Editorial
Artigo
Entrelaçamentos e hibridismos na história recente da arte brasileira
Mateus Nunes
9 fev 2023, 12h40
Embora o mercado e as instituições de arte estejam paulatinamente se abrindo para a pluralidade artística brasileira, ainda se perpetuam desigualdades estruturantes que invalidam um amplo leque de produções. Nesse texto, procuro compor uma desafiante imagem da história da arte brasileira na SP–Arte, a partir de um mercado de curta amplitude histórica e cultural, que opera com o produzido nos três últimos séculos, com dificuldades para acolher as complexidades do período colonial, as milenares tradições artísticas dos povos originários e artistas de grupos minoritários até o presente. Iniciativas de mudança nesse cenário têm sido tomadas de maneira progressiva, estabelecendo pontes há muito negligenciadas e abrindo caminho para vozes já presentes em âmbitos silenciados.
Ao invés de traçar um panorama universal e totalizante, ideia obsoleta e ineficaz, propõem-se aqui diálogos entre imagens e narrativas que se conectam em um jogo de aproximações e distanciamentos. Para isso, estabeleci leituras entre artistas em franca atividade no cenário contemporâneo, ao lado de artistas já falecidos que sintetizam um legado da arte moderna brasileira. A conexão entre gerações, geografias, individualidades e contextos sociais diferentes, identificando um fio condutor que os atravessa, é apenas uma das diversas possibilidades de reescrita de uma história recente da arte em constante atualização, de missão integradora e que busca ser efetivamente brasileira.
Ao enaltecer imagens do cotidiano e reiterar a sensibilidade das relações humanas, Maxwell Alexandre (A Gentil Carioca) e Eleonore Koch (Paulo Kuczynski, Almeida & Dale) apresentam, de formas específicas e transversais, uma pintura do reavivamento. Por denúncia e ressignificação, Alexandre exibe elementos visuais representativos das desigualdades socioeconômicas, sobretudo em postos exploradores de trabalho e à mira de violências raciais, ao mesmo tempo que devolve às pessoas pretas suas individualidades e poderes retirados pelos sistemas de opressão. Koch, por outro caminho, cria cenas pacíficas de uma tranquilidade almejada: fugindo do antissemitismo que a caçava na Alemanha nazista, radicou-se no Brasil, onde foi ofuscada por dinâmicas misóginas. Ambos os pintores, portanto, produzem imagens que reivindicam existências plenas e emancipadoras.
Quanto à composição, ambos manejam imagens de naturezas e temporalidades distintas, misturando tradições figurativas e abstratas – no caso de Alexandre, oriunda do design gráfico contemporâneo de marcas de consumo; e de um lastro concretista e modernista, no caso de Koch. Grandes planos de cor são constituídos por gestos ritmados que espalham os pigmentos de forma desigual, resultando em texturas que ostentam a particularidade das pinceladas e acentuam as escolhas técnicas de Alexandre e de Koch – uma ampla gama de materiais sobre papel kraft e têmpera sobre tela, respectivamente. As decisões matéricas de Alexandre também cobram que os sistemas de arte – tanto museológicos quanto mercadológicos, cada vez mais indissociáveis – aprendam a lidar com as complexidades e riquezas das obras produzidas por artistas pretos, invertendo criticamente um impasse sempre forçado por essas estruturas.
Compartilhando uma atitude transdisciplinar, Vivian Caccuri (Millan, A Gentil Carioca) e Ubi Bava (Paulo Kuczynski, Galatea, Zipper) atravessam campos não usuais nas artes plásticas: Caccuri, imersa nas experiências sensoriais que orbitam as culturas musicais e manifestações sonoras, e Bava, atento à teoria do cinema e da imagem em movimento. Os trabalhos de Vivian Caccuri interessam-se em provocar reações nos espectadores a partir dos sons que suas obras emitem, em um espectro de emoções que podem ir da irritação ao transe; enquanto as obras de Ubi Bava incitam a curiosidade do observador a partir da replicação e da deformação de sua própria imagem, que muda conforme os corpos se movimentam.
A transversalidade entre as obras dos artistas, presente não somente nos discursos, mas nas técnicas, reverbera no uso de materiais e plataformas híbridas que escapam das convenções artísticas. Caixas de som e espelhos parabólicos expandem os campos da cognição auditiva e óptica a limites vertiginosos, propondo obras dinâmicas que intencionam a participação do espectador.
Ler as obras de Castiel Vitorino Brasileiro (Mendes Wood DM) e Hélio Melo (Almeida & Dale) lado a lado nos permite observar um grande corpo em metamorfose espiralar, que fagulham relações sinérgicas entre corpo, espírito e natureza. Imagens são reveladas através da sublimação de imaginários pessoais e comunitários, de mitos, passagens e costumes da floresta acreana ou do universo bantu. Assim como Melo ilustra os mistérios da caça e os cantos dos seringais, Brasileiro encarna transmutações vitais, ritos e feitiços de cura. De forma análoga, encontram-se em uma geometria espiritual: desempenham atos performáticos com incisões talhadas sobre o corpo humano e sobre o corpo-árvore, modificando-os material e espiritualmente.
Ambos alertam, entretanto, para que esses cortes sejam de cura e não de extermínio, em relações afetivas e respeitosas que ouçam as individualidades dos corpos e das espécies. Compreendendo a arte como experiência de vida, Brasileiro e Melo nos lembram de que a seiva é sangue: a aniquilação colonial erradica corpos dissidentes assim como deita árvores em um incêndio voraz.
Sonia Gomes (Mendes Wood DM) e Hélio Oiticica (Almeida & Dale, Gomide&Co, Zipper, Pinakotheke) apresentam trabalhos que torcem, além de seus materiais, fatos históricos: Oiticica dobra um legado artístico abstrato, enquanto Gomes espirala as raízes do povo brasileiro miscigenado, sobretudo quanto à presença diaspórica africana no Brasil e no seio mineiro.
Os Relevos espaciais de Oiticica se apresentam como sólidos concretistas dobrados e flutuantes, cuja geometria pura é posta em dança, como sintetizar à gramática abstrata um Parangolé. Gomes, paralelamente, tece e entrelaça a erudição das práticas artísticas das culturas africanas, opondo-se ao academicismo eurocêntrico.
A artista é receptiva aos materiais do entorno, marcados pelo tempo das pessoas e da natureza, coletando-os como significantes afetivos. Em amarrações de histórias individuais em uma trama coletiva remendada e sobreposta, a artista utiliza-se dos rasgos e dos nós como ferramentas que compõem uma malha rica por sua diversidade. Reativa tradições apagadas de arte têxtil de matriz africana, vista como arte menor pelo sistema artístico hegemônico, mas central para o entendimento da arte brasileira. Tais práticas também se conectam a um gesto afetivo – do bordado e da costura à mão – perpetuado em núcleos familiares que reforçam a transmissão de conhecimento a partir do matriarcado.
Quanto à espacialidade, Oiticica convida o espectador a participar da obra ao andar em torno dela, ao passo que Gomes leva isso adiante: chama para os espaços artísticos institucionais pessoas que usualmente não frequentam ou protagonizam esses lugares. As obras dos dois artistas pensam o corpo e o lugar ao mesmo tempo que os extrapolam: argumentam sobre suas disposições no espaço, nas múltiplas interpretações que a experiência corporal possa ter.
Por mais que abordem a relação do indivíduo com a paisagem de forma abrangente, como um grande tema humano e artístico, Luiz Braga (Leme) e Wanda Pimentel (Athena, Fortes D’Aloia & Gabriel, Galatea) também tratam das conexões subjetivas entre o eu e o horizonte.
As janelas entre os artistas-espectadores e as paisagens podem ser lidas como resquícios de civilização, lembranças de interferências culturais sobre o quase-infinito rio Guamá em sua desembocadura, no Pará, no caso de Luiz Braga; e em Wanda Pimentel, as gigantescas montanhas do Rio de Janeiro. Elas exibem-se não como obstáculos à vista, mas como aparatos que reafirmam a escala humana diante da grandiosidade da paisagem natural a que se pertence, enquadrando um convite à contemplação nostálgica.
O rigor geométrico da pintura de Pimentel, imposto mesmo à representação dos planos dos morros sinuosos, contrasta com a vernaculidade nas janelas na foto de Braga, cujas linhas orgânicas não se detêm apenas na água e no céu.
Rodrigo Cass (Fortes D’Aloia & Gabriel) e Arthur Bispo do Rosário (Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea, Almeida & Dale) canalizam um discurso espiritual que extrapola a individualidade e se entrega a causas, imagens e nomes de imensuráveis grandezas.
Cass, que viveu como ordenado carmelita por oito anos, e Bispo do Rosário, que permaneceu em uma instituição psiquiátrica por mais de cinquenta, manifestam gramáticas visuais que partem da vivência absoluta da reclusão, da escuta de si e de entidades maiores, como discípulos de vozes soberanas. Ambos utilizam o tecido como veículo da construção de discurso ordenado: em suas pinturas sobre linho, Cass propõe uma espécie de bordado construtivista, com esmero em domar o concreto e uma geometria metafísica sobre o tecido; enquanto Bispo do Rosário anuncia imagens de representação, transcendência e sofisticação com têxteis e fios.
Por mais que reforcem a subjetividade de seus trabalhos, os dois artistas elaboram sistemas visuais através de uma escuta ativa, em constante busca pela vivência de uma verdade absoluta através da iluminação espiritual.
Partindo de matrizes cosmogônicas e epistemológicas quase opostas, o exercício de aproximar intenções entre as imagens de animais nas pinturas do MAHKU – Movimento dos Artistas Kuin (Carmo Johnson Projects) e os Bichos de Lygia Clark (Almeida & Dale, Gomide&Co, Paulo Kuczynski, Pinakotheke) permite um alargamento das discussões acerca dos hibridismos culturais brasileiros. Ao atritar natureza e cultura, binômios clássicos nos estudos antropológicos, questionam-se as relações existenciais entre os seres vivos – humanos ou não – e o mundo.
O desafio indígena de pensar uma arte que não existe fora do corpo entrecruza com o fato de que, nos “Bichos” de Clark, a superfície também é núcleo: os planos são a própria matéria, não delimitando um “dentro” e um “fora”, em uma ambiguidade oportuna entre essência e aparência, entre alma e corpo. Os bichos, desse modo, podem ser lidos como entes ativos, dinâmicos em uma constante dança ritualística, cujas dobradiças permitem a mutabilidade formal constante dentro de uma essência mantida: comungam da mesma matéria superficial, embora atestem as individualidades dos seres a partir de diferentes configurações através do movimento articular.
Instiga-se, portanto, uma possibilidade de continuidade entre os seres e um espaço expandido – cartesiano, em Clark, mas que, nas matrizes de pensamento do MAHKU, corresponderiam à infindável floresta. Em uma tentativa de louvor, a artista eleva os “Bichos” a uma imagem sensível, absoluta e geometricamente pura. De forma análoga, os artistas do MAHKU tendem à dinâmica sempre relacional e articulada, em direção a um caminho de origem compartilhada pelos seres, pelas formas e pelas ideias, almejando uma comunhão.
Ao analisarmos os artistas contemporâneos e modernos brasileiros, podemos notar uma riqueza e diversidade na produção artística do país. Da abstração geométrica à arte não-erudita, os artistas brasileiros têm produzido obras de extrema importância histórica, refletindo não apenas suas individualidades, mas também a sociedade e cultura do Brasil. A presença destes artistas na SP-Arte é uma oportunidade valiosa para conhecer de perto a criatividade e a expressão artística dessas potências, proporcionando o contato com obras protagonistas de uma história recente da arte brasileira.
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