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Curadoria 365

Curadoria 365 : Metamorfose

Raphael Fonseca
13 mai 2021, 8h

A partir das noções de movimento, mudança e transformação, muito seria possível discutir a respeito das histórias da arte e das imagens relacionadas ao Brasil. Os trabalhos aqui mostrados foram criados por artistas interessados em experimentar diferentes perspectivas em torno do que poderia ser uma metamorfose — comum a essas investigações está a necessidade de criar imagens que parecem sempre trazer algo novo ao espectador e que se apresentam como uma espécie de congelamento de um desenrolar mais amplo de uma narrativa. Mesmo que nenhum desses trabalhos se trate de imagens em movimento, creio que cada um deles sugira essa movimentação a partir de suas opções cromáticas, de variedade de traços e pinceladas, materiais utilizados e, claro, seus próprios títulos.

Pareceu-me importante pensar em artistas não apenas de diferentes regiões do país, mas também de gerações dissonantes; longe de querer olhar apenas para uma geração mais jovem de artistas visuais no país, parece interessante estabelecer esses cruzamentos e pensar como, por exemplo, parte da produção de Samson Flexor pode dialogar com alguns dos interesses de Bruno Novelli ou, por outro lado, como as narrativas pintadas pela grande Miriam Inez da Silva podem conversar com os desenhos de Laura Lima.

Se estas e estes artistas se interessam pelas metamorfoses, acredito que isso se dá pela sua atenta observação do mundo, do tempo e das muitas vidas — das matérias, do corpo humano, daquilo que convencionamos chamar por “natureza” e das imagens. Penso, portanto, que mesmo que muito diferentes, as pesquisas e os trabalhos aqui selecionados podem ser vistos como pequenos elogios à vida e à necessidade existencial de transformação que nos compõe como humanos e que nos faz mover pelo mundo.

Bruno Novelli - No olho do dragão

Bruno Novelli
“No olho do dragão”, 2021
Pintura: 60 × 40 cm
Carmo Johnson Projects

Bruno Novelli nasceu em Fortaleza, foi criado em Porto Alegre e reside há algum tempo em São Paulo. Ele tem uma longa trajetória como pintor e, para quem conhece seu trabalho, suas imagens geralmente costumam ser rodeadas por mistério, símbolos e figuras de diferentes contextos. Chama a atenção na sua pesquisa a maneira como a cor é usada e a opção pelas escalas grandes dos trabalhos. Esse trabalho me chama a atenção especificamente porque tem um título que evoca algo figurativo — “No olho do dragão” —, um termo que remete a uma fruta, a músicas e mesmo a um filme, ao mesmo tempo que é uma imagem rodeada de um mistério: em nenhum momento vemos explicitamente um olho ou um dragão. As imagens feitas pelo artista muitas vezes se encontram nesse limite entre o que seria a abstração e a figuração, sempre na iminência de algo por acontecer.

Emerson Uyra - Sem título

Emerson Uyra
Sem título, da série “Elementar lama”, 2017
Fotografia: 90 × 60 cm
C.galeria

Emerson Uýra é um artista visual que trabalha entre a performance e a fotografia, e reside em Manaus, no Amazonas. O artista, como podemos ver nessa imagem, se transforma em um drag queen chamada Uýra Sodoma e essa artista que é protagonista das séries fotográficas propostas. Nesta imagem há uma grande preocupação quanto a maquiagem, a roupa e a pose. Muitas vezes os adornos usados por ela advém da natureza — troncos, folhas, terra, dentre outros. Uýra Sodoma e Emerson Uýra, por meio dessa pesquisa, trazem ao público imagens que refletem sobre diferentes formas como os seres humanos interagem com isso que convencionamos chamar de “natureza”. Muitas vezes essas imagens apontam problemas e assimetrias, sempre com a preocupação em criar composições marcantes e com cores que rapidamente captam a atenção do público.

Gilvan Samico - Primeira homenagem ao cometa Halley

Gilvan Samico
“Primeira homenagem ao cometa Halley”, 1985
Gravura: 55 × 90 cm
Galeria Frente

O artista é um nome essencial para a história da arte no Brasil — ele nasceu em Recife, 1928 e faleceu na mesma cidade, em 2013. Ele trabalhou com diversas linguagens, mas ficou conhecido pela sua relação com a xilogravura. Professor, articulador de diversos movimentos com artistas em Pernambuco, circulou por todo o Brasil e participou de exposições de grande importância nacional e internacional, como a Bienal de Veneza. Essa imagem faz referência ao Cometa Halley, que foi visto a olho nu apenas em 1986 — um ano depois da realização desse trabalho — e cuja próxima aparição na Terra será em 2061. A maneira como Samico se refere ao cometa é comum à sua pesquisa: a fusão entre figuras humanas e formas misteriosas, a relação direta com os astros, a composição que sempre traz algo de surpresa e uma forma de lidar com a xilogravura e com a cor que sempre se dá de forma experimental.

Laura Lima - Figurinos para balé #1

Laura Lima
“Figurinos para balé #1”, da série “Croquis”, 2021
Outros: 22 × 16 × 1 cm
A Gentil Carioca

Esse trabalho faz parte da série “Croquis”, desenvolvido desde sua exposição individual “Balé literal”, na Gentil Carioca, em 2019. É interessante selecionar esse trabalho porque a produção da artista é muito associada à instalação, ao uso do espaço e ao convite para a participação de muitos corpos, e por vezes nos esquecemos de sua relação com os desenhos e com o papel. A artista, desde o começo de sua produção, tem extensas séries de desenhos e creio que esses figurinos absurdos que surgem aqui vão de encontro a isso. Mais do que desenhos, são colagens, recortes, onde não vemos explicitamente o corpo, mas ele é indicado pelo uso de diferentes canetas, diferentes traços e o uso do preto e branco sobre o papel. Se o título da exposição dela era (de maneira provocadora) “Balé literal”, esses figurinos que ela tem produzido excluem qualquer literalidade; são imagens permeadas de muita imaginação e transformação.

Miriam Inez da Silva - São Miguel Arcanjo expulsando Lúcifer

Miriam Inez da Silva
“São Miguel Arcanjo expulsando Lúcifer”, 1972
Pintura: 18 × 16 cm
Almeida e Dale Galeria de Arte

Miriam Inez da Silva nasceu em Trindade, Goiás, em 1939 e faleceu no Rio de Janeiro, em 1996. Sua produção foi extensa e ela experimentou com linguagens como a pintura, a gravura e o desenho. Participou de muitas exposições e recebeu diversos prêmios. Tenho a impressão de que sua produção mais conhecida é a pintura onde geralmente as obras não possuem um tamanho monumental — como essa obra que tem 18 x 16cm — e nelas, a artista representa diversos tipos de cena: imagens com cunho religioso, cenas em que vemos atividades cotidianas e também imagens onde vemos suas conexões com a cultura pop, como quando vemos Raul Seixas, John Lennon, dentre outros. Essa obra especificamente chama a atenção pela forma como ela lida com o corpo humano — algo habitual na sua pesquisa —, e como ela lida com a cor de forma chamativa. Além disso, essa imagem traz uma cena descrita no livro do Apocalipse, onde São Miguel Arcanjo trava uma batalha com Lúcifer. A forma como Miriam o faz traz sua habitual irreverência, incluindo até mesmo alguns anjos que parecem estar ali como uma platéia, observando a cena. 

Paloma Bosquê - Inquieto

Paloma Bosquê
“Inquieto”, 2019
Escultura: 40 × 25 × 6 cm
Carbono Galeria

Esta obra participou de uma exposição individual recente da artista, realizada em Nova York, na galeria Mendes Wood DM: “In the Hot Sun of a Christmas Day”, em 2019. Essa escultura, assim como parte da produção recente da artista, chama a atenção pela forma como ela lida com o peso e pela utilização do bronze. Na imagem vemos uma linha que, de certa forma, pende entre dois pesos; pelo próprio título, “Inquieto”, vemos o trabalho e não temos certeza se a inquietude se dá pelo desejo das duas partes estarem juntas ou separadas. Acho que esse trabalho também pensa certa noção de metamorfose e mudança, há uma sugestão de movimento que é constante aos oito trabalhos selecionados para esta mostra virtual.

Samson Flexor - Envol a Dominante Blue (Voo para azul dominante)

Samson Flexor
“Envol a Dominante Blue (Voo para azul dominante)”, 1958
Pintura: 182 × 182 cm
Pinakotheke

Samson Flexor nasceu na atual Moldávia, em 1907, e faleceu em São Paulo, 1971. Ele estuda Belas-Artes na Europa e, logo após a Segunda Guerra Mundial, fixa residência em São Paulo em 1948. Uma vez na cidade, ele continua a experimentar com a abstração e, em 1951, funda um espaço chamado Atelier-Abstração, onde ensina, orienta diversos alunos e organiza exposições no Brasil e exterior. Essa pintura data de 1958, ano muito associado à dispersão desse grupo de alunos e nela vemos o movimento que interessa ao Flexor de diferentes formas — na pincelada e nas cores. Tenho a impressão de que essa obra também indica alguma espécie de transformação ao nosso olhar. Além disso, me parece interessante pensar a figura de Flexor (e de outros dos artistas aqui selecionados) como um possível diálogo entre diferentes gerações importantes para se pensar certas histórias da arte no Brasil.

Sonia Gomes - Branca de neve

Sonia Gomes
“Branca de Neve”, 2019
Técnica mista: 59 × 45 cm
ARTEEDIÇÕES

A artista tem uma pesquisa constante com a utilização de diversos itens — roupas, materiais relacionados ao universo da costura e troncos de árvore são alguns deles. Quando ela explora o uso do papel, além de se utilizar de algumas dessas matérias, ela se vale de canetas de diferentes cores, lápis de cor e diferentes tipos de bordado. Nesta imagem, tendo em mente essa relação das obras dessa curadoria com a noção de metamorfose, achei interessante trazer um trabalho onde vemos o nome da Branca de Neve, conto maravilhoso muito rememorada e coletada, por exemplo, pelos Irmãos Grimm, durante o século XIX. Acho interessante pensar que, assim como nos contos maravilhosos há a noção de transformação, nesse trabalho de Sonia Gomes temos o mesmo, a partir de sua apropriação de um livro e de como suas formas tomam conta das palavras impressas.

Confira também a breve entrevista
que fizemos com o curador.


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Raphael Fonseca é doutor em Crítica e História da Arte pela UERJ, pesquisador da interseção entre curadoria, história da arte, crítica e educação. No momento, prepara a exposição “Sweat”, a ser aberta em junho, na Haus der Kunst (Munique, Alemanha). É também co-curador da 22ª Bienal de Arte Contemporânea Sesc_Videobrasil, com estreia marcada para 2023. Entre 2017 e 2020, atuou como curador no MAC Niterói.

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