Berna Reale, “Ginástica da pele # 07”, 2019 (detalhe).
SP–Arte Viewing Room

Corpo, câmera e screening no SP–Arte Viewing Room

Julia Flamingo
26 ago 2020, 8h43

No vídeo “Definição de Arte”, algumas vozes tentam dar longas e incompreensíveis explicações sobre a arte enquanto a artista Vera Chaves Barcellos, em frente à câmera de vídeo, luta contra o sono. O vídeo assertivo e bem-humorado de 24 minutos está entre as obras que a galeria paulistana Superfície escolheu para a sua participação no Viewing Room da SP-Arte – um projeto solo dedicado a artista de Porto Alegre. O trabalho é de 1996, mas remete à experimentação que diversos artistas vinham fazendo principalmente a partir dos anos 1960, em que a performance era criada para a câmera. Vera Chaves Barcellos pesquisava o jogo entre a imagem e a presença do corpo: em “Estranho desaparecimento de V.C.B”, por exemplo, ela faz uma série de divertidas fotografias em que apresenta sua figura sumindo do cenário. 

Se, naquela época, a performance criada para a câmera era uma maneira de registrar uma ação sem testemunhas, hoje ela acontece ao vivo, em screenings que podem ser assistidos simultaneamente por centenas de pessoas ao redor do mundo. A ideia de privacidade que prevalecia em vídeos de artistas como Vera Chaves Barcellos passa longe de muitas das performances feitas hoje para a câmera. Em quarentena, muitos artistas apresentam performances na intimidade do seu lar e ateliê, mas nem imaginam quem são as pessoas que os observam do outro lado da tela.

Acima: Berna Reale, “Ginástica da pele # 07”, 2019 (detalhe).

Vera Chaves Barcellos, "Definição de arte”, 1996. Cortesia: Galeria Superfície.

Vera Chaves Barcellos, "Definição de arte”, 1996. Cortesia: Galeria Superfície.

Renan Marcondes, "Aquele que diz não", 2020. Cortesia: OMA Galeria.

Renan Marcondes, "Aquele que diz não", 2020. Cortesia: OMA Galeria.

É o caso de “Aquele que diz sim aquele que diz não”, performance do paulista Renan Marcondes que, representado pela OMA Galeria, integra a programação de performances online da SP-Arte. Confinado em seu ateliê, o artista apresentou uma performance ao vivo de longa duração na terça (25), em que caminhou de quatro levando em suas costas um pódio de madeira. Durante horas, Renan ficou à disposição para ser observado por qualquer pessoa que acessar o link do Youtube. Na performance, ele brinca com a ideia sugerida pelas palavras “Viewing Room”, colocando nós internautas no lugar de voyeur, como se estivéssemos invadindo a sua privacidade. O conceito de fazer uma performance dentro do próprio estúdio, desmistificando o lugar de trabalho do artista e aproximando o público do processo de criação, foi muito explorada por Bruce Nauman nos anos 1960, e é retomada, atualizada e até certo ponto, subvertida, por Renan nesta performance. 

Outra transmissão ao vivo de destaque da programação é “Vermelho de sangue preto”, de Ricardo Januário, cuja performance irá explorar a tensão e o relaxamento do corpo em uma dança transmitida na Plataforma HOA no sábado (29), às 19h15.

Berna Reale, “Ginástica da pele”, 2019. Cortesia: Galeria Nara Roesler.

Berna Reale, “Ginástica da pele”, 2019. Cortesia: Galeria Nara Roesler.

A câmera também é ferramenta crucial nas performances feitas em lugares públicos que tomam forma de happenings e que só chegam até nós se registradas em vídeo e foto. Caso de “Ginástica da pele”, performance da paraense Berna Reale cujo vídeo é apresentado no estande da Galeria Nara Roesler. Realizada nas ruas de Belém, em 2019, a performance reuniu cem jovens, que foram liderados por Berna – ela encarna a comandante de uma tropa – para realizar movimentos de um treino militar. Entre gritos e apitos, os jovens sem camisa e descalços respondem com gestos executados por suspeitos quando enquadrados pela polícia. Os cem rapazes são enfileirados e organizados de acordo com a gradação dos seus tons de pele.  

No trabalho de Berna Reale, o corpo não é personificado. Aqueles corpos representam tantos outros corpos de jovens que sofrem preconceito pelo tom de pele. Na obra dela, não importa a nacionalidade ou o contexto: de Belém do Pará à Minneapolis, suas performances remetem a todos os que são vítimas de preconceito, assédio ou negligência. Parte das vendas das fotografias dessa obra serão doadas para o projeto Remição de Pena pela Leitura, que funciona em presídios de Belém. 

Na C.Galeria, Paul Setúbal apresenta o vídeo da performance “Porque os joelhos dobram”, em que ele dá golpes de cassetete nas paredes brancas da galeria até que o objeto entorte e seu corpo se esgote. O artista de Brasília que frequentemente discute poder, controle e naturalização da violência, chamou bastante atenção durante a SP-Arte/2018 quando participou da primeira edição do setor de performance. No Pavilhão da Bienal, Setúbal criou uma engenhoca feita de roldanas e cabos para sustentar com o corpo uma escultura de 250 quilos de Franz Weissmann. 

Luciana Magno, “Devir tubérculo”, 2019. Cortesia: Janaina Torres Galeria.

Luciana Magno, “Devir tubérculo”, 2019. Cortesia: Janaina Torres Galeria.

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Já em “Devir tubérculo”,  no stand da Janaina Torres Galeria, Luciana Magno coloca o corpo no lugar de tensão com a natureza. Na performance de 2019 apresentada no 36º Panorama da Arte Brasileira do MAM-SP, ela mostra uma mulher sendo içada de dentro da terra pelos pés, como um tubérculo que é arrancado do solo. A imagem violenta faz referência à fotografia de uma mulher indígena pendurada de cabeça para baixo e mutilada, revelada pelo Relatório Figueiredo, de 1967, que registra investidas contra os povos indígenas durante a ditadura militar.

Como fica a relação com o corpo e com a performance na arte mediada pelo digital? Vou procurando responder à pergunta enquanto assisto à performance ao vivo de Renan Marcondes do meu sofá, e revejo o brilhante vídeo de Berna Reale no conforto da minha casa. É em uma relação um tanto ambígua com o corpo, a câmera e o screening que eu sei que será muito bom quando pudermos ver tudo isso ao vivo novamente.


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Julia Flamingo é jornalista de arte e fundadora do Bigorna, plataforma didática de arte contemporânea. Tem graduação em jornalismo pelo Mackenzie, e história pela PUC-SP. Vive em Lisboa, onde é mestranda em Culture Studies na Universidade Católica, e colabora com veículos do Brasil e Portugal. Trabalhou como repórter e crítica de exposições da revista Veja São Paulo entre 2015 e 2017.

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