Editorial
Crítica
Entre bugres e pepinos
Felipe Molitor
14 jul 2021, 14h38
Duas grandes famílias admiram-se mutuamente em um encontro insólito no subsolo do Masp. Numa primeira apreensão daquele espaço, parece que estamos diante de uma cerimônia fantástica. Por cima, uma longa fileira de seres em madeira mais ou menos seriados, de pequenos olhos negros penetrantes, formam uma arquibancada atenta ao que ocorre no vão logo abaixo: uma reunião de criaturas e fósseis, ovos e vegetais, entre outras presenças indefiníveis em texturas improváveis.
As exposições “Conceição dos Bugres: tudo é da natureza do mundo” e “Erika Verzutti: a indisciplina da escultura” estão em cartaz ao mesmo tempo ao longo dos próximos meses, abrindo o ciclo “Histórias Brasileiras”, sendo a escultura o mote inicial neste ano em que apenas artistas mulheres serão apresentadas em individuais pelo museu. A próxima mostra, que fecha a trinca de escultoras, está com abertura marcada para agosto e será de Maria Martins, “Desejo imaginante”.
Acima: Vista da exposição de Conceição dos Bugres (Foto: Eduardo Ortega / MASP)
A escolha dessas artistas representa um percurso formal-temático reconhecido na historiografia brasileira, que contrapõe-se à rigidez e racionalidade de outras correntes prestigiadas, como a da abstração geométrica e práticas ligadas ao conceitualismo e ao site-specific. Se o denominador comum ao trio for alguma ideia genérica de “brasilidade”, aqui nosso território nacional se revela em sua versão fantástica, às vezes absurda, também animada e exuberante, como se as entranhas simbólicas e subterrâneas daquilo que se entende como viés construtivo/projetista da arte brasileira dessem as caras.
A heterogeneidade dessa seleção de artistas e suas respectivas exposições é evidente não somente porque trabalharam – em franca atividade no caso de Verzutti – em espaços e tempos absolutamente distintos, mas porque sua justaposição em si é reveladora das condições que envolvem determinadas trajetórias artísticas, seja pelo lugar e o papel de quem faz arte em seu meio social, os atributos dessa atividade, ou até mesmo os impactos distintos da valorização da obra pelas vias do mercado.
Ao longo da vida, Conceição dos Bugres (1914-1984) produziu incansavelmente um vocabulário escultórico bastante preciso e específico, que considerava as propriedades naturais da madeira, da tinta e da cera de abelha; “a natureza é sábia”, dizia. Com gestos mínimos, a artista materializava figuras humanas de cabeça chata e cabelos lisos e negros, revelando sua visão particular sobre o indígena. Ela batizava seus bugres com nomes carinhosos, os colocava em banho de sol, numa relação de respeito, intimidade e companhia. Os bugres aludem para a própria história de Conceição, que criança mudou-se de um pequeno povoado no Sul do Brasil rumo ao Centro-Oeste, por conta da perseguição aos indígenas frente à onda de imigração européia do começo do século passado – a depender do emprego, a própria palavra “bugre” pode conter em sua etimologia um sentido próximo ao de “indigena refugiado”.
Num cruzamento potente entre a linguagem artística, uma memória individual e a coletiva, o amontoado de bugres não deixa de evocar uma metáfora sinistra da situação de seus parentes no momento atual, em que a população nativa brasileira luta contra um assalto redobrado sobre suas terras e direitos. Além do objetivo institucional de pluralizar a história da arte brasileira, a mostra provoca reflexões sobre como o campo da cultura deve responder aos enfrentamentos em curso no presente. Vale ressaltar que dos Bugres ganha agora o devido reconhecimento através de sua primeira exposição individual em uma instituição, sendo que apenas o Itaú Cultural e o Museu Afro Brasil possuem suas obras em acervo, o restante estando concentrado nas mãos de poucas coleções privadas.
Já na reunião de obras de Erika Verzutti (1971), o conjunto é um corpo de 79 obras produzidas de 2003 para cá, período em que a artista vem desenvolvendo e firmando um léxico escultórico de intimidade com toda sorte de materiais: gesso, bronze, argila, pedra e papel machê. Aqui, nenhuma textura é polida, lisa, sem que seja absolutamente necessário – a atração das peças reside justamente nos gestos mais marcados em superfícies irregulares, amassadas, afofadas, brutas, em equilíbrios instáveis.
Um aspecto fundamental no trabalho de Verzutti é sua qualidade metamórfica inquietante: suas obras ora se assemelham a monstros e abstrações “primitivas” alegóricas, ora se emprestam da semelhança ou dos contornos de objetos variados e hobbies banais do mundo cotidiano. Homenagens diversas a obras e figuras da história da arte e do campo afetivo informam bastante a prática da artista – característica essa que é celebrada como uma das principais chaves de entrada para a produção da artista. Mesmo assim, as obras ali reunidas inevitavelmente movem uma corrente de sentidos entre si, pedindo para entrar em contato conosco de maneira muito mais sinestésica, intuitiva, por associações livres, do que fixadas em referências quaisquer.
Parte do encantamento que surge no encontro com suas obras, com toda a experimentação farta com escalas e relevos, que irrompem e grudam do chão e das paredes, se estrutura imperceptivelmente pela relação que temos hoje com a imagem e sua multiplicação – a própria artista já trouxe em entrevistas influências que vão do ASMR ao slime, conteúdos produzidos e compartilhados em hiper-abundância na internet. O modo como nosso olhar hoje é mediado pela frontalidade das telas e seu aparato portátil de produção de imagem também não está excluído do processo criativo da artista, pelo contrário. Existem ali certas brechas, ângulos que surgem num instante, em que uma imagem estranhamente familiar se insinua e salta para fora, pronta para nos seduzir e capturar.
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