Editorial
Revista SP-Arte
Confluências emergenciais: do experimental dos anos 1960-70 à memória viva dos contemporâneos
Diego Matos
5 mai 2020, 10h37
E só agora percebe, naqueles recortes de tempo e espaço, como a filha fora um ser frágil. K. nunca imaginou que fotografias pudessem suscitar sentimentos assim fortes. Algumas parecem até querer contar uma história. Para ele, isso só conseguiam um Puchkin ou um Sholem Aleichem, com a força das palavras.
É possível afirmar que existem traçados históricos de relações consistentes entre gerações de artistas brasileiros. Enxerga-se, por exemplo, claras confluências de estratégias artísticas e dispositivos de trabalho entre a produção experimental e imagética que floresceu nos anos 1960, consolidada de maneira complexa ao longo dos anos 1970, e a geração de artistas contemporâneos que foram se afirmando nas últimas duas décadas. Se no início dos anos 2000 muitos coletivos e artistas se aproximaram das táticas e formas políticas que se assentaram na esfera pública à semelhança do que a geração “tranca-ruas” havia produzido nos conturbados anos de chumbo, os nomes que se firmaram nessa segunda década do século 21 passaram também a revisitar as memórias e os traumas daqueles anos da ditadura civil-militar (1964-85), produzindo um ambiente imagético e discursivo de uma nova potência: são realizações que permeiam a construção de novas narrativas históricas e encontram caminhos para o debate da crise política que aqui se agravou desde 2013.
Por isso, muito além de um repertório figurativo que possa guardar semelhança com produções do passado ou que atestam uma vontade panfletária e de denúncia, o que nos interessa é constituir inicialmente aproximações histórico-poéticas entre o que se firmou experimentalmente naqueles anos conturbados e o que hoje se apresenta emergencialmente nesse período de incertezas e crise. A ideia da crise atual e o que ela engendra podem assumir diversas facetas: desde o Antropoceno que se vivencia ecologicamente e climaticamente até o cenário de deterioração democrática que se espraia pelo mundo.
Acima: Ana Vaz, "Há Terra!", 2016. Fotograma 16mm transferido para HD, 13 min.
Bernardo Kucinski, K.: relato de uma busca. São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 109.
A série de “Zeros” produzidos pelo artista Cildo Meireles talvez seja um bom exemplo inicial de aproximação e renovação das experiências do passado em um mesmo trabalho. Se nos anos 1970, ele criava o Zero Cruzeiro (1974-1978): nota com valor e símbolo reduzidos à zero na qual em uma face dispõe a figura do indígena e na outra a figura do interno de um hospital psiquiátrico. Mais recentemente realiza o mesmo gesto ao colocar em circulação o Zero Real (2013) onde essas duas figuras ainda marginalizadas permanecem em destaque. Num intervalo de quase quatro décadas, o artista nos sinaliza mais uma vez a condição precária de grupos sociais deixados à margem e requalifica o debate público para as urgências de hoje.
Bem, o contexto atual para o qual se atenta está nas especificidades de nossa história política e cultural que culmina agora no esfacelamento da nova República (da constituição cidadã, de 1988, à eleição presidencial de 2018). Se nos anos 1960 a classe artística respondia aos sintomas de um estado de exceção que recrudesceu com o Ato Institucional nº 5, uma parte da atual geração está empenhada no não apagamento da memória daqueles anos. Notadamente, muitos desses artistas foram motivados pela transparência democrática dos últimos governos que abriram seus arquivos ao escrutínio público, realizaram a Comissão Nacional da Verdade e criaram os primeiros canais de comunicação com a sociedade civil.
A arte que tem potência para construir uma linguagem que requalifique nosso passado em nome da construção de novas possibilidades de futuro.
De forma desassombrada, esses artistas buscam construir imagens e textos que requalificam nosso passado em nome da construção de novas possibilidades de futuro. Para tanto, tendo em vista as confluências que se quer apontar nas estratégias da arte brasileira contemporânea, três caminhos merecem uma análise especial: a configuração de uma consciência territorial fincada nas dinâmicas de ocupação e construção de nossas terras e lugares, a revelação das histórias e cosmogonias de quem sempre esteve à margem do projeto civilizatório e a formulação de novas imagens a serem parte de um imaginário popular acerca de nossa história social. São por esses três eixos que traço paralelos entre passado e presente.
Ao final dos anos 1960, Cildo Meireles (1948) produziu uma série de projetos e ações denominada Arte física (1969). Nela, o artista propunha uma profunda reflexão acerca de uma tomada de consciência territorial e contextual que, entre outras coisas, punha em xeque certas convenções geográficas, sentidos cartográficos e formas de ocupação. O marco simbólico desses enunciados está na execução do trabalho Arte física: Caixas de Brasília/Clareira (1969): atento ao plano piloto original, o artista, acompanhado de dois amigos, promoveu uma tomada de posse territorial, demarcando uma clareira em um ponto da asa norte da cidade e lá enterrando uma caixa com os materiais residuais da terra revolta e queimada. Para ilustrar e rememorar as especificidades da prática artística, Meireles mantém guardados um mapa assinalado da ação, as fotos de todo o processo e duas caixas também com resíduos. O ponto intrigante dessa prática está justamente nas consequências da atividade: na medida em que se dava início ao projeto, a polícia que monitorava a cidade pela torre de TV chegava rapidamente ao local. Brasília, sitiada pelos militares desde o AI-5, havia se tornado um grande panóptico. Ou seja, o projeto modernista de Lucio Costa, com todos os ensejos da utopia moderna, passava a servir como uma luva ao projeto autoritário da ditadura. O gesto artístico, portanto, torna-se elemento elucidativo de uma questão: traz à superfície a ambivalência do nosso projeto moderno de nação.
Se Meireles respondia ao momento, Lais Myrrha (1974), aplicando uma igual consciência territorial e contextual, traz à luz a tragédia da Gameleira, ocorrida em 1971 na construção de um equipamento público projetado por Oscar Niemeyer, em Belo Horizonte, durante o governo de Israel Pinheiro. Em Projeto Gameleira 1971 (2014) e Estados transitivos 1, 2 e 3 (2014), a artista sinaliza nuances de uma história traumática, escamoteada pelo poder oficial. Utilizando–se dos mais variados recursos de representação, Myrrha evoca do passado narrativas ainda traumáticas para o presente e coloca às claras a aliança que se firmou entre a arquitetura moderna brasileira e a ditadura, reafirmando de forma tácita a ambiguidade de nosso projeto modernista, já rendido naquele momento à oficialidade de um estado de exceção. Tanto Cildo Meireles como Lais Myrrha fazem da arte veículos de elucidação das zonas obscuras que definiram nossas ocupações territoriais e os usos dos espaços das cidades ao longo de supostos anos de bonança.
O segundo eixo a que aqui se atenta revela como, de maneira sistemática, nossas estruturas de poder tentaram esconder, calar e “guetificar” populações, cosmogonias e imaginários em nome de um projeto civilizatório de sanha expansionista e desenvolvimentista. Portanto, em momentos diferentes de atuação, duas mulheres artistas se aproximam poeticamente para desestruturar as várias formas de invisibilidade impostas ao longo de décadas: Claudia Andujar (1931) e Ana Vaz (1986).
Se no vídeo Há terra! (2016) Vaz sensibiliza o olhar para um território além Tordesilhas, escamoteado pelas políticas de Estado, e convoca o espectador a perceber uma região imensa, mas de total invisibilidade, no filme Apiyemiyekî? [Por quê?] (2019) ela descortina o genocídio do povo Waimiri-Atroari, fruto da expansão territorial ao longo da década de 1970 que promoveu a grilagem de terras, a construção da BR-174 e a instalação de mineradoras. Só que nessa última abordagem a obra não se equaciona apenas enquanto cinema documental, pois ela recorre às imagens produzidas pela própria população indígena, nos pondo em contato com um imaginário que não conhecemos.
Ao recorrer às imagens produzidas pela própria população indígena, entramos em contato com um imaginário que desconhecemos.
É sobre esse imaginário que a obra monumental de Claudia Andujar é sustentada. Aqui, a construção de novas imagens é de ordem seminal ao conseguir em um só tempo constituir uma força de denúncia e traduzir visualmente uma cosmogonia até então desconhecida. Tal consideração se justifica pelo enorme trabalho produzido pela fotógrafa acerca do povo Yanomami. E a memória traumática de um processo predatório de ocupação por parte do programa do governo militar encontra correspondência na série Descaminhos (1974-89), que coincide no seu fim com os primeiros anos da nova República. Ao mesmo tempo, as duas produções poéticas revelam a similaridade entre o projeto político de outrora, do Estado terrorista militar, com a estrutura programática do governo atual de extrema direita. Tanto lá como cá, os povos indígenas permaneceram não só à margem como em risco de desaparecimento programado. Também, e não menos importante, essas produções partem igualmente da constituição de uma consciência que envolve o entendimento do contexto local e suas dinâmicas territoriais.
O terceiro e último traçado que se demarca aproxima a radicalidade da produção e manipulação de imagens e impressões figurativas de meados dos anos 1960 com a manipulação e a subversão de imagens esquecidas e, agora, recuperadas por jovens artistas. Se no limiar dos anos 1970 Antonio Manuel (1947), em sua série Flans (1968-75), subvertia as matrizes gráficas de jornais descartadas, ressignificando notícias e construindo novas camadas de sentido para o que eventualmente seria censurado, Rafael Pagatini (1985) hoje trabalha imagens de arquivo, concebendo-as com técnicas e escalas diversas, o que requalifica a potência e o valor histórico dos registros de outrora – basta ver as obras Retrato oficial (2017) e Bandeirantes (2018). Na primeira, imprime sobre pregos os retratos oficiais dos presidentes militares, acentuando as intenções veladas do regime em conduzir a ideia de um estado de normalidade. Já na segunda, ao se imprimir com escala amplificada uma única imagem em várias caixas de arquivo morto, as diversas imagens que dali se depura trazem à superfície os personagens – militares, lideranças políticas e empresários – que participaram da inauguração da rodovia Bandeirantes em 1978. O conjunto de corpos ali apresentado ilustra a dinâmica de manutenção de poder que conduzia a esfera pública sob controle.
Já em Tecituras: Pinacoteca (2019), Pagatini reconstitui em um corpo estrutural duplo, frente e verso, uma passagem da história da Pinacoteca do Estado de São Paulo que mantinha relação institucional com a ditadura, algo corrente entre as instituições brasileiras coagidas, em parte, pelo Estado. O ato de desvelar é, portanto, constitutivo do trabalho, o que nos faz pensar em outras associações com a produção figurativa e objetual dos anos 1960: Pintura tátil (1964), de Pedro Escosteguy (1916-89), e Repressão outra vez – Eis o saldo (1968), também de Antonio Manuel. O primeiro desses trabalhos históricos é uma pintura-objeto que demarcou a força figurativa de uma arte associada ao cotidiano e ajudou, em certo sentido, a constituir a nova objetividade da arte brasileira. Por sua vez, em Repressão outra vez – Eis o saldo a força dicotômica entre o vermelho e o preto, entre cobrir e descobrir, ou entre fazer ver a informação ou camuflá-la alcança expressão máxima. Em ambas, tecer, gravar e manipular imagens representativas do presente são estratégias que se repetem no fazer de Pagatini que, por sua vez, reascende e requalifica o debate de um passado ainda não cicatrizado.
Esses paralelos, analisados aqui de sobrevoo, são apenas um pequeno recorte das produções artísticas emergenciais que se tem observado nos últimos anos. Uma geração profícua, muitos nascidos nos anos da abertura política, se debruça sobre o oficialismo de nossa violenta história: consultando arquivos, confrontando consensos, resgatando e interpretando palavras e imagens, construindo novas imagens, atualizando a crítica institucional, entre outras táticas. São muitos os artistas brasileiros que, em alguma medida, tangenciaram também as preocupações e/ou as estratégias aqui debatidas: Alice Miceli, Bruno Moreschi, Cinthia Marcelle, Clara Ianni, Daniel Jablonski, Fábio Tremonte, Fernanda Pessoa, Fernando Piola, Gilvan Barreto, Graziela Kunsch, Ícaro Lira, Igor Vidor, Jaime Lauriano, Mabe Bethônico, Matheus Rocha Pitta, Romy Pocztaruk, Victor Leguy, Vitor César e outros tantos.
Nossa democracia atingiu seu maior patamar de fragilidade e crise, o que se coaduna com o atual contexto internacional. É urgente ver as imagens e ler as palavras que a arte de hoje nos sinaliza.
Tendo em vista a produção artística atual, três exposições recentes que tematizaram as questões apontadas: Hiatus: a memória da violência ditatorial na América Latina, curadoria de Márcio Seligmann-Silva (Pinacoteca do Estado de São Paulo, Memorial da Resistência, 2017); Estado(s) de emergência, curadoria de Diego Matos e Priscila Arantes (Paço das Artes e Oswald de Andrade, 2018); Meta-Arquivo: 1964-85 – Espaço de escuta e leitura de histórias da ditadura, curadoria de Ana Pato (Sesc Belenzinho, 2019).
Como elucida o professor Márcio Seligmann-Silva, “uma nação que nunca conseguiu olhar de cara para seus traumas, para sua história da violência, vê-se compelida a repetir essa história”. E é justamente contra esse status quo que a arte atual emergencialmente procura reparar e refletir, mantendo-se em alerta com a ascensão de um novo regime de censura e controle. Ainda inconclusiva e de caráter processual, a pesquisa acerca dos temas e debates que envolvem as memórias e traumas da ditadura civil-militar brasileira segue seu curso entre o meio artístico, o meio acadêmico e as mais diversas instituições governamentais e da sociedade civil. Entretanto, dada a conjuntura política do último ano, especialmente a partir das eleições federais de 2018, se faz necessária uma tomada de consciência que mobilize a sociedade civil a resistir diante da onda reacionária, do desmonte e da destruição institucional e do privilégio ao ambiente privado em detrimento da esfera pública.
Hoje, diferentemente da década passada, nossa democracia atingiu seu maior patamar de fragilidade e crise, o que se coaduna com o atual contexto internacional. Por isso, considerando o que o escritor Bernardo Kucisnki menciona, é urgente saber ver as imagens e saber ler as palavras que sensitivamente a arte de hoje nos sinaliza. Talvez na própria arte se possa encontrar respostas para os impasses democráticos em que estamos e, consequentemente, responder à disputa cultural e ideológica que está posta. Como bem ponderou o escritor, pensador e ativista italiano Franco Berardi, está na hora de olharmos para a “futurabilidade”, ou seja, enxergar e tomar consciência dos vários futuros possíveis inscritos no presente, manejando as possibilidades de que a máquina do capital hoje tenta nos privar.
Márcio Seligmann-Silva, Repetições: tudo de novo, in Priscila Arantes e Diego Matos, Estado(s) de emergência. São Paulo: Paço das Artes, 2019, p. 15.
Franco Berardi, Depois do futuro. São Paulo: Ubu Editora, 2019, p. 178.
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