Editorial
Ensaio
A família da humanidade
Ruben Pater
17 jun 2020, 15h59
Algumas culturas são maiores que outras
A cultura naturalmente se desloca através de fronteiras, mas nem sempre em igual medida. Dos anos 1600 aos 1900, foi a cultura europeia ocidental que se declarou superior, enquanto outras culturas eram classificadas como em estágio anterior ou menos desenvolvido. A cultura era vista como evolucionária, com a da Europa ocidental à frente.
O antropólogo Franz Boas [1858–1942] questionou essa ideia evolucionária de cultura. Ele argumentou que ela se desenvolve por meio da interação de pessoas e ideias e que não existe um processo em direção a um estágio “mais elevado”. Ele defendeu que as outras culturas não podem ser julgadas de forma objetiva, pois sempre a vemos através das lentes da nossa própria.
Ideias a respeito da evolução da cultura foram, em grande parte, abandonadas, mas séculos de domínio cultural e colonização deixaram marcas, tornando a cultura branca o ponto de referência para a arte, ideias, ciência e linguagem, como afirma Robert Young em Postcolonialism [Pós-colonialismo].
Durante a Guerra Fria, a União Soviética e os Estados Unidos usaram a mídia para “invadir países” – não com armas, mas com a cultura, na esperança de que os cidadãos sucumbissem a suas políticas. Alguns críticos culturais defendem que até personagens da Disney, como o Pato Donald e o Mickey, foram usados na América Latina com objetivos colonialistas. A ideia era que personagens inocentes, como esses dos desenhos, poderiam fazer as pessoas assimilarem de forma inconsciente as ideias políticas dos Estados Unidos.
A comunicação intercultural em si se tornou uma ferramenta política na Guerra Fria. Em 1965, um comitê de Relações Exteriores norte-americano falou da importância da pesquisa antropológica: “O papel das ciências comportamentais – o que podem nos dizer a respeito das atividades humanas e suas motivações e como esse conhecimento pode ser aplicado em atividades governamentais desenvolvidas para cumprir a política externa dos Estados Unidos – é de grande interesse desse comitê”.
Acima: Vista da exposição "Familia da humanidade" no MoMA.
Robert Young, Postcolonialism. Oxford: Oxford University Press, 2003, pp. 2–3.
Marita Sturken e Lisa Cartwright, Practices of Looking: An Introduction to Visual Culture. Oxford: Oxford University Press, 2001, p. 322.
Charles Egerton Osgood et al., Cross-cultural Universals of Affective Meaning. Champaign: University of Illinois Press, 1975, p. 8.
A família da humanidade
Nos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, tanto os Estados Unidos como a União Soviética usaram todos os meios imagináveis para convencer outros países de sua superioridade ideológica, até mesmo exposições de arte. Uma dessas era The Family of Man [A família da humanidade], uma mostra fotográfica que se tornou um dos primeiros grandes êxitos de público, com mais de 9 milhões de visitantes em oito anos.
A mostra teve origem em uma ideia de Edward Steichen, chefe do departamento de fotografia do Museum of Modern Art (MoMA) de Nova York. Ele queria criar um testemunho de união, igualdade e liberdade para todas as pessoas no planeta. Foram 503 fotos escolhidas de 69 países, cobrindo categorias como nascimento, amor, trabalho, doença e morte. A exposição foi uma novidade porque mostrou a fotografia não como arte, e sim como documentação. Steichen acreditava que ela poderia transmitir informações numa língua universal que todas as culturas compreenderiam. As imagens foram exibidas sem nenhum contexto – eram mencionados apenas o nome do fotógrafo e o local. A seleção era tudo menos neutra. 60% dos fotógrafos eram dos Estados Unidos e 26% da Europa. As imagens não exibiam nenhum casal inter-racial ou do mesmo sexo, enfatizando a importância da família tradicional. As duas fotos acima mostram famílias. A africana, à esquerda, aparece num cenário rural, do lado de fora, enquanto a família americana aparece dentro de casa, com fotos familiares penduradas na parede. Ambas mostram a “família humana”, mas uma é obviamente “desenvolvida”, enquanto a outra não é.
A turnê mundial
Depois de sua inauguração em 1955, The Family of Man partiu numa turnê mundial como parte da programação internacional do MoMA. Por oito anos, a exposição visitou 88 locais em 37 países, em seis continentes. Muitos eram países em desenvolvimento, nos quais os Estados Unidos tinham claro interesse comercial. Arte, política e interesses corporativos andavam de mãos dadas na turnê. A entrada da exposição em Johanesburgo exibia um grande globo cercado por garrafas de Coca-Cola. Na Guatemala, a exposição foi mostrada apenas catorze meses depois que os Estados Unidos financiaram o golpe que derrubou o governo eleito democraticamente e colocou no lugar uma junta que protegia os interesses das empresas norte-americanas.
Esta exposição é uma cortesia da CIA
A itinerância da exposição foi organizada por um programa internacional do MoMA em parceria com a Agência de Informação dos Estados Unidos (United Sates Information Agency, USIA), uma agência governamental que difundia as ideias políticas do país por intermédio da cultura. O programa tinha laços com a cia e já havia se envolvido anteriormente com a difusão cultural como forma de propaganda, algo demonstrado por Eva Cockcroft em Abstract Expressionism, Weapon of the Cold War [Expressionismo abstrato, armas da Guerra Fria].
The Family of Man promovia valores ocidentais ao mostrar que a liberdade e a inclusão de todas as culturas e religiões eram uma alternativa à ideologia fechada e rígida dos soviéticos. A usia achava que o público seria mais receptivo à mensagem se não a reconhecessem como propaganda política. Milhões de pessoas que visitaram a exposição ficaram com a impressão de que era uma mostra normal acerca de valores universais da humanidade.
The Family of Man se tornou uma das exposições mais populares de todos os tempos e em 2003 recebeu o reconhecimento da Unesco por seu valor histórico. Está em exibição permanente em Luxemburgo.
Celia Hartmann, “Edward Steichen Archive: The 55th Anniversary of The Family of Man”, 17 nov. 2010.
Allan Sekula, “The Traffic in Photographs”. Art Journal, n. 1, v. 41, 1981, p. 20–21.
Eva Cockcroft, “Abstract Expressionism, Weapon of the Cold War”. Pollock and After: The Critical Debate. New York: Harper & Row, 1985, p. 125.
Ibid.
Esse texto é um excerto do livro Políticas do design (Ubu Editora, 2020), com tradução de Antônio Xerxenesky.
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