Editorial
Opinião
Black is King: Uma análise decolonial
Ana Beatriz Almeida
4 ago 2020, 17h07
“O mundo é a jornada, lar está para além dele”
Provérbio Vodoun
A jornada da multi-artista Beyoncé Knowles-Carter com o Oeste Africano começa antes do que se possa ver. Em 2013 ela já trabalhava com o co-diretor de sua obra mais recente, “Black is King” (2020), o ganês fante Kwasi Fourdjour na obra “Drunk in Love”. Ele é um dos responsáveis pela aproximação entre África e diáspora nas referências culturais presentes no trabalho da artista ao longo dos anos. É de autoria dele o time diverso de co-diretores responsáveis por conectar as diferentes culturas africanas numa narrativa comum: os ganeses Emmanuel Adjei e Blitz Bazawule e os nigerianos Jenn Nkiru e Ibra Ake.
Elegante, a dupla inicia a obra “Black is King” introduzindo o espectador a Áfricas diferentes: o deserto com seus povos nômades – com referência direta aos tamashekis e massais; a bacia do Sudão (ou o sul da África), caracterizada pelas savanas; e a África ocidental, tropical, com rios e cachoeiras, terra dos ewe, yorubas e fantes. Ainda que seja impossível dar conta de toda vastidão de culturas do continente, as primeiras imagens da obra deixam nítida a mensagem de que não existe apenas uma África.
A obra, narrada por ritos, inicia-se com a voz de Beyoncé, que surge em off nos primeiros segundos de “Black is King” e faz referência ao ritual de nascimento da etnia Zulu, algo que também foi feito no filme original “O rei leão”. Os zulus estão em grande parte na África do Sul e suas tradições integram a cultura afro-brasileira de influencia Bantu. Os lideres humanitários Nelson Mandela e Zumbi dos Palmares, bem como a artista visual Helen Sebidi, são exemplos de exponentes zulus relevantes para a modernidade. Na narrativa de Beyoncé, o herói Black é original desta etnia e, havendo nascido rei, seu nascimento é marcado pelo ritual de reconhecimento dos ancestrais. Assim como no candomblé, a cor branca aparece como referência aos antepassados, que segundo a lógica zulu habitam o mar.
Podemos observar uma intersecção com a cultura ewe, presente na Nigéria, Benin, Togo e Ghana. Segundo as culturas zulu e ewe, a cabaça representa o feminino. Para os ewe, o mar é símbolo do desconhecido e do impenetrável, eles o chamam de Hú, uma força sobrenatural – que aparece no inicio do ritual de iniciação com uma cabaça cortada ao meio – representada por um dançarino azul turquesa que acompanha Beyoncé em diversos momentos ao longo da obra.
Grupo etno-linguístico africano que configura como o primeiro a ser escravizado e trazido para o Brasil.
Artista sul-africana que tomou parte da primeira edição da Death & Life Residency (2019).
Após a aparição desta figura vemos um palácio tradicional zulu, onde novamente temos representações de diferentes lideranças de povos africanos. Sentados no trono vemos Black e o rei, ambos vestidos com peles de caça de onça e antílope, que, ao contrário de leituras depreciativas e racistas da obra, não constituem “imagens estereotipadas” de “oncinha e leopardo”, mas sim de trajes reais manufaturados a partir de animais temidos pelos caçadores, configurando um traço distintivo do povo zulu cuja identidade é construída a partir da caça.
Ao final desta cena há uma anciã com roupas de Sangoma (medicina e prática oracular zulu) que pinta Black de branco, e ao fundo há uma imagem da própria Beyoncé, que se assemelha à Virgem Maria segurando um bebê. Esta imagem é recorrente ao longo da obra, fazendo alusão ao fenômeno da Madonna Negra e à popularidade desta figura na diáspora, como Nossa Senhora dos Cobres e Nossa Senhora da Aparecida no Brasil. A artista remete ainda à divindade Oxum em cortes nos quais aparece de azul em uma cachoeira, cor também usada para reverenciar a divindade em Osogbo, cidade nigeriana desta orixá.
O rito de nascimento, repleto de referências multiculturais do continente africano, segue com mulheres em fila indiana, vestidas de branco carregando suas cabaças próximas ao mar. Esta mudança é fundamental pois enquanto o ritual diurno é guiado pela figura masculina com um defumador, ele refere-se às tradições zulus, que são patriarcais, o foco nas mulheres e sua subsequente liderança no ritual aponta uma alternância para o matriarcado, um traço das manifestações afro-diásporicas das Américas. Nos continentes americanos, as culturas apresentadas no primeiro momento encontram-se mixadas em expressões como Palo, Santeria, Lucumi e o candomblé Ketu, Congo-Angola (Bantu) e Jeje. A homenagem a estas manifestações é acompanhada de uma citação sobre o início de “uma jornada onde sempre se pode encontrar um lugar como um lar”. Compreende-se que Beyoncé define o herói Black como um sujeito representativo de uma busca, tanto dos povos africanos como afro-diaspóricos por sua identidade pós-escravidão. Neste momento, ambos os que ficaram no continente africano e aqueles sequestrados do continente formam o sujeito que realiza a jornada para reivindicar seu trono: Black, em português Negro.
Representação da divindade Oxum para Santeria, padroeira de Cuba.
O fim deste ritual é marcado pelo anoitecer – uma referência nítida ao livro Sair da grande noite (2014) do filósofo camaronês que cunhou o termo “necropolítica”, Achille Mbembe. Este anoitecer não é gratuito. Ele é marcado por máscaras dogon, uma etnia que habita o noroeste do Mali, território que atualmente está em guerra. Muito conhecidos por suas máscaras e ciclos rituais, os Dogon acreditam que de tempos em tempos o mundo morre, seguido do renascimento de outro mundo. Esta morte e renascimento ocorrem a cada sessenta anos e são marcados por um ritual chamado Sigi, no qual máscaras delimitam as passagens. De acordo com esta visão acredita-se que a origem do mundo e dos seres humanos seja as estrelas. Nesta perspectiva, as máscaras marcam a morte ou renascimento de um estágio da existência. Numa conexão criada pelos diretores da obra, entre este sistema lógico e a cosmogonia zulu (segundo a qual as pessoas são manifestações dos ancestrais), é desenhado um universo onde as máscaras de vida e morte ocupam o lugar dos reis ancestrais. Deste modo, Negro é a manifestação atual de seus antepassados, representados pelas máscaras de vida e morte do mundo e que o acompanham durante toda narrativa.
Na cena seguinte, Negro encontra-se diante de um galpão, onde um macaco indica o caminho por uma porta. O texto, que na versão cinematográfica de 1994 de “O rei leão” é originalmente dito por Rafiki, é transferido para Lord Afrixana, artista expoente do afrobeat original de Kumasi. Na obra ele veste branco, com uma python albina. Tanto a roupa quanto o animal são característicos da principal divindade do povo ewe, conhecida como Dan, também cultuada no Brasil como Bessen (em comunidades jeje) ou Oxumaré (em comunidades yorubá). Para os ewe, o vodoun Dan é guardião da fortuna, uma vez que conecta o mundo visível com o invisível e o mundo dos vivos com o mundo dos mortos.
Não por acaso, a performance da canção “Don’t Be Jealous” [Não sinta ciúme] começa com a mesma fala de Rafiki na versão original, uma vez que é neste encontro que Simba, o rei leão, se conecta com seu pai pós-mortem. O que vemos é uma releitura da cena do filme a partir de sistemas lógicos da região do Golfo do Benin. Esta tendência continua por toda obra, a partir de perspectivas já apresentadas, como por exemplo o funeral do rei que é reencenado sob a proposta do branco como cor guia em referência ao mundo dos mortos.
A próxima parada significativa é a cena onde o menino Negro segue no banco de trás de um carro Mustang de estampa de onça – uma distinção real dos zulu. O carro desce ao longo de uma grande estrada, e no volante deste veículo encontra-se uma máscara de dogon de vida e morte do mundo. Esta cena é a releitura do original, quando Simba encontra o personagem Timão e este o orienta a abraçar o futuro, uma vez que coisas ruins sempre acontecem, em um diálogo que introduz a expressão que virou hino de toda uma geração: Hakuna Matata. Nesta passagem, dois personagens encontram-se a beira da estrada observando a cena: Beyoncé, que aparece em vermelho, fazendo referência aos princípios responsáveis pelos caminhos cuja cor predominante é o vermelho: Elegua (vodoun) ou Exu (orixá); e Hú, o mar, o impenetrável e invisível.
Este último personagem ainda tem um momento especial, que é a performance da canção “Already”, em que uma referência à obra de 1990 do artista afro-estadunidense David Hammons aparece na multidão. Trata-se de uma bandeira dos Estados Unidos sob as cores da bandeira pan-africana, desenvolvida por Marcus Garvey e utilizada por boa parte dos países africanos.
Não por acaso, esta música conta com um protagonismo maior de Hú, uma vez que a escravidão atlântica figura como personagem fundamental na constituição de comunidades afro-diaspóricas. Deste modo, o próprio mar, na figura de Hú, revela-se um personagem relevante na jornada de Negro em sua retomada ao trono. Nesta performance, aparecem citações a etnias com tradições bélicas como os massais (sul do Kenya), que aparecem em seus tradicionais saltos em ternos roxos, e as himbas (originalmente de Angola, agora ocupando o território ao norte da Namíbia), adornadas com barro vermelho e seus penteados característicos.
Esta é a primeira aparição das himbas em “Black is King”, e abre o debate sobre o feminino na obra. Há uma reflexão entre a relação do feminino e a água enquanto símbolo de renascimento. Assim como um debate sobre pigmentocracia absolutamente relevante na música “Brown Skin Girl”. A pigmentocracia, ou colorismo, é um traço do racismo em que pessoas negras de pele clara têm uma aceitação maior, em detrimento de pessoas negras de pele escura. Isto é refletido em diversas crises humanitárias, como por exemplo, a indústria de clareamento de pele ser a terceira maior em toda Nigéria, perdendo apenas para produtos como chá e sabão, além da menor incidência de assassinatos quando comparamos pessoas mais claras e mais escuras no Brasil e EUA, maior promoção institucional e, obviamente, maior representatividade em veículos de comunicação. Beyoncé refere-se a esta última manifestação de modo a produzir um statement visual através do protagonismo de celebridades de pele escura como Naomi Campbell, Lupita Nyon’o, Adut Akech, além de sua antiga parceira de palco Kelly Rowland.
O debate quanto à questão feminina aparece novamente somente na performance de “My Power”, quando a artista retoma brevemente a temática e um dos poucos momentos da narrativa no qual uma noção bélica do feminino está presente. O grande problema de “Black is King”, e talvez o único, é não conseguir livrar-se da narrativa em que o homem é um protagonista correndo atrás de seu destino, e a função feminina encerra-se no encontro com este homem, ou na função materna. Além de hétero-normativa, a perspectiva da artista sobre o tema é contraproducente na disputa do imaginário sobre o poder e na promoção de mulheres em posição de liderança.
Felizmente, há ainda uma reflexão sobre a masculinidade dos homens negros e os impactos deste universo simbólico sobre a comunidade. Nesta perspectiva, o casamento figura enquanto reencontro de Negro com o rio, ou a água, na figura feminina, tornando possível que ele retorne ao momento em que foi afastado de seu lar. Este momento é simbolizado pelo encontro com crianças usando belos adornos de cores e flores característicos da etnia suri do Vale Omo, região etíope nunca colonizada ou escravizada.
Esta etnia, pouco estudada, é centro da pesquisa do artista visual paulistano Thiago Consp, que relaciona a ética e estética dos suri com a resistência negra dos Queixadas, grupo de trabalhadores da Fábrica de Cimento de Perus que promoveu um dos maiores movimentos não violentos dos anos 1970, à ditadura, ao reivindicar condições humanas de trabalho por se encontrarem em situação análoga à escravidão.
A partir da mesma reflexão Beyoncé encerra sua obra com performances significativas. A primeira é a potente “My Power”, neste momento o arquétipo das Himbas é evocado numa alusão à passagem da obra original em que há um levante das leoas a fim de promover a restituição do poder de Simbá (uma figura masculina?!). Nesta performance, ela reúne um squad de americanas e sul-africanas, em torno de figuras bélicas das culturas deste país, inclusive as gestantes, a fim de definir simbólico uma situação irremediável de guerra. Uma alusão direta a revolução racial em curso, na qual a artista situa-se como parte integrante.
Por fim, em “Spirit”, sua performance final, ela evoca a atualização de situações do passado através dos corpos de seus dançarinos no deserto, performando Gamboot, uma dança criada nos anos 1970 quando povos de diversas partes do continente africano convergiram para África do Sul, atraídos pelo trabalho nas minas. Por falarem línguas diferentes, um dos entretenimentos deste grupo é a dança que unificava a todos em momentos de lazer, algo análogo ao processo identitário das culturas negras da diáspora.
Esta analogia funciona como uma declaração final do principal tema da obra: de que a atual crise racial tem uma dimensão que transcende à morte, uma vez que as atuais reivindicações ecoam uma jornada iniciada por nossos ancestrais, e que até o presente momento, não chegou ao fim.
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