gente já abriu”, então na sua planilha, o que você tem que diz respeito à despesa de produção de obras, nós precisamos compreender que não vamos aguardar junho de 2020. Você dizer que aquilo que se destina ao projeto educativo lá na frente com visitas guiadas e que nós gostaríamos de atuar agora, pois o programa público já começou, também significa você diluir esse montante que é normalmente muito concentrado naqueles três meses.
Outro grande desafio é incorporar a vizinhança. Como criar projetos sustentáveis a longo prazo, você tem que aprender com o local. E no tempo que você leva para aprender, você já tem que ir embora. Eu acho que tem um grau de idealização muito grande, mas se a gente não tentar e não acreditar, você acaba fazendo um projeto muito burocrático e que se assemelha ao que os museus hoje se tornaram, que são exposições concebidas com grande antecedência e onde o espaço de invenção é muito pequeno.
DM: A equipe curatorial é formada por pessoas nascidas ou que vivenciaram o sul geopolítico, em especial a América Latina. De que maneira os corpos e as vivências de vocês produzem uma contra-visão dentro de uma instituição alemã?
LL: Tem a questão da língua e da comunicação. Talvez não tenha sido por acaso que o [filósofo alemão Jurgen] Habermas tenha escrito tanto sobre o problema da comunicação. Nós estamos todos nos relacionando em inglês, que não é a primeira língua nem das pessoas da Bienal e nem a nossa. Para nós todos é uma segunda língua, então eu percebo claramente que isso cria, em primeiro lugar, entendimentos equivocados que vêm da língua, culturais e não só linguísticos. Pensando em Glauber Rocha, quando eu falo, por exemplo, da gambiarra como modus operandi, que o Brasil conhece bem, eu não estou falando da estética da gambiarra. Eu não estou querendo dizer que a gambiarra é este fio de eletricidade que você puxa do seu vizinho e você consegue luz. Eu estou falando de um modus operandi de saber trabalhar com um mínimo. Não estou falando de uma visualidade que parece uma gambiarra ou que seja, o puxadinho, mas que seja conseguir trabalhar sem garantias extraordinárias. Não estou vangloriando a falta de recursos, pois isso tem nome e chama-se precarização. Não estou fazendo o elogio da miséria, odeio esse romantismo, mas estou pleiteando por uma flexibilidade dos meios de produção. Quando você faz greve, você entrega o equipamento, e aí outra coisa se instala no lugar e o movimento se esvazia. Já quando você ocupa, você toma o território para você e fica cada vez mais difícil uma outra iniciativa te expulsar – a gentrificação, digamos. Penso no Hotel Cambridge, em São Paulo, como belo exemplo.
DM: Pela segunda vez em uma segunda Bienal, você elege um artista não para compor um time de artistas apresentados em uma exposição com objetos de arte, mas para abrir um programa: qual a importância de tomarmos a arte e a vida como produção de pensamento, como agenda, como conceito de trabalho, ultrapassando a presença física das obras de arte?
LL: Eu não acho que dá para fazer isso como um regra, nem todos os artistas deixaram escritos e conceitos com uma plataforma independente do que tenham pensado, para além do si mesmo. Por exemplo, o Hélio [Oiticica], escreveu sobre cinema, escreveu sobre artistas, televisão, dança, música. Eu encontrei ali uma fonte para poder pensar uma teoria da cultura e eu achava necessário fazer isso a partir de um artista. Devo muito à minha vivência da 24ª Bienal de São Paulo (1998), que pegou Oswald de Andrade e o Manifesto Antropófago, o fato de que isso foi possível uma vez e foi feito por um curador brasileiro, o Paulo Herkenhoff. Eu pensei “não vou pegar o [filósofo alemão Theodor] Adorno, para discutir teoria estética hoje se eu tenho um artista que morreu em 1980, mas que morou em Nova York, que teve exposição na Whitechapel, em contato com o underground de Londres etc. Isso me deu possibilidades para pensar teoricamente, e isso eu acho que nunca disse dessa maneira, que o Hélio Oiticica já tinha sido bastante mostrado como obra: o Jeu de Paume (Paris) tinha mostrado, o Witte de With (Roterdã) tinha mostrado, o que eu achava que não havia sido suficientemente disseminado. Eu achava que o programa ambiental do Hélio não havia sido reconhecido como tal.
No caso do Flávio de Carvalho é um pouco diferente, pois ele não tem um sistema e, na verdade, ele também tem muitos escritos e uma disparidade de interesses que oscilam entre a moda, a religião, o comportamento, a psicologia, a antropologia, a etnologia e o teatro. Isso sim é o que me permite me aventurar novamente. É o que nós chamamos chamamos de um “artista total”, e obviamente que eu indicaria um artista brasileiro. No caso do Flávio, nos interessa também trabalhar a falência, o fiasco, as coisas que não deram certo, tanto do ponto de vista da incompreensão de uma recepção local, como do ponto de vista da ambição do artista, de uma ambição quase dissonante com o que teria que ser. Entendemos que a “Experiência nº4” do Flávio é bastante problemática, como artista branco, que pensa fazer um filme sobre uma mulher branca raptada na Amazônia. Eu não sei até hoje se a gente pode colar nessa versão do que é que motivou o Flávio a ir no alto do Rio Negro, assim como eu acho que a “Experiência nº 1” é nebulosa o suficiente para a gente poder trabalhar, nós como curadores, de uma forma mais ficcional.
DM: Você diria que quando a arte bebe de sua própria fonte, ou seja, de uma fonte tão vibrante quanto a obra de um artista, mais do que diretamente de teorias filosóficas, existe algum “outcome” em uma exposição que seja mais específico do que em um projeto que se baseie puramente na teoria?
LL: Eu acho mais vibrante sim. Mas acho que talvez a gente poderia pensar outros autores que são igualmente vibrantes e que sejam escritores etc. É um exercício e ao mesmo tempo é um álibi, porque você tem que começar de algum lugar e aquilo te serve como uma estrutura de pensamento para você ter uma bússola. A partir daí você decide o quanto você vai usar e o quanto você vai corromper dessa estrutura. Tudo o que a gente não quer fazer é uma ilustração. Isso eu aprendi e eu não fiz nenhuma escola de curadoria, e eu acho que isso foi super importante para mim porque eu convivi com os artistas que eram os maiores críticos da atuação do curador e que entendiam que o crítico aprisionava o seu trabalho dentro de um conceito. Foi assim que eu entendi os artistas em relação ao trabalho do curador, me incomodava, é claro, mas eles se sentiam incomodados, ou capturados, instrumentalizados.
DM: Catalogados.
LL: Exato. Isso é um alerta que está desde o início da minha prática como curadora. O que não fazer.
DM: Você falou que escolheu o Flávio não só porque ele é brasileiro, mas porque existe uma relevância na sua figura tanto em termos teóricos, quanto em termos artísticos, a qual não teve tanta visibilidade na história da arte. Mas também existe um arco entre os anos 1930, quando Flávio vai à Europa, e os anos 2020 que vivemos. O que as poéticas de Flávio têm a contribuir para os nossos tempos e em que medida interessa posicioná-lo como figura contraditória, um “anti-herói”?
LL: É por isso que eu propus o Flávio ao Agustín, Maria e Renata [demais curadores da Bienal], e toparam imediatamente. Em 1920, foi criado em Berlim o Instituto que daria origem ao Instituto de Psicanálise e eu fiquei pensando que faz todo o sentido a gente retornar a um momento no qual Flávio está analisando o comportamento das massas, ele estava lendo Freud, ele estava lendo e observando uma massa de crentes. E nós, o que estamos vendo? O que está acontecendo no Brasil, na Argentina, na Turquia e nas Filipinas? Nesse sentido eu acho que o nacionalismo e o fanatismo dos anos 1930 nos permitem acessar um passado recente, que deve aparecer na exposição de 2020, e que eu acho que aqui é um processo, obviamente, mas que são questões que a gente lê no jornal todos os dias: a presença evangélica na bancada do governo e a presença de uma igreja voltada para valores machistas e neoliberais (a prosperidade, o sucesso, a meritocracia), questões que são analisadas pelo Flávio na “Experiência nº 2”.
DM: Na ascensão desses nacionalismos e fanatismos, as pessoas começam a criar imagens heróicas para salvá-las, mais do que uma postura combativa ou ativa em relação a esses jogos de influências políticas e sociais, etc… Por que ter no Flávio esse anti-herói, apesar dele gozar de um alto posto na “hierarquia brasileira”? Ele era um homem-branco-hétero-cis – que hoje são termos que nós usamos para definir uma subjetividade – e gozando dessa posição ele era capaz de instaurar esses pequenos caos e observar os seus desdobramentos.
LL: Historicamente eu acho que sempre foi assim, sabe? Eu acho que tem uma relação entre a burguesia e esse radicalismo. Sim, essa radicalidade de um bem pensante, uma pessoa que estudou fora, falava várias línguas, era culto, talvez um dos mais cultos da história desse período. Qualquer historiador sério sabe da importância do Flávio para a criação, inclusive, de uma pré-bienal, de um contexto. Imagine o quão devia ser provinciana a cidade de São Paulo. Eu concordo com essa leitura, mas temos que tomar cuidado para não sermos anacrônicos e usar instrumentos de julgamento em um momento diferente. Na verdade, existem muitas coisas escritas, inclusive sobre indumentária ou sexualidade, na qual ele chega perto de uma bissexualidade ou de um hermafroditismo. Para o Hélio Oiticica, a palavra queer não aparece e ele tem uma proposição que chama “hermafrodipopótese”, que é a expressão que ele encontra pra falar de uma proposição que não fosse sexista, mas é o vocabulário circulando naquele momento. É óbvio que quando você vê os meninos da série Neyrótika, de Hélio, você consegue contextualizar nas questões de gênero hoje. Eu acho que o Flávio tem essas limitações, mas eu não tiraria dele a instigação a inquietação, a introdução de questões fundamentais sobre liberdade e eros.
DM: O que eu quis dizer é que, muito embora ele gozasse dessa posição, ele era capaz de instalar o caos. Talvez não pensando esses termos, até porque como o Marcelo Moreschi disse em palestra, o New Look foi anterior à saia feminina, ou seja, são termos que diretamente não se aplicam. Mas ele era capaz de abrir portas para outras questões, mesmo que ele não estivesse pensando diretamente sobre isso?
LL: Mas pense você, pode parecer extremamente esnobe hoje, a descrição de uma cena que eu vou te fazer. Quando você lê a biografia do Flávio por J. Toledo, é muito incrível porque na casa que ele construiu para si em Valinhos havia uma prática de nudismo que você pode encontrar em alguns grupos, um entendimento da roupa como uma vestimenta social e o corpo nu, circulando. Parece que havia um dispositivo, um som que era disparado para avisar que as pessoas estavam nuas, pois havia uma vivência daquilo, na piscina, na mesa de jantar etc. Por outro lado, você pode olhar para essa cena e achar que é uma cena de uma burguesia eufórica, dependendo da perspectiva que você analisa esses encontros. Em uma fazenda em que intelectuais se encontravam. Era o Salon do Flávio.
DM: E a figura do Flávio como anti-herói?
LL: Me interessa! Sabe por quê? Para mim, a identidade da Bienal passada, que se construiu a partir da música e não da Tina Turner, We don’t need another hero, era uma afirmação decolonial que simplesmente borra ou elimina do cenário o Pai, o Líder religioso, o Deus, o Mito, o Ídolo, a Igreja, o que for. Neste sentido, o Flávio é descabido, e não porque o Flávio é cis, heteronormativo, não sei como é que eu posso dizer isso sobre uma pessoa da época, pois é um anti-herói, mas porque continuamos na mesma chave equivocada de nomear um protagonista, pois eu acho que o trabalho feito na Bienal de Berlim passada não é um trabalho que possa terminar com um bienal. Eu acho equivocado a gente pensar que as Bienais devem se anular em um movimento constante de reinvenção. Não se trata de trazer o Flávio como um ícone ou como um exemplo. É sobretudo porque encontramos alguns momentos problemáticos, em especial nessa expedição [a “Experiência nº 4”], na relação dele enquanto homem branco com as tribos. Isso de alguma maneira tem que aparecer na exposição. Então ele é um anti-herói, porque, por mais que esteja fazendo uma etnoficção, quando foi para lá, ele foi em busca da Deusa branca e de sua descendência. Nós não temos o script, teríamos que entender muito bem de que consistia esse filme…
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