Editorial
Ensaio
A narcísica história da fotografia e possibilidades de saída de uma história única
Luciara Ribeiro
4 dez 2020, 11h19
O que significa viver em um mundo rodeado de imagens fotográficas e não se sentir parte delas? Mesmo que, em um primeiro momento, não encontremos a resposta para essa pergunta, saibamos que ela reverbera na vida de muitas pessoas. Infelizmente, ainda vivemos em um mundo cujas imagens produzidas não falam com todos. A história da fotografia é um exemplo disso. Apesar de estampar suas páginas com diversas imagens, poucas delas estão direcionadas a corpos e histórias fora de um modelo eurocêntrico de vida e existência, gerando um desconforto a uma enorme parcela da humanidade.
A busca por reconhecimento nas imagens é um tema frequente nos estudos dedicados à fotografia. Muitos autores já falaram sobre isso, como Rosalind Krauss, Susan Sontag, Roland Barthes, etc. Uma das narrativas utilizadas para entender essa busca é o relato grego de Narciso, como mencionado por Krauss no seu livro O fotográfico. A história do jovem que, condenado a amar o seu próprio reflexo, se torna incapaz de envolver-se e apaixonar-se por outra pessoa, demonstra como a história da fotografia ocidental foi construída. O desejo pela própria imagem é algo presente na construção da individualidade dos seres humanos, e sabendo disso, é natural que busquemos nossas construções visuais no mundo.
Acima: Georgia Niara
"Célula de água" (detalhe)
A busca por um eu em imagem é legítima. Entretanto, é preciso ter uma atenção constante para que isso ocorra em equilíbrio, valorizando tanto o olhar para si quanto para os demais. E quando esse processo não ocorre assim, gera-se um problema para todos. Se me vejo em excesso, construo uma narrativa centralizada no eu, excluindo os demais. Se não me vejo, não me reconheço, portanto não pertenço. Parece que a chamada história da fotografia encontra-se nesse ponto, no desequilíbrio das presenças.
A artista, psicóloga e ativista Grada Kilomba, em seu livro Memórias da Plantação analisa os resquícios do colonialismo nas estruturas raciais e sociais, observando o quanto isso afeta o nosso imaginário e modelo de sociedade. Para Kilomba, o enredo da vida de Narciso possibilita entender o processo de construção das identidades raciais e da branquitude. Ela observa que a branquitude, assim como Narciso, está rodeada de ações voltadas para si e que reforçam exclusões e desumanização dos corpos não brancos.
A história da fotografia, em certa medida, normaliza a presença de corpos brancos e heteronormativos como universais, criando a sensação de não lugar ou de não pertencimento aos demais. Não por acaso que os conhecidos cartões Shirley, utilizados para “padronizar” os tons de pele durante o processo de impressão fotográfica, e muito utilizado pelos estúdios fotográficos analógicos no século passado, só incluíram pessoas não brancas como parte dos estudos a partir da década de 1990.
Grada Kilomba observa que a branquitude, assim como Narciso, está rodeada de ações voltadas para si e que reforçam exclusões e desumanização dos corpos não brancos.
Sabendo disso, a pergunta que fica é: como reescrever a história da fotografia? Como sair desse ciclo vicioso de colonialidades e exclusões? Uma tentativa de responder essa pergunta é o livro Reflections in Black: A History of Black Photographers, 1840 to the present, da pesquisadora Deborah Willis. A publicação nos dá outra história da fotografia, escrita e representada por pessoas negras. No Brasil, um outro projeto que também busca reescrever a história da fotografia pela autoria negra é o que busca construir novas visualidades, redefinir os processos técnicos e relacionais e elaborar uma escrita coletiva negra para a fotografia.
Esses não são os únicos projetos empenhados nessa reescrita, e é necessário que os acessemos. Se a história da fotografia é uma história de narcisos, que ela possa ser de múltiplos narcisos e existências. Que possamos confrontar os mecanismos do jogo da representação, proporcionando espelhos para todos.
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