Editorial
Reportagem
A pintura no atual circuito artístico brasileiro
Yan Catuaba
31 out 2024, 14h22
Alguém sempre está à espreita preparado para proclamar a morte da pintura. Ao longo de sua trajetória histórica, entre altos e baixos, ela já serviu a diferentes propósitos, experimentando suportes e modos de execução de toda sorte. Hoje, no Brasil, tem sido cada vez mais comum tomar conhecimento da existência de um novo pintor, sobretudo entre os artistas mais jovens, em cena. Galerias e museus, com maior frequência, têm dedicado parte de sua programação a exposições marcadas pela presença de gêneros pictóricos tradicionais, como o retrato, a paisagem e as naturezas-mortas. Somado a uma recorrência renovada da figuração, o cenário indica a existência de um momento bastante particular da pintura no país.
Mas qual seria e como poderia ser definida a situação pela qual a pintura está passando no circuito artístico brasileiro? Existiria um boom da pintura em curso no Brasil? O que explica o forte interesse por parte de jovens artistas em uma técnica dita tradicional? Foi a partir destes e de outros questionamentos que a SP–Arte convidou os pesquisadores Felipe Martinez e Mirtes Marins de Oliveira e os artistas Ana Elisa Egreja (Millan), O Bastardo (A Gentil Carioca) e Paulo Pasta (Millan) para exporem suas considerações sobre o tema.
Acima: detalhe de Paulo Pasta, Sem título, 2023. Óleo sobre tela. (Foto: Filipe Berndt/cortesia Millan)
Pintura e mercado
Foi no início do século 19, com a popularização dos daguerreótipos, que a pintura sofreu a sua primeira grande ameaça. A nova maneira de produzir imagens, que antecipava o que conheceríamos como fotografia, despojou da prática pictórica alguns dos preceitos e códigos que a definiram durante séculos, como o rigor formal e o compromisso com uma representação realista do mundo, exigências básicas do modo de pintar academicista que dominou os círculos artísticos europeus durante a época moderna.
Em resposta, ela debruçou-se sobre si mesma, sobre sua própria gramática, e demonstrou, por meio das vanguardas modernistas, aquilo que a tornava única entre as técnicas artísticas. Com este processo, a pintura adiou o seu fim e se revitalizou, exibindo uma reputação que seria hiperbolizada pelo polêmico Clement Greenberg (1904-1994), conhecido crítico de arte estadunidense, para quem a pintura modernista, sobretudo a abstrata, representava a forma mais pura e avançada de arte.
No entanto, não é somente entre os mandatários da erudição e da crítica que a pintura goza de uma posição de nobreza em relação a outras expressões artísticas. A opinião popular vai na mesma direção, muitas vezes identificando-a como sinônimo de arte. “A pintura é a velha senhora. Quando pensamos em arte, pensamos em pintura”, afirma Paulo Pasta, um dos principais nomes da pintura contemporânea brasileira, cuja intimidade com as cores, formas, luz e texturas o permite conceber telas que suspendem as noções de tempo para aprisionar o olhar de seus observadores. A professora e pesquisadora Mirtes Marins de Oliveira também é enfática: “o público que não é especialista bate o olho e diz ‘isso aqui é arte, não tenho dúvidas’. As pessoas desenvolvem um gosto sobre a pintura e sabem falar desse gosto”, reforçando a rápida assimilação dos produtos pictóricos nas concepções de arte.
Entender essa noção da pintura como elemento definidor do campo artístico é o primeiro passo a ser dado em uma investigação sobre o apreço por esta técnica ao longo dos séculos e, especialmente, no contexto brasileiro atual. Entretanto, fatores mercantis também ajudam a compreender o fenômeno. Sobre isso, Felipe Martinez, professor e pesquisador, informa: “quando falamos em pintura, nos referimos a uma mercadoria muito bem resolvida. Foi com a pintura de paisagem que a arte se integrou ao sistema financeiro durante o século 19”. A dimensão diminuta das telas, a facilidade do transporte, o acesso descomplicado ao que está representado, além do gosto disseminado pelas altas camadas sociais, principalmente nos centros urbanos industriais, justificariam esta aptidão à comoditização. “A pintura preserva esse caráter de mercadoria”, completa Martinez.
Aliás, é essa característica da pintura que a torna um alvo fácil para movimentos que buscam rejeitar a tradição e a dimensão mercadológica da arte. Foi nesse caminho que se guiaram propostas como a arte conceitual que dominou os anos 1960 e 1970, momento em que se condenava o fazer pictórico em nome da valorização de expressões como a performance e a instalação. Nas décadas seguintes, no entanto, surgiram grupos como a chamada Geração 80, formada por artistas brasileiros centrados na retomada da técnica, entre os quais o próprio Paulo Pasta, e o ateliê Casa 7, que, apesar do curto período de duração, contribuiu com o retorno desta linguagem a nível nacional. No exterior, nomes como Lucien Freud e David Hockney reposicionaram a pintura nos anos 1990, principalmente a de viés figurativo, dando-lhe um lugar de destaque.
O afastamento, à nível internacional, tanto das concepções greenbergianas, da pintura pela pintura, quanto das noções conceitualistas, é apontado por Martinez como um dos fatores que ajudam a explicar esta revalorização não somente no Brasil, mas em outras partes do Ocidente. Somado a isso, o estudioso aponta: “os anos finais do século 20 foram marcados pelo aquecimento dos mercados de arte do mundo. Com a desregulamentação financeira e a consolidação do neoliberalismo, estes mercados se integraram, o que respingou diretamente no interesse pela pintura”. Paulo Pasta, que atua há mais de quarenta anos no ofício que escolheu ainda na adolescência, corrobora com o diagnóstico a partir de sua experiência: “Nesse meio tempo, o Brasil se tornou um país no mundo e do mundo. Minha geração não conseguia viver de pintura. Hoje em dia, muitos artistas conseguem. O mercado cresceu, expandiu-se”.
O vai e vem da pintura no Brasil
Mas não foram apenas as dinâmicas econômicas que conduziram a técnica pictórica ao patamar no qual se encontra hoje. Foi em inúmeros ateliês e no deslizar de muitos pincéis que a pintura conseguiu resistir e se regenerar. Na virada do milênio, essa prática era mais uma vez questionada e deixada de lado. “Eu não mostrava o meu trabalho de cunho realista na faculdade. O momento era outro. Era a vez da performance e a fotografia também era muito forte. Havia pouco lugar para a pintura”, conta Ana Elisa Egreja, artista que se aventura em um tipo figurativo que denomina como “realismo mágico”, no qual une elementos da literatura a um modo de pintar que ressoa os mestres holandeses do século 17.
Egreja foi uma das integrantes do chamado grupo 2000e8, um coletivo de oito jovens pintores que se formou em torno de Paulo Pasta com o intuito de defender a pintura e experimentar suas possibilidades. Os objetivos, excêntricos para o contexto, levaram o grupo a posar para a capa do Caderno 2, suplemento de cultura de um dos principais jornais da época, sob a alcunha “Geração Tinta Fresca”. Estes artistas, de certa forma herdeiros do estrondo promovido pela Geração 80, talvez não tivessem dimensão do caminho que estavam a pavimentar com suas telas, mas foi com eles que a pintura encontrou um novo rumo no país: “já vinha do mundo esse clima de resgate da pintura e, naquele momento, nós movimentamos esse assunto em São Paulo”, relembra Ana Elisa Egreja.
Aos poucos, camadas de um novo contexto social foram sendo adicionadas ao cenário artístico erguido pelo grupo. Os anos que se seguiram, por exemplo, foram marcados por uma verdadeira transformação nos meios de comunicação e nas maneiras de fazer arte e política. Com a consolidação da chamada Web 2.0, discussões antes circunscritas aos meios acadêmicos tomaram conta dos fóruns digitais, trazendo ao debate público temas como os problemas sociais advindos do colonialismo e da postura excludente em relação a corpos dissidentes às normas de gênero e sexualidade, além da denúncia da crise ambiental que tem assolado o globo. A pintura, resistente e renovada, se mostrou então um suporte eficaz no tratamento destas e de outras inquietações. “A produção pictórica contemporânea parece abandonar aquela obsessão formal e técnica, típica do modernismo, em prol de seu conteúdo, apesar de vocábulos como ‘perspectiva’, ‘veladura’, ‘fatura’… ainda se mostrarem importantes”, pondera Mirtes Marins. Felipe Martinez expressa uma visão semelhante ao avaliar a prática de muitos pintores atuais: “embora ainda existam artistas preocupados com termos pictóricos, para muitos, a pintura é um meio para falar de outra coisa, uma forma eficiente de discutir certas questões”.
Estas duas leituras captam bem um dos traços que caracterizam a pintura produzida atualmente no Brasil. Devido à atuação de diferentes gerações, e em decorrência destes constantes vai-e-vens, a pintura nacional contemporânea parece ter se guiado por dois caminhos principais: de um lado, na esteira dos princípios modernistas, vê-se uma certa continuidade em relação à uma prática ainda preocupada com as especificidades do fazer pictórico. Com essa parcela de artistas, percebe-se a persistência de uma defesa da pintura a partir de seus próprios elementos. Por sua vez, o segundo caminho, que soa como uma novidade, apesar de reconhecer o extenso passado de sua linguagem, a utiliza mais como ferramenta política de transformação do imaginário coletivo, frente a problemas que exigem atitudes sociais concretas, do que como um meio para o reforço de uma soberania técnica.
Entre os inúmeros porta-vozes deste fazer pictórico, O Bastardo, artista fluminense dedicado à retratística, um dos gêneros fundamentais da pintura, demonstra o potencial desta técnica no enfrentamento de tópicos que permeiam a atualidade, justificando também a categoria “contemporâneo” usada para definir sua atuação em uma prática muitas vezes confundida com a tradição. “Sou completamente avesso à escola clássica e à sua sombra sobre a pintura atual. A arte contemporânea existe para causar impacto e ela precisa acontecer numa desobrigação, numa independência em relação à tradição”, afirmou o artista que dá protagonismo a grupos historicamente subalternizados, restituindo-lhes os ares de nobreza por meio do retrato. Sua fala reforça a visão de muitos dos pintores atuais, para os quais o compromisso com o presente, e com sua alteração, sobressaem frente às questões técnicas já bastante discutidas. “O suporte não importa, o chassis de hoje deve ser o mesmo que era usado por Leonardo da Vinci, mas o que a pintura diz, representa e como toca as pessoas é o que é relevante, é o que faz dela contemporânea”, observa Ana Elisa Egreja.
Os cinco são unânimes em sua avaliação: a pintura passa por um momento de conforto no atual cenário artístico brasileiro, mostrando-se como um campo fértil capaz de consumar os fins sociais da arte. “Por mais que não seja o foco exclusivo da produção corrente, sem dúvidas, ela é protagonista. As demandas institucionais e mercadológicas comprovam isso”, conclui O Bastardo. Em consonância, eles também avaliaram os desafios e as possíveis novas ameaças à essa forma de expressão artística, como as manifestadas pelos emergentes mecanismos de produção e reprodução de imagens representados pelas IAs e pelas redes sociais. “Pode deixar que a pintura aguenta essas pancadas, resiste e tira proveito, fazendo disso tema e motivo de trabalho. Isso prova que não existe um progresso em arte, uma nova linguagem não torna outra obsoleta”, defende Paulo Pasta. O Bastardo também não hesita em declarar o vigor de sua técnica diante destas sentenças e intimidações: “acredito que isso só contribui para demonstrar os valores da pintura enquanto um fazer particular e único. Não importa quantas vezes a matem, aqui no ateliê a pintura continua viva”.
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