Editorial
Entrevista
Conversa com Igi Ayedun
Barbara Mastrobuono
1 jun 2020, 9h
Igi Ayedun é o que pode ser chamada de uma polímata das humanidades. A artista, que apesar da pouca idade já acumula quase vinte anos de carreira internacional, tem um dedo em cada coisa: moda, arte, comunicação, educação – e sempre em posição de concepção e liderança, aplicando a todos seus trabalhos uma visão interdisciplinar aprofundada. Em 2010, assumiu a co-direção e internacionalização da revista digital U + MAG; e em 2018, junto de Samuel de Saboia e Lucas Andrade fundou o Escola Efêmera AEAN (Ambiente de Empretecimento da Arte Nacional), escola gratuita direcionada para artistas negros e LGBTQ+ que oferece aulas de performance, artes visuais e outros, sempre de uma perspectiva decolonial. Atualmente encabeça o MJOURNAL, publicação mobile mensal que analisa e informa acontecimentos que impactam a indústria criativa, e o HOA Art, centro cultural interdigital focado na promoção e venda de artistas latino-americanos. Em paralelo aos seus projetos pessoais Ayedun emplacou uma carreira de sucesso como editora, consultora de estilo e fotógrafa para revistas de moda como L’Officiel Brasil e Bazaar Art. E tudo isso sem deixar de produzir sua obra intermidiática que a levou para diversos países em pesquisa. Confira abaixo nossa entrevista.
Acima: Igi Ayedun em sua residência em Marrakech, 2019
Você explora bastante técnicas de deslocamento em seu trabalho, seja ao estudar o deslocamento da rota de tecido entre os continentes Sul-Americano, Africano, Oriente Médio e Ásia, até de forma mais física, deixando o próprio material de uma obra evoluir e se transformar, chegando eventualmente à sua forma final. O que te atraiu para essa pesquisa?
Igi Lola Ayedun: Nossa! Muitas coisas que, inclusive, transcendem o fato de eu me considerar um ser viajante. Acho que o ponto de partida surge da investigação genealógica afro-diaspórica. Com o passar dos anos acabei estruturando a minha pesquisa a partir de elementos que antecedem o colonialismo das Américas a fim de não só me aproximar do meu histórico genético como, também, construir outros imaginários referenciais daquilo que compõe a minha existência. Através disso, cheguei ao universo da pintura orgânica y mineral somada à relação que a natureza possui com as artes, principalmente quando falamos desses territórios. Assim, quando aprendi a olhar para o Índigo y para o Lapis-lazuli – os dois elementos chave da construção do meu trabalho – eu entendi por meio dessas matérias y matizes um testemunho de uma grande parte da história da humanidade invisibilizada nos estudos da história da arte ocidental. Testemunhos que relatam não apenas construções estéticas, como cronologias que vão desde dados de economia y organização de nações até pilares da mitologia não-ocidental que desenharam muitos dos valores culturais do mundo. Acho também, que além de toda a riqueza de conhecimento que descubro todos os dias conforme vou desenvolvendo meu trabalho, essa caminhada tem muito a ver com processos identitários y com os alicerces do meu ser. Mais do que pesquisar, curtir, pirar ou amar o mundo azul. Eu sou azul, essa é minha ancestralidade, essa é a minha história.
Em seus textos você usa o termo “capacidade cultural das cores”. Você pode nos contar um pouco mais sobre isso? Aproveito para também fazer o gancho com sua exploração de técnicas de tingimento milenar. E, por último, um dos elementos recorrentes em sua obra é a espiritualidade – como isso se relaciona ao seu entendimento das cores?
IA: Acho que a capacidade cultural tem muito a ver com o que eu citei na perguntar anterior. Basicamente, as cores são testemunhos de transações sociais da história da humanidade y investigá-las é uma forma muito profunda de se entender a história do mundo em diversos aspectos. Além de ser um caminho essencialmente poético é, também, um despertar para decodificar fatos que fazem o mundo ser o que ele é hoje. As relações das cores com o colonialismo é fascinante, por exemplo. Y entender a partir disso, possibilidades decoloniais de existência é um grande provedor de novos fôlegos. O têxtil no meu trabalho tem a ver com isso também. A cor me levou ao têxtil, como uma maneira mais peculiar de experimentação y aprendizado. Eu não podia apenas misturar pigmentos com aquela acrílica de boutique, eu precisava me envolver em processos onde a reação orgânica das cores da natureza pudesse ser assistida numa velocidade perceptível y com grande potência de assimilação. Acho que o milenar tem muito disso, né? Sobre o tempo y a capacidade de assistir às coisas se transformando com relógio y paciência o suficientes para contemplar esses processos. No caso do meu trabalho, comecei a aprender técnicas como o Bogolan do Mali, Adire da Nigéria y outras práticas de curtume Berbère voltadas para a preparação y finalização da materialidade do objeto têxtil. A partir do exercício de junção y descobertas cotidianas, desenvolvi essa coisa sem nome que me permite pintar y, sim, PINTAR (parte do meu trabalho é também reconhecer essas técnicas como pintura não-ocidental pré-colonial) com o corpo em piscinas de água colorida com tantos litros que não sei nem contar. Sobre a espiritualidade, a minha relação é totalmente voltada ao azul. Na tradição Yorubá, o Waji, o pigmento do lápis lazuli, possui um poder de proteção vital sobre as nossas almas durante alguns rituais de iniciação. Rola também em outras tradições indígenas africanas egípcias y se estende geograficamente pelo Afeganistão, meu atual território de fornecimento desse material. Como Lésè òrìsà desde que nasci, atravessei muito desses rituais, y o azul era o pigmento que me protegia. Eu era, literalmente, pintada com esse pigmento durante alguns ritos. Y, hoje, depois de me esquecer por muito tempo y me lembrar, entendi a potência y o sentido essencial que o azul tem em minha vida. É muito lindo, muito intenso y, também, muito fortificante y apaziguador. Agradeço quase todos os dias aos Deuses que me permitiram reencontrar esse pozinho mágico durante minhas andanças pelo mundo.
Como você acha que a cidade/país na qual você reside pode afetar sua criatividade e sua produção?
IA: Nossa, de diversas formas. Não pensava muito nisso antes, me achava muito criativa em São Paulo, mas a vida do outro lado do atlântico me fez perceber que criar é sobre transcender. Já escrevi uma vez isso, no Instagram. Acho que a cena interfere muito na nossa conexão com o nosso trabalho porque na minha experiência é mais difícil ser visceralmente eu. Existe uma relação social muito absurda com expectativa, dentro de uma reação imediata da caça a recompensa, muito característica das grandes cidades em tempos pós-contemporâneos. Y isso não tem a ver só com São Paulo, quando estou em Paris ou em Barcelona não é muito diferente. Mas, também, não acredito que tudo seja limbo sabe? Acho que são formas y métodos distintos de trabalho. Grandes cidades me deixam hiperativas então esses são os momentos em que as minhas práticas são mais voltadas pra mídia, que é uma paixão também. Vídeos, 3D, textos, sons, vozes… eu vejo na comunicação a minha possibilidade de ser artista 100% do meu tempo. Porque é diferente desses rituais de acordar super cedo com o som da Mesquita y ir caminhando pela Medina até chegar no curtume para trabalhar junto com o Sol. É sobre vivenciar coisas, pessoas, interagir… sou bem midiática y, acredito, que a comunicação é também uma das minhas formas mais bonitas de fazer arte. Mesmo eu achando que as pessoas não catam muito que é arte. Mas é. Tem processo, narrativa, experiência estética, eu y todo mundo. Só pode ser arte.
Você recentemente esteve em residência em Marrakech, no Marrocos. Como foi a experiência lá?
IA: Marrocos é um namoro sério né? Y eu ainda não conheço toda a família. Risos. Estou há pouco mais de um ano tateando esse país incrível y a cultura Berbere y ainda estou na fase do amor deslumbrante. A real é que viajo muito mas gosto de viver lugares y desde a primeira vez que pisei ali resolvi ficar y construir coisas. Passei por várias cidades, de diversas formas até que decidi que Marrakech era um lugar para me estabilizar um pouquinho mais. Eu tinha já o projeto da minha primeira institucional na Europa y parte dessa pesquisa sendo desenvolvida, mas sentia que deveria buscar mais y, então, decidi me auto-internar em residência. Os primeiros dias foram uma catástrofe, porque apliquei para uma residência que parecia super legal mas chegando lá, além de não existirem ateliês de pintura onde eu pudesse fazer MUITA bagunça, eram um montão de gringos viajando para fotografar pessoas racializadas pobres y montar exposição ou banco de imagens. Fiquei frustadérrima, porque além de estranhar o que movia aquelas pessoas tenho muita aversão a práticas de captura de narrativas através da imagem, sobretudo na fotografia. É um sistema europeu compulsório muito complexo que não deveria fazer sentido. Estudando nas bibliotecas y nos museus de lá, comecei a entender logicamente os processos de tinturaria y, então, comecei a buscar na Medina (o lugar onde eu moro/morava, sei lá) pessoas que dominavam essas técnicas. Me deparei com muita coisa, viu? Y os panelões de cozimento de lã são maravilhosos, mas o trabalho que eu desenvolvia precisava de muito sol y como eu já estava investigando técnicas em couro, lã y algodão resolvi bater na porta de um curtume. Cheguei lá, conversei com os caras, disse que queria fazer negócio y pedi para trabalhar lá, aprender, desenvolver minhas próprias peças y alugar duas piscinas por tempo indeterminado. Eles riram da minha cara, disseram que eu parecia nativa de lá. Berbere y não árabe. Y toparam. Acidentalmente, fui a primeira mulher da história de Marrakech a trabalhar em um curtume Berbere. Eram mais de trinta homens y eu, uma energia paterna muito grande, que me fez lembrar meu falecido pai em muitos aspectos. Aprendi muito y minhas piscinas estão lá, para quando eu puder voltar. Basicamente, larguei a residência. Segui meu próprio caminho, fui morar na casa da avó de um dos meninos de lá, conheci uma outra Marrakech, comecei a lidar com fios de seda também, enfim, muita paz, couscous, alegria, aprendizado y arte pura.
Além de ser artista, você já atuou em diversas linhas de trabalho que unem criatividade e pesquisa, desde trabalhar em revistas de moda como editora ou atuar como idealizadora de imagem de moda. Em cada trabalho que você faz, você leva consigo um olhar crítico sobre a cultura contemporânea e como escolhemos construir nossas práticas e suas sustentabilidades, ambientais, políticas e econômicas. Você pode contar um pouco sobre como você pensa sua prática interdisciplinar?
IA: Sim, eu tenho uma carreira editorial na indústria da moda de uns bons quinze anos. Passei por muitos estágios de uma redação, entre o conteúdo y a produção de imagem, y isso é o que lapida a minha carreira comercial. Ainda faço as duas coisas de maneiras diferentes, seja por meio de ações comissionadas, análises de mercado ou desenvolvimento de estratégias que atravessam a experiência estética y o pensamento crítico. Sou apaixonada pela moda porque ela acessibiliza a minha pesquisa y, também, porque sem ela eu não conseguiria comunicar o meu trabalho para tanta gente. Existe na moda contemporânea uma gene de mobilização popular que acabou se perdendo da arte y me sinto bem em poder me relacionar com as duas coisas porque uma coisa acaba viabilizando a outra. São dois braços y um corpo, né? Mas, eu acho que um ponto vital de toda essa experiência é o fato de eu conhecer muito a logística de mercado. Trabalhei muito tempo em Paris, focada na indústria do luxo. Dialogava com dinâmicas da alta costura, alta joalheria, alta relojoaria, alto design y, até mesmo, do mercado da arte trabalhando nos bastidores de eventos, organizações y reportagens. Essa experiência me ajudou muito a estruturar cautelosamente o meu trabalho artístico dentro de perspectivas mais burocratizadas, por exemplo. Sempre falo aos meus migos artistas que adoro a indústria do luxo até hoje porque ela me denuncia os rumos do mercado da arte de diversas formas. Não acho que eu seja super incrível por causa disso, mas essa vivência entre rodas de muitos dígitos me fez enxergar a calma dentro dos meus processos y o pragmatismo em relação ao mercado. Não tenho essa pressa de acontecer, ser descoberta, bombar porque… veja bem, não é bem assim que as coisas realmente funcionam. Não quando se é preciso fazer história. Mas ultimamente estou bem focada em transferir as minhas habilidades para a minha comunidade y artistas que acredito, então por isso estou criando um centro cultural independente interdigital (porque também existe uma sede física em São Paulo) onde exponho, trabalho perfis, catalogo, comunico, hospedo em residência y comercializo o trabalho de jovens artistas latino-americanos ligados aos desejos do novo mundo. A HOA ART é o primeiro passo pro mundo da carreira de muita gente das novas gerações. Eu amo a internet, e sei que ela pode ir além do Instagram. Sabe, muitas vezes percebo toda uma cena artística jovem y brasileira necessitando de mais calma para desenvolver o próprio trabalho de forma sustentável, sem excluir as necessidades financeiras da nossa classe y a esfera digital pode ser uma grande aliada.
Você já encontrou muita resistência ao implementar sua visão em ambientes profissionais mais antiquados?
IA: Ah, sim, né? Sempre fui um alien nesses ambientes. Eu trago em meu corpo representações, narrativas y repertórios até então desconhecidos em circuitos muito elitizados. Além do fato de entender muito bem um tipo dinâmica que as pessoas presumiam ser estrangeira para o meu espectro de conhecimento. Y para finalizar não negocio em desvantagem, é se calar ou abortar. Então os processos de equiparação (pré-necessários) para quem está preso ao ontem podem ser muito desconcertantes. Ah, y não podemos esquecer que eu sou artista, né? Todo dia, 100%, risos. Então, sim, eu dou bastante trabalho pro velho mundo.
Você fala bastante da questão da imagem. Quais os impactos que a construção de imagens pode ter em nosso ambiente coletivo, e como utilizar isso de forma mais plural e consciente?
IA: Olha, eu venho da base, né? Tenho um histórico de ascensão meio esquizofrênico considerando a minha bagagem familiar, mas venho da base. Então sou muito conectada às questões dela y entendo ela como um dos meus mais potentes sensos de prioridade. Y eu vejo na imagem tudo (absolutamente tudo, sobretudo nas circunstâncias em que vivemos atualmente) o que o mundo precisa para trabalhar as questões de base em todas as escalas de existência, função y poder. Acho que dai que vem meu flerte com arte-educação. Em 2018, regi com várias amigues (Lucas Andrade, Luiz Felipe Lucas, Felipa Damasco, Samuel de Saboia y mais trinta artistas que merecem ser citados mas não cabem no espaço que temos) um coletivo onde parte dele era estruturado em formação educativa, o AEAN. Fizemos uma performance na SP-Arte em 2018, você lembra? Com curadoria da Paula Garcia, onde apresentamos um exercício de resistência em 1h20min caindo y levantando como forma de propor reflexões sobre o genocídio da população preta no Brasil. Foi lindo! Mas infelizmente, um mês depois uma de nossas integrantes, a Matheusa, veio a falecer de maneira brutal y isso me fez criar um sentimento estranho com a imagem também, além da ânsia em superá-la. Mas, basicamente, acho que a imagem possui uma saída para os processos de repolitização da sociedade muito fundamental porque ela rege não só um arquipélago de imaginários mas, também, o da comunicação. Y é muito louco tudo isso, porque quando olho para uma parte da minha pesquisa que fala sobre a história da imagem enquanto escrita nas civilizações africanas pré-coloniais… me apaixono ainda mais pela minha ancestralidade. Espero que um dia esse encanto se espalhe por muites de nós também.
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