Editorial
Ensaio
Da democratização à democracia cultural: uma reflexão sobre a gestão da cultura
Yasmin Abdalla
18 fev 2021, 16h50
As políticas culturais no Brasil vivem uma fase de enorme instabilidade, marcada por momentos como o fim do Ministério da Cultura (cuja pasta foi subjugada a outros Ministérios no atual Governo), a censura de produtos culturais em editais públicos e o encerramento de mecanismos de incentivo, como vivenciamos no Estado de São Paulo, após o recente término do PROAC ICMS. Por isso, nesse contexto de desmonte, é essencial que retomemos uma discussão mais profunda sobre como surgiram as políticas públicas culturais e quais seus principais propósitos.
A França é o berço das políticas públicas culturais tal qual conhecemos, com a criação do Ministério dos Assuntos Culturais, em 1959, sob o comando de André Malraux, escritor e intelectual francês que dedicou-se a refletir sobre filosofia política e cultural ao longo de sua vida. A fundação desse gabinete representa uma das primeiras iniciativas no processo de institucionalização da cultura no mundo, e particularmente na Europa, num momento em que os países do continente consolidavam suas políticas do pós-guerra. A França, de forma pioneira, percebeu que a cultura e suas manifestações deveriam ser importantes aliadas nesse processo de reconstrução nacional e retomada de influência no contexto internacional.
A política adotada pelo Ministério dos Assuntos Culturais era marcada pela intervenção estatal na esfera da cultura a partir da ampliação da oferta aos bens culturais e patrimoniais, ou seja, o objetivo era oferecer ao grande público a possibilidade de frequentar espaços culturais, como exposições, teatros, cinemas, entre outros. Medidas como a abertura de espaços culturais por toda a França, garantindo maior abrangência regional quanto aos impactos da política, e a instituição da gratuidade para determinadas instituições, na expectativa da ampliação do acesso, foram adotadas na construção desse projeto de governo. Essa forma de fazer política, que virou exemplo em outros países do mundo, caracteriza-se por uma ideia central: a de democratização cultural.
Pelo menos essa é a opinião de Philippe Urfalino, em A invenção da política cultural (Edições Sesc, 2015).
Apesar de num primeiro momento a estratégia de democratização parecer acertada, ela carrega consigo alguns pressupostos controversos. Como reflete a pesquisadora Isaura Botelho, essa política, além de colocar um único tipo de cultura – em geral, a erudita – como merecedora de incentivo e difusão, assume que o mero encontro entre a obra e o público – também considerado no singular – já bastaria para o desenvolvimento de uma fruição artística plena. O modelo de democratização cultural carrega consigo uma visão colonial de que é missão de alguns “levar cultura” às classes populares como forma de incluí-las no tecido social.
Pesquisas posteriores ao exemplo francês, conta Botelho, mostram que essa conduta apenas privilegia aqueles que já consomem essas práticas mais eruditas, e que, dado os estímulos estatais, passam a frequentar ainda mais esses espaços. “A questão é que essa política não resolveu seu maior objetivo: incorporar novos setores sociais no mundo das práticas eruditas”.
Dimensões da cultura: políticas culturais e seus desafios, Edições Sesc, 2016, pg. 33.
Ibid., pg. 45.
O amor pela arte
Voltando à França dos anos 1960, a instauração dessas medidas também criou a necessidade de uma mensuração de impactos, na tentativa de situar o desenvolvimento cultural no contexto econômico e social do país. Por isso, o Ministério dos Assuntos Culturais financiou uma parte da pesquisa do sociólogo Pierre Bourdieu, feita em parceria com o também sociólogo Alain Darbel, sobre os hábitos culturais de frequentadores de museus em cinco países do continente europeu: Espanha, França, Grécia, Holanda e Polônia. A ideia central era entender as dinâmicas sociais que se colocam no contexto de acesso a obras de arte por parte do público. Compiladas no livro O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público (1966) e trabalhadas por Bourdieu ao longo de outros estudos sobre gosto e distinção, alguns achados que surgiram nessa investigação vão definir um novo paradigma para a formulação de políticas culturais.
Uma das conclusões advindas da pesquisa é que, naquele contexto, havia uma correlação clara entre o nível de escolaridade e a frequência a museus. Os autores observaram que as crianças advindas de famílias nas quais visitar uma instituição era um hábito recorrente adquiriam uma “disposição” maior para tal prática. Ou seja, o desejo por cultura não é “natural” e deve ser estimulado, segundo Bourdieu e Darbel, desde a infância. É possível que um adulto que nunca foi a uma exposição quando criança se emocione diante de um quadro ou de uma escultura? Claro! Afinal a percepção de uma obra de arte está longe de uma relação estritamente social, mas será muito mais difícil que ele inclua em seus hábitos culturais a visitação constante a um museu ou instituição, já que ele não foi, ao longo de sua vida, habituado a isso.
Isso nos leva a outro achado dos sociólogos: as barreiras de acesso à cultura não são meramente materiais, mas simbólicas. Eles perceberam que não adianta garantir gratuidade a exposições, espetáculos e outros bens culturais se não houver uma sincera formação e empoderamento do público nesse sentido. O indivíduo precisa, acima de tudo, se sentir legitimado a frequentar e consumir determinados bens para que ele, de fato, o faça. Quantas pessoas, por exemplo, já se sentiram intimidadas a entrarem em uma galeria de arte por acharem que não pertenciam àquele espaço?
Por fim, os sociólogos percebem que as linguagens artísticas, bem como os espaços culturais, têm códigos próprios. Compartilhar esses códigos é essencial no fomento ao desejo à cultura e na dissolução das barreiras simbólicas. Quanto mais códigos o indivíduo tiver interiorizado, mais confortável ele se sentirá a frequentar e consumir determinado bem. Em um livro, pode ser desde estar familiarizado com a língua com a qual ele foi escrito até entender as referências complexas as quais o texto se utiliza. Em uma exposição, pode ser desde entender que a linha no chão diante das obras é a distância mínima que deve se guardar até perceber na materialização do trabalho uma longa pesquisa teórica-conceitual que um artista contemporâneo conduziu.
Democracia cultural
Esses achados, reforçados em outras pesquisas sobre hábitos culturais, geraram uma nova forma de encarar as práticas dos indivíduos e, por consequência, uma nova maneira de formular políticas públicas no campo da cultura. Ao invés de estimular a democratização cultural, políticas mais eficazes passaram a focar no conceito de democracia cultural. “A democracia cultural pressupõe a existência de vários públicos, no plural, com suas necessidades, suas aspirações próprias e seus modos particulares de consumo e fruição, tanto na cultura local quanto naquela que pertence a um universo mais amplo, nacional ou internacional. Sob essa nova perspectiva, o desafio é maior e, acredito, mais legítimo. Saímos de um campo unidirecional, cheio de certezas, que indicava qual cultura deveria ser privilegiada, para o universo da diversidade cultural, tanto no fazer quanto na recepção desse fazer”, elabora Botelho.
Dimensões da cultura: políticas culturais e seus desafios, Edições Sesc, 2016, pg. 45.
Um caso bem sucedido de política de democracia cultural é o programa Cultura Viva, criado pelo Ministério da Cultura, em 2004, sob o comando de Gilberto Gil, o qual instituiu os chamados Pontos de Cultura pelo país. O fomento a equipamentos e projetos culturais locais, que desenvolvem as potencialidades de cada território, considerando a diversidade não apenas de produção cultural, mas de público e seus interesses, traduz perfeitamente a ideia de que somos todos produtores de cultura – ou melhor, culturas. Devidamente instrumentalizados com os códigos específicos de cada linguagem, cabe a cada um escolher o que gostaria de produzir e consumir. Ao Estado, portanto, caberia possibilitar essas múltiplas produções e fruições, sem que haja uma intervenção tão verticalizada.
A democracia cultural é um importante conceito na gestão da cultura que deveria nortear não apenas a formulação de políticas, mas as estratégias de desenvolvimento de instituições e espaços – inclusive comerciais – que encontram nos bens culturais seu principal insumo de sobrevivência. Entender a existência de diversos públicos e quais barreiras lhe são impostas, a importância do constante fomento ao desejo cultural e a necessidade de compartilhamento de códigos é essencial para um desenvolvimento de práticas mais democráticas e contemporâneas que têm, por consequência, maior impacto na sociedade em geral.
Sobre os pontos de cultura como modelo de democracia cultural e ação menos vertical do Estado, ver artigo de Alice Pires Lacerda: Democratização da cultura x democracia cultural: os Pontos de Cultura enquanto política cultural de formação de público. Disponível em <https://bit.ly/2YGuz2q>.
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As opiniões veiculadas nos artigos de autores convidados não refletem necessariamente a opinião da instituição.
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