Todas as imagens utilizadas nessa matéria pertencem à série "O infarto da alma", Putaendo, Chile, 1994. Coleções Fundación MAPFRE © Paz Errázuriz, cortesia da artista.
Entrevista

Entrevista com Paz Errázuriz

Miguel Del Castillo / Paz Errázuriz
18 nov 2020, 14h45

Em 1994 foi lançado, pela primeira vez, O infarto da alma, marco do foto-livro latino-americano que conta com fotografias de Paz Errázuriz e texto de Damiela Eltit, ambas chilenas. Nele, a fotógrafa registra casais amorosos dentro do sanatório Philippe Pinel, criando imagens atemporais de resistência contra a desumanização imposta por um estado autoritário àqueles que não se conformam aos padrões da sociedade militar-capitalista. Publicado pela primeira vez no Brasil via Instituto Moreira Salles, o livro chega por ocasião da retrospectiva de Errázuriz sediada no IMS Avenida Paulista. A convite da SP-Arte, Miguel del Castillo, editor da versão brasileira do livro, conversa com Errázuriz sobre o processo de publicação.

Acima: Todas as imagens utilizadas nessa matéria pertencem à série "O infarto da alma", Putaendo, Chile, 1994. Coleções Fundación MAPFRE © Paz Errázuriz, cortesia da artista.

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Paz Errázuriz e Diamela Eltit, "O infarto da alma", trad. Livia Deorsola (Instituto Moreira Salles, 2020). Imagens: Bloco Gráfico.

Paz Errázuriz e Diamela Eltit, "O infarto da alma", trad. Livia Deorsola (Instituto Moreira Salles, 2020). Imagens: Bloco Gráfico.

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MIGUEL DEL CASTILLO : Quando O infarto da alma foi publicado pela primeira vez no Chile, a crítica de arte Nelly Richard disse que, ao exibir aqueles corpos fora do “padrão”, o livro funcionava também como denúncia de uma retomada democrática falha e de um neoliberalismo que procurava fingir que não havia existido ditadura no país. Mais recentemente, a pesquisadora Carmen Hernández observou que o livro falava também de uma dissolução das utopias sociais no Chile, entendendo a loucura ali como símbolo de um corpo periférico e o espaço psiquiátrico como metáfora da nação. Nesse sentido, como você vê a publicação agora no Brasil, um país que vive um governo não apenas conservador e neoliberal, mas retrógrado em vários aspectos – sendo que o Chile, com o plebiscito recente, acaba de dar um passo enorme para se distanciar de seu passado ditatorial?

PAZ ERRÁZURIZ : Acho que esse livro, em qualquer lugar que for publicado, mostra uma parte da sociedade que está marginalizada por não cumprir os padrões do “normal”; por estarem reclusas em um hospital psiquiátrico, aquelas pessoas já são vistas com outros olhos. A publicação agora no Brasil me parece importante, com especial atenção para isso que você menciona, isto é, que estamos diante de uma sociedade conservadora. Mas penso que, assim como há conservadorismo, há também resistência a essa lógica, e é para esses lugares que o livro aponta.

MC : Na sua exposição que abriu há pouco no IMS Paulista, essa série fotográfica está num núcleo chamado “Reclusão”. Eram pessoas encerradas contra a vontade delas, pessoas que sofriam forte opressão do Estado e do sistema manicomial, que as tratava como números, bem como da própria sociedade. Ainda assim, o amor floresceu naquele hospital psiquiátrico, quase como uma forma de sobrevivência. Guardadas as devidas proporções, estamos vivendo há muitos meses, curiosamente, uma reclusão quase global, em menor ou maior grau, e estamos também num momento em que diversos governos pelo mundo, autoritários ou não, perseguem ainda mais seus cidadãos que pertencem a minorias étnicas ou de gênero. Como acha que esse livro pode falar a este tempo presente?

PE : Acredito que uma das potências do trabalho artístico é que seus significados ficam sempre em aberto, abertos ao tempo, ao contexto e aos espectadores/leitores. Não me atreveria a dizer como esse livro deve falar, porque acho que isso se dá no vínculo com quem o vê, assim como você me ofereceu a sua leitura e a relação que vê do livro com esse momento.

Me interessa o fato de que essas pessoas retratadas no livro, enclausuradas ali, conseguem estabelecer relações amorosas apesar de seu contexto adverso; elas se submetem para dar um sentido a ele. Talvez seja isso também o que nos tenha tocado viver, nessa quarentena.

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MC : Poderíamos dizer que O infarto da alma se insere numa longa tradição de livros fototextuais, em que há uma convivência e um diálogo entre a imagem fotográfica e o texto – e que aliás encontra muita adesão na América Latina, basta lembrar que no estudo seminal de Horacio Fernández, Fotolivros latino-americanos, há um capítulo inteiro sobre o tema. No caso do seu livro, me parece que não houve exatamente um pensamento proposital de dípticos, isto é, de que em cada dupla de páginas houvesse uma conversa específica entre imagem e texto; o que acontece, a meu ver, são dois registros paralelos, ambos muito fortes, e sua leitura conjunta os potencializa. O que acha disso?

PE : Acho que você interpretou muito bem, porque é assim mesmo que vejo este livro, foi dessa maneira que eu e Diamela trabalhamos.

 

MC : Tenho curiosidade, também, de saber como foi o processo com o editor da primeira versão do livro, Francisco Zegers. Ele as procurou, ou você o procurou com o projeto? Tinham algum livro fototextual ou fotográfico em mente e que tomaram como “inspiração” quando fizeram este?

PE : Francisco Zegers era um editor que já havia muito tempo que trabalhava com artistas visuais e teóricos. Portanto, pareceu-nos a pessoa adequada para mostrar esse projeto, que era muito afinado à sua linha de trabalho, e de fato não nos enganamos, já que ele próprio quis fazer o projeto gráfico.

Eu já havia trabalhado na publicação de livros com as minhas fotografias, e o fizera por conta própria, de modo que esse livro se somou a um interesse que eu vinha desenvolvendo.

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MC : Antes deste livro, você tinha chamado a escritora Claudia Donoso para colaborar entrevistando as pessoas fotografadas no livro La manzana de Adán. Você convive com muitos escritores e se alimenta muito de literatura também? Quem são seus autores favoritos, em prosa ou poesia? Alguma descoberta recente significativa?

PE : Em 1981 comecei meu projeto O pomo de adão, e depois de um ano senti que não me era mais possível continuar entrevistando e fotografando ao mesmo tempo, e foi assim que convidei a jornalista Claudia Donoso para trabalhar comigo e, juntas, terminamos esse projeto. Depois, em 1991, quando estava na metade do meu trabalho em Putaendo [O infarto da alma], decidi, com Diamela Eltit, transformá-lo num livro. Em 1998, com a poeta Malú Urriola, começamos um trabalho conjunto que se chamou A luz que me cega. Tem sido muito enriquecedor e estimulante trabalhar junto com a escrita. 

Neste momento, estou lendo a [romancista argentina] Mariana Enríquez.

 

MC : O ensaísta Andrew Solomon, na introdução a seu livro Longe da árvore – que fala sobre as relações entre pais e filhos com diversos tipos de deficiências físicas, intelectuais ou sociais – comenta sobre as diferenças entre identidades verticais e horizontais. As verticais, ele diz, são aquelas características e gostos que estão presentes nos pais e também nos filhos, e por isso são mais fáceis de se relacionar; já as horizontais são características presentes nos filhos mas que não existem nos pais, e portanto demandam mais para se construir uma relação a partir delas. Diamela Eltit relata que os internos de Putaendo lhe chamavam de “tia Paz”. Mas mesmo se tirarmos o aspecto desse parentesco desejado, você diria que essa proposta de Solomon também se aplica a fotógrafos retratistas em sua relação com o sujeito fotografado? Poderia falar sobre como essa troca acontece para você?

PE : Não li o Solomon, mas pelo que você disse tenho a impressão de que para mim a relação é horizontal. Vejo isso muito como um jogo de espelhos, um eterno autorretrato, uma busca de identidade. É um presente que me é dado por esse outro, esse outro que se transforma em espelho e que compartilha sua história para o meu trabalho. Não acho que haja uma confusão entre os olhares, entre quem retrata e quem é retratado; trata-se, isso sim, de um pedir emprestado, no qual o outro sempre participa, porque é fundamental.


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Miguel Del Castillo é escritor, tradutor, editor e curador. Nasceu no Rio de Janeiro, em 1987, e mudou-se para São Paulo em 2010, onde atualmente é curador da Biblioteca de Fotografia do Instituto Moreira Salles. Foi editor da Cosac Naify, do site da ZUM e da revista Noz. Em 2011 foi escolhido um dos vinte melhores jovens escritores brasileiros pela revista Granta. Seu primeiro livro, Restinga (contos, Companhia das Letras, 2015), teve os direitos para cinema adquiridos pela RT Features. Em 2018 foi escritor residente na Fondation Jan Michalski, na Suíça, trabalhando em Cancún, seu primeiro romance, que foi publicado também pela Companhia das Letras em 2019, e cujos direitos audiovisuais foram vendidos para a diretora Carolina Jabor. No mesmo ano, foi um dos convidados da programação principal da Flip.

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