Editorial
Artigo
Do pragmatismo à subjetividade: aproximações e diálogos entre o design e a arte
Winnie Bastian
24 jan 2024, 18h30
A proximidade entre a arte e o design não é exatamente uma novidade, tendo em vista que os dois campos compartilham a raiz criativa e a busca pela expressão estética. Porém, enquanto a arte frequentemente tem como foco a exploração de aspectos como expressão individual, emoção e conceito, o design normalmente busca soluções práticas, voltadas para a funcionalidade e o atendimento às necessidades do usuário – ao menos é isso que diz o senso comum.
Mas será que os limites entre arte e design são assim tão definidos? Certamente que não: exceções sempre existiram, mas na pós-modernidade a abordagem exclusivamente racionalista perde força no design, que passa a se relacionar com a arte de forma mais próxima. Atender a uma determinada função já não é mais suficiente: os objetos precisam também cativar o usuário, visual e emocionalmente.
A inauguração do setor Design na SP–Arte em 2016 é uma evidência inconteste do estreitamento entre as duas disciplinas – principalmente, mas não só, naquilo que se convencionou chamar como “design colecionável”. As vertentes de aproximação são diversas e abordarei aqui algumas delas com base em minhas visitas à feira e no que pude presenciar por lá ao longo desses anos. Trata-se, portanto, de uma interpretação absolutamente pessoal; não pretendo, neste breve texto, estabelecer qualquer tipo de teoria, mas sim compartilhar a minha perspectiva sobre essas interfaces.
A primeira vertente é a mais básica (e mais evidente): móveis e objetos com intensa veia expressiva ou escultórica, nos quais a importância da estética se sobrepõe aos aspectos práticos. O design atual não prescinde da função, evidentemente, mas produtos que questionam a regra máxima do funcionalismo tornam-se cada vez mais frequentes – é possível dizer que, para alguns criativos, a forma passa a seguir a emoção, ou a expressividade.
É o caso da luminária de piso da série Mangue (2017), de Ary Perez, cuja base é formada por hastes metálicas curvas que aludem às raízes típicas desta vegetação. Ou da mesa de centro Sussuro (2021), de Jacqueline Terpins, a qual possui, em metade do tampo, relevos escavados que dão a ideia, segundo a artista e designer, de “um estremecimento pontual que reverbera por toda a extensão”, reduzindo a superfície de apoio em favor dessa provocação plástica. Outro exemplo altamente escultórico é o banco Una (2022), de Hugo França, feito a partir de um tronco de Braúna recuperado: aqui, o designer interfere o mínimo possível, apenas para possibilitar a criação de um assento usável, mas mantendo intactas as raízes, não só para demonstrar sua beleza, mas também como forma de mensagem sobre o desmatamento.
A segunda direção que observo é a de um design no qual se destaca o fator narrativo: aqui, móveis, luminárias e objetos se convertem em suportes para contar uma história e/ou transmitir uma mensagem. E, nesse contexto, podem evocar sensações que vão do estranhamento agudo à completa identificação – seja qual for a percepção, uma coisa é certa: a mensagem (conceitual, política ou de outro teor) foi devidamente comunicada e fixada.
Assim acontece com as luminárias da série Lixo (2018), de Bianca Barbato, fundidas em latão a partir de moldes feitos com latinhas e garrafas plásticas descartadas. Ou com as 12 peças da série Tipologia de Uma Segunda Vida (2021), por meio das quais o designer-marceneiro Rodrigo Silveira retraça a história de uma cadeira desde sua origem (o tombamento de uma árvore) até o produto acabado. Já seu colega Bruno Camarotti, também especializado no trabalho com a madeira, recorre à memória afetiva do seu Ceará natal para criar o aparador Ponta Grossa (2021), cujo desenho remete à falésia da praia de mesmo nome.
O terceiro viés que me chama atenção é a exploração de técnicas e materiais experimentais pelos designers, que valorizam de forma igualitária o processo e o produto dele resultante. É o que se verifica nas luminárias da série Rícino (2022), desenvolvidas por Mariana Ramos e Ricardo Innecco, do Estúdio Rain, utilizando uma bio-resina à base de óleo de mamona. “Quando colocado contra a luz, o material produz uma iluminação alaranjada, quente e etérea”, explicam os designers, que usaram-no para criar os difusores das luminárias. A investigação matérica também é o cerne da série Orgus, na qual Humberto da Mata mescla polpa de papel, madeira, caolin e resina para criar objetos escultóricos, como os apresentados na SP–Arte 2023. E como seria transformar a terra em objeto? Foi a partir desta pergunta que a designer Ana Neute criou a coleção Solo, na qual mesas de apoio, mancebo, vaso e castiçais são executados aliando a técnica milenar da taipa de pilão – com o apoio do especialista Fernando Ogando – a elementos de madeira de desenho essencial.
Outro diálogo com a arte acontece por meio dos ready-mades: aqui, os designers tiram objetos existentes de seu contexto ou objetivo original e os transformam em novas peças. O recurso não é novo (basta lembrarmos do banco Sella, criado pelos irmãos Castiglioni em 1957 utilizando um assento de bicicleta), mas reforça os pontos de contato e interação entre arte e design.
Os irmãos Fernando Campana (1961-2022) e Humberto Campana tiram partido dos ready-mades há décadas, seja em criações nas quais deslocam a função primeira do objeto (como a mesa na qual o tampo é composto por ralos plásticos justapostos) ou em outras que mantêm o aspecto funcional do objeto, mudando sua forma e percepção final, como no banco Dois Irmãos (2019), apresentado pela Firma Casa na edição de 2020: duas cadeiras de madeira são envoltas por uma trama de vime, que as unifica. Dois anos antes, a empresa exibia outras peças com a mesma lógica: a série de luminárias de piso Astral, desenvolvida pela arquiteta Candida Tabet a partir de difusores de vidro vintage, que, empilhados e sobre uma base de concreto feita sob medida, transformavam-se em uma espécie de totem luminoso. Já a poltrona Ferro (2018), de Leo Capote, exposta na feira em 2022 pela Particular.art.br, propõe uma transposição mais radical do objeto: nela, o encosto e os apoia-braços são formados por ferros de passar, cujos fios são enrolados na estrutura de forma aparentemente aleatória.
Por fim, a quinta aproximação que destaco enfatiza a singularidade e a exclusividade de um móvel ou objeto. O conceito de peça única ou série limitada, tão natural no campo da arte, se expande para o design, com criações que passam longe da produção massificada e da padronização – ao contrário, a raridade aqui é vista como uma qualidade que confere valor especial ao objeto em questão.
É o que acontece nos bancos e mesas laterais da coleção Rio (2023), lançamento da dupla Luciana Martins e Gerson de Oliveira, da ,Ovo. Cada peça é formada pela junção de um grande seixo rolado com uma base de aço carbono, de modo que nunca existirão dois iguais, já que o elemento principal é “fabricado” pela natureza. “Há um deslocamento, tiramos as pedras de seu ambiente natural e as colocamos sobre bases, moldadas especialmente para cada pedra. Elas não se conformam, são as bases que se conformam a elas, assim como os corpos”, explicam os designers.
O buffet Abrigo (2020), design Maria Fernanda Paes de Barros (Yankatu), se destaca pelas esteiras – trançadas com cilindros de cabreúva e fios de algodão pela própria designer segundo ensinamentos das mulheres Mehinaku – que fazem as vezes de portas deslizantes. Produzido em série limitada de 8 peças, o buffet “é minha maneira de homenagear o povo Mehinaku que me recebeu e acolheu, que compartilhou comigo saberes e histórias ancestrais e me ensinou a ver o mundo através do seu olhar”, afirma Maria Fernanda.
Encerro com o exemplo do banco Callas (2020), criado em parceria pelas designers Inês Schertel e Etel Carmona para a ETEL e editado em série limitada de 15 unidades. Não bastasse a produção totalmente artesanal (tanto na estrutura em madeira quanto nas 400 flores de feltro que compõem o assento), o conceito de slow design permeia também a escolha dos materiais: a madeira utilizada é uma perobinha-do-campo guardada há mais duas décadas no acervo da Etel, enquanto o feltro rústico é produzido com a lã das ovelhas criadas pela própria Inês em sua fazenda no interior do Rio Grande do Sul. Um conjunto que confere ao banco, para além da exclusividade, a aura de objeto artístico.
A meu ver, diálogos como esses são capazes de levar o design a novos patamares e constituem um contraponto bem-vindo ao design pensado para a produção em larga escala. Aliás, penso nas duas manifestações não como concorrentes, mas como complementares: a meu ver, o design conceitual pode alimentar o design stricto sensu, estimulando soluções inovadoras tanto do ponto de vista formal quanto funcional. Que assim seja!
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