Editorial
Entrevista
Descobrindo Miriam Inez da Silva
5 mar 2021, 7h29
A mostra “As impurezas extraordinárias de Miriam Inez da Silva”, atualmente em cartaz na Almeida e Dale Galeria de Arte, consiste da maior retrospectiva já realizada em cima da artista goiana. Com curadoria de Bernardo Mosqueira e assistência curatorial de Ana Clara Simões Lopes, a exposição reposiciona a obra de Da Silva — sempre caracterizada pela nomenclatura do naif, puro e folclórico — como um corpo de obras moderno de multi-camadas e imbuído de um humor mordaz. “A inclusão (ou exclusão) de Miriam nestas categorias fez de sua obra objeto de um olhar atrofiado, informado por colonialidade e elitismo, incapaz de reconhecer as complexidades que constituem sua prática. Onde estes críticos vêm apontando intuição, inocência, pureza e tradição, na exposição ressaltamos intenção, malícia, impureza e transgressão”, afirma o curador Bernardo Mosqueira.
Durante o processo de pesquisa para a exposição, o time curatorial se deparou com um tesouro: um arquivo minucioso mantido por Da Silva que detalhava seu transito dentro do mundo da arte, e que revela um precioso vislumbre da atuação da artista dentro do seu meio, previamente negligenciada ou desconhecida. Ana Clara Simões Lopes conta sobre o processo de interação com esse arquivo, e o que sua descoberta pode impactar na percepção da obra de Miriam Inez da Silva.
O catálogo da exposição, que contém o texto “Metabolizando Miriam” comentado na entrevista, além de outros textos seminais sobre a artista acaba de ser lançado pela Almeida e Dale Galeria de Arte e pode ser baixado no site.
Acima: Miriam Inez da Silva, Sem título (1983)
Todas as imagens dessa matéria são cortesia da Almeida e Dale Galeria de Arte
BARBARA MASTROBUONO : Ao pesquisar a obra de Miriam Inez da Silva, você entrou em contato com um arquivo extenso mantido pela artista e subsequentemente por sua filha, Sofia Cerqueira, no qual quarenta anos de prática e trânsito no mercado de arte estão registrados minuciosamente. Você pode falar um pouco sobre como descobriu o arquivo, e da experiência de aprendizado no convívio com ele?
ANA CLARA SIMÕES LOPES : Descobri o arquivo de Miriam no início do processo de pesquisa para a exposição. Eu e Bernardo já havíamos reunido algumas informações e notado particularidades sobre a trajetória de Miriam, mas ainda haviam muitas lacunas e incongruências nas informações que nos eram disponíveis. As fontes primárias eram escassas. Lembro de estar em contato com uns dez museus simultaneamente, tentando confirmar as participações de Miriam em exposições dentro e fora do Brasil. Esse processo vinha sendo lento e especialmente difícil, já que a maioria das instituições trabalhavam com capacidade de pesquisa significativamente reduzida devido às restrições impostas pela pandemia de Covid-19. E então, Bernardo consegue o contato de Sofia Cerqueira, filha da artista. Logo na primeira conversa, Sofia mencionou ter guardado pinturas, xilogravuras e matrizes, além de muitas das pastas de Miriam, já que vivia no mesmo apartamento em que a mãe havia morado. Muito generosamente, ela disponibilizou esse tesouro para que pudéssemos utilizá-lo na pesquisa.
Foi numa destas pastas que encontrei o arquivo. Depois de algumas repletas por cadernos de desenho, de rascunho, gravuras impressas e esboços para pinturas, logo aparecem folders, currículos, documentos e catálogos de exposição. Lembro que prontamente vi o impresso de uma exposição no México, realizada no Museo de Arte Carrillo Gil — uma das instituições que eu andava perturbando insistentemente, tentando consultar um documento que agora estava ali, nas minhas mãos. E não só isso, o arquivo prontamente sanou muitas das nossas dúvidas, esclarecendo grandemente a trajetória de Miriam. Ali encontramos ao menos o dobro de indícios de exposições em galerias do que o que havíamos reunido em pesquisa anterior, por exemplo. O simples montante de material tornou clara a proficiência da artista que aprendíamos, a instância de sua circulação, atribuiu forma a participação e protagonismo de Miriam em uma quantidade significativa de exposições ao longo dos anos. A coleção documental de Miriam me ensinou sua constância, o cultivo e regularidade de sua prática, delineando o desabrochar de sua trajetória profissional.
E no entanto, ainda que decididamente diligente, esse arquivo ou coleção de documentos também é fruto de uma seleção cujos parâmetros são desconhecidos. É um arquivo minucioso, mas repleto de hiatos. Acredito que teve seu contorno definido pelos anos de armazenamento sem cristalização de critérios. É curioso notar o que Miriam guardou e o que escolheu não guardar. Ela não manteve nenhum tipo de apontamento sobre suas obras finalizadas e vendidas, por exemplo. Nem mesmo no caso das exposições em que manteve outros tipos de documentação, não guardou nenhum registro das obras produzidas para a ocasião, muito menos seus paradeiros finais. Percebe? Há lacunas que são verdadeiros vácuos. Me levam a crer que talvez os parâmetros para seleção fossem simplesmente seus afetos.
BM : No seu texto “Metabolizando Miriam”, publicado no catálogo As impurezas extraordinárias de Miriam Inez da Silva (2021) você reflete sobre os traços deixados por Da Silva ao compilar seu arquivo, e sobre como o ato da documentação cumpre um papel na construção da figura do artista e sua obra dentro do discurso maior de crítica de arte. Você pode falar um pouco sobre isso?
ACSL : Ah, acho que esses traços aos quais você se refere, essas minúcias, são minhas partes preferidas do imenso arquivo de Miriam. Desde o primeiro momento, cada grifo, recorte datado de jornal, catálogo sublinhado e currículo datilografado me encantam. Eu acho que são características sutis que avigoram a diligência e afeto que observo nesse processo de armazenamento ao longo dos anos.
No texto, essa documentação a que me refiro não é relacionada apenas à documentação da Miriam, mas também à ideia de documentação histórica proposta pelo Le Goff. Ele buscou questionar as lacunas deixadas pela documentação histórica, interrogando seus hiatos e esquecimentos. O trago pra perto tentando questionar justamente a narrativa da história que fez questão de não incluir alguns artistas. Eu busquei construir meu texto nos meandros das ideias que ele propõe, mas de forma intencionalmente subjetiva. Tentei ressaltar como esse arquivo pessoal nos oferece ligeiramente mais do que um arquivo institucional — engendrado de pragmaticidade — seria capaz. A coleção de documentos de Miriam nos permite observar sua trajetória a partir de um ponto de vista subjetivo e pessoal, justamente porque era sua.
LE GOFF, Jacques. “História e memória”, Campinas: SP Editora da UNICAMP, 1990. p. 90.
Um bom exemplo é o caso de Miriam e Ivan Serpa. Durante a pesquisa, ouvimos de muitas pessoas que os dois se conheciam, e alguns até reiteraram a cordialidade entre eles. Em contato com o acervo do MAM–Rio, consegui confirmar a presença de Miriam em uma das aulas ministradas por Serpa no museu em 1962. Nas idas e vindas com o arquivo, encontrei o folder da vernissage de Miriam no qual Serpa havia desenhado — não vou me alongar sobre esse aqui (acho que já o fiz suficientemente no texto) — mas o que me encanta nesse documento é o dado de afeto que sua existência implica. Pressupõe presença, diálogo, troca, coisa que os acervos institucionais não seriam capazes de fazer.
Se me permite a digressão, o paralelismo dessa situação toda me parece sempre tão curioso: durante um processo de pesquisa que se propunha questionar hiatos históricos, descobrir uma coleção documental que oferece todo o conteúdo para a revisão de uma dessas lacunas que pairavam expostas.
BM : Nesse mesmo sentido, uma das grandes marcas da exposição atual é apresentar Da Silva não como artista naif, como ela vinha sendo caracterizada, mas sim como artista carregada de intencionalidade e com formação acadêmica. Como a descoberta desse arquivo ajudou no movimento de quebrar a estereotipização do trabalho dela?
ACSL : A descoberta do arquivo corroborou muito do que já imaginávamos, alicerçou muitas de nossas suspeitas. Desde o princípio eu e Bernardo nos debruçamos sobre as pinturas por horas a fio, notando intuitivamente os gestos transgressores presentes nas composições e reiterando detalhes que afloram nas pinturas quando confrontadas com as noções — com as quais já tínhamos esbarrado — de ingenuidade e pureza, frequentemente utilizadas para descrever a obra de Miriam. Pelas pinturas, suspeitávamos uma artista provocadora, bem humorada e sagaz, imagem que o arquivo nos ajudou grandemente a consolidar.
Acho que um bom exemplo são os cadernos de desenho da adolescência de Miriam. A descoberta desses cadernos mais antigos nos apresentou sua habilidade em representar da maneira “convencional”, de um ponto de vista da arte acadêmica ocidental. Lembro de abrir um dos cadernos e notar um desenho chamado São João, de 1952. Muito já estava ali: o gosto pelas festas populares, os vestidos minuciosos, os casais dançando e até a própria inclusão do título no canto superior das composições. De certo, houveram mudanças, mas eram muitos os desenhos que nos apontavam motes que mais tarde repetir-se-iam em suas pinturas. Ali já estava o gosto pela elaboração das vestimentas, maquiagens e cabelos exuberantes, além de temas como festas e espetáculos, cartas de baralho, atrizes e cantores.
Esses indícios da atenção de Miriam à cultura vernacular e as formas da representação da mulher já nos anos 1950, anunciavam a latência destas características marcantes em sua pintura ao longo dos anos. Portanto, pintar como o faz trinta anos mais tarde só pode ser uma escolha, e, enquanto tal, seu sentido e implicações devem ser contabilizados. Esses dados, ao meu ver, apontam os afetos de Miriam e podem ser úteis no desmonte da ideia de “ingenuidade”. E se Miriam fosse norteada não pela inocência, mas sim por sua intencionalidade, liberdade e transgressão?
De verdade, espero que o arquivo possa ser útil na discussão de estereótipos na análise da deliciosa obra de Miriam. Torço para que esse trabalho de pesquisa inspire revisitas à sua produção e fomente o questionamento das muitas justificativas empregadas na classificação de sua obra enquanto “naif”, “ingênua” ou “popular”. Muito ainda precisa ser discutido a respeito dessas categorias tão estanques. É uma terminologia que me parece pouquíssimo eficiente, visto que está sempre rodeada por uma constelação de noções pré-concebidas que turvam análises mais atentas e potentes das obras.
BM : Em uma História da Arte Brasileira (em maiúsculo) na qual os nomes consagrados da segunda metade do século 20 são constantemente revisitados, suas documentações, arquivos e traços constantemente analisados por cada minúcia, o que você sente significar o fato do arquivo de Da Silva ser de amplo desconhecimento de pesquisadores até o recente momento?
ACSL : Acho que uma resposta simples pra essa pergunta não seria possível. Para começar, esse enfoque exacerbado em alguns temas e artistas é uma problemática da narrativa historiográfica no geral. Essas lacunas podem ser causadas por uma miríade de diferentes fatores — desde limites de acesso ao material, até a reprodução excessiva de um mesmo núcleo de discussões.
É certo que a reprodução de um mesmo núcleo de discussões a respeito de um mesmo conjunto de cânones, que se reiteram ano após ano, acarretaram em muitas negligências. Isso pra dizer que, de forma muito geral, o sistema de arte e a historiografia não foram muito gentis com as artistas mulheres, nem com os racializados e nem com os artistas que insistiu em classificar enquanto “populares”. Houveram avanços nesse sentido, mas são recentes, além de não serem suficientes.
O fato de Miriam ter sido categorizada como artista popular fez dela uma espécie de “outro” do sujeito moderno, sem importância nem nuance, e que logo não justifica estudo. Esse “outro” é facilmente compreendido e assimilado porque é “simples” e “ingênuo”. Muito se conclui a partir dessas classificações superficiais, que parecem justificar a ausência de pesquisa substancial e revisão de trajetórias. E uma vez que a pesquisa não se faz necessária, os acervos não são precisos, as fontes primárias não têm tanta importância. A superficialidade basta.
Talvez eu pudesse intuir que muito do que se desconhecia sobre Miriam assim permaneceu por tanto tempo devido a exaustão de um mesmo núcleo de análises, que foi repetido paulatinamente ao longo dos anos. No entanto, não acho tão simples, ou melhor: não seria uma tarefa tão fácil apontar o porquê desse desconhecimento do arquivo de Miriam. Para te responder isso, acho que seriam necessárias uma nova revisão completa do acervo da artista e uma revisão minuciosa da historiografia da arte brasileira do período, para aí sim, levantar hipóteses de exclusão desse arquivo.
Vale ressaltar, também, que o meu texto foi uma leitura momentânea dessa coleção documental. Foi mesmo um mecanismo experimental de processamento, daí o metabolizar. Por essa natureza processual, acho que qualquer conclusão estanque a partir dessa primeira leitura seria um tanto prematura.
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