"Natureza morta vermelha" (2017), Ana Elisa Egreja (Foto: Galeria Leme)
Galeria

A arte em ambiente doméstico

Felipe Molitor
26 mar 2020, 18h57

A quarentena provocada pela pandemia coloca a sociedade sob um inédito regime de paradoxos. O afastamento social nos une, o espaço público e as trocas devem acontecer o mais virtualmente possível e não tocamos mais as pessoas que amamos. Como denominador comum, o principal efeito da brusca alteração do cotidiano é o confinamento ao ambiente doméstico. Nossa casa agora é o palco principal de praticamente todas as atividades do dia e da noite, e as perspectivas incertas do fim do período de reclusão nos convocam a rever hábitos e descobrir novas vocações.

O lar é, por excelência, o lugar privilegiado da intimidade e da convivência com os mais próximos. São pequenos museus de histórias pessoais, que guardam todo tipo de objetos e arquiteturas repletas de lembranças inauditas. Há lares que são uma prisão, lares que são só de passagem, e lares que dão uma sensação de liberdade que apenas a privacidade absoluta permite. A atmosfera arrastada da quarentena também nos pergunta sobre a percepção do tempo passado em casa: o que fazemos nas horas vagas se tanto sonhamos com tempo livre? 

Essas reflexões poderiam ser tomadas a partir da obra de Valeska Soares, Alair Gomes, Ana Elisa Egreja, Leticia Parente e Anna Maria Maiolino, artistas em que o universo domiciliar é um marcador importante do trabalho artístico, sob distintas formas e pretextos. No interior dessa seleção, poéticas e trajetórias pessoais se confundem, e a casa aparece ora como conceito, procedência ou como único meio de criação. Até porque, independente da linguagem, não é só nos ateliês que a experiência da arte nasce e acontece.

Acima: "Natureza morta vermelha" (2017), Ana Elisa Egreja (Foto: Galeria Leme)

Desde o fim dos anos 1980, Valeska Soares atua no campo entre a escultura, o objeto e a instalação. Suas obras são como um truque de mágica lançado sobre fragmentos de objetos corriqueiros, evocando as memórias e os desejos de materiais familiares como tapetes, frascos, embalagens e móveis.

"Unhinged" (2017), Valeska Soares (Foto: Divulgação)

"Unhinged" (2017), Valeska Soares (Foto: Divulgação)

"Sugar Blues III" (2008), Valeska Soares (Foto: Divulgação)

"Sugar Blues III" (2008), Valeska Soares (Foto: Divulgação)

A artista cria situações insinuantes a partir de um repertório ao mesmo tempo extravagante e trivial, manipulando detalhes como a opacidade e o brilho das peças, realizando subtrações e deixando sobrar aquilo que possa convidar outros sentidos, como o olfato e o tato, para a participação.

"Lugar comum" (2016), Valeska Soares (Foto: Divulgação)
"Kiss (Given the Right Conditions)" (2000), Valeska Soares (Foto: divulgação)

"Lugar comum" (2016), Valeska Soares (Foto: Divulgação)

"Kiss (Given the Right Conditions)" (2000), Valeska Soares
(Foto: divulgação)

"Ground III" (2016), Valeska Soares (Foto: Divulgação)

"Ground III" (2016), Valeska Soares (Foto: Divulgação)

Melancólicas e apaixonadas, sombrias e chistosas, as obras de Valeska Soares nos remetem conceitualmente, sem nenhuma desqualificação, por exemplo, aos bibelôs – aquela palavra antiga que se refere aos objetos que não têm tempo nem lugar específico para adornar, mas que herdam os sentimentos e os fascínios de épocas já passadas.

"Epilogue" (2019), Valeska Soares (Foto: Divulgação)

"Epilogue" (2019), Valeska Soares (Foto: Divulgação)

"Doubleface Cadmium (Red Deep/Wam Grey)" (2019), Valeska Soares (Foto: Divulgação)

"Doubleface Cadmium (Red Deep/Wam Grey)" (2019), Valeska Soares (Foto: Divulgação)

Da janela de sua casa, Alair Gomes podia avistar um pedaço da praia de Ipanema, no Rio de Janeiro. A partir dessa fresta, fotografava jovens meninos se exercitando, conversando ou apenas transitando pela paisagem idílica, revelando a sensualidade e o erotismo do corpo masculino. Com essa prática, o artista radicalizava a máxima que diz que todo fotógrafo é, em alguma instância, um tipo de voyeur. 

Série "Sonatinas, Four Feet" (1975-1980), Alair Gomes (Foto: Divulgação)

Série "Sonatinas, Four Feet" (1975-1980), Alair Gomes (Foto: Divulgação)

Série "Sonatinas, Four Feet" (1975-1980), Alair Gomes (Foto: Divulgação)

Série "Sonatinas, Four Feet" (1975-1980), Alair Gomes (Foto: Divulgação)

Por vezes, o fotógrafo descia ao calçadão e à faixa de areia para convencer alguns dos clicados para um ensaio mais íntimo. Novamente, a casa era o local fundamental para o fazer artístico de Gomes. Era o fim dos anos 1970, e a fusão entre arte e vida se mostrava um caminho que muitos artistas estavam dispostos a arriscar.

Série "Beach Triptych" (1980), Alair Gomes (Foto: Divulgação)

Série "Beach Triptych" (1980), Alair Gomes (Foto: Divulgação)

Alair Gomes era uma exímio pesquisador da história da arte clássica, que não dispensava o equilíbrio de luz e sombra, a tensão nas formas e a composição calculada de suas imagens apresentadas muitas vezes sequencialmente. Entre a lascividade e o rigor, Gomes deixou grande contribuição para a fotografia.

Série "The Course of the Sun" (1967-1974), Alair Gomes (Foto: Divulgação)
Série "The Course of the Sun" (1967-1974), Alair Gomes (Foto: divulgação)

Série "The Course of the Sun" (1967-1974), Alair Gomes (Foto: Divulgação)

Série "The Course of the Sun" (1967-1974), Alair Gomes
(Foto: divulgação)

Nas pinturas de Ana Elisa Egreja, ao invés de personagens, os ambientes são os verdadeiros protagonistas. O realismo das obras é realçado pelo caráter altamente detalhista e pela abundância de cores, texturas e padronagens de cada vista interior enquadrada.

"Corredor com ratos" (2017), Ana Elisa Egreja (Foto: Divulgação)

"Corredor com ratos" (2017), Ana Elisa Egreja (Foto: Divulgação)

"Pink room" (2019), Ana Elisa Egreja (Foto: Filipe Berndt/Galeria Leme)

"Pink room" (2019), Ana Elisa Egreja (Foto: Filipe Berndt/Galeria Leme)

No início da carreira, Egreja inventava suas paisagens domésticas a partir da pesquisa de imagens de objetos banais de casas antigas, tomando a técnica precisa e a subjetividade como amálgama afetiva da composição. Em séries mais recentes, a artista explora a organização cênica e a fotografia, para depois transportar a imagem construída para a temporalidade da pintura.

"Banheiro amarelo (Casa Campo Verde Rino Levi)" (2018), Ana Elisa Egreja (Foto: Galeria Leme)
"Pia e salamandra" (2013), Ana Elisa Egreja (Foto: divulgação)

"Banheiro amarelo (Casa Campo Verde Rino Levi)" (2018), Ana Elisa Egreja (Foto: Galeria Leme)

"Pia e salamandra" (2013), Ana Elisa Egreja
(Foto: divulgação)

As obras desvelam narrativas fantásticas e nostálgicas a partir das minúcias e pormenores dos ambientes vernaculares, que extraem do superficial e do kitsch outros registros emocionais e simbólicos.

"Janela da Bienal com vista para o Rio" (2014), Ana Elisa Egreja (Foto: Filipe Berndt/Galeria Leme)

"Janela da Bienal com vista para o Rio" (2014), Ana Elisa Egreja (Foto: Filipe Berndt/Galeria Leme)

"Copa" (2017), Ana Elisa Egreja (Foto: Divulgação)

"Copa" (2017), Ana Elisa Egreja (Foto: Divulgação)

Letícia Parente foi uma das pioneiras no uso do audiovisual como linguagem para as artes visuais. Entre as décadas de 1970 e 1980, a artista realizou obras em que ela mesma se colocava para a câmera em ações curtas e potentes, que não escondem o cunho caseiro e visceral dessas produções.

"Marca registrada" (1975)

(Cortesia Galeria Jaqueline Martins)

"In" (1975)

(Cortesia Galeria Jaqueline Martins)

Laboratório, ateliê e casa são lugares permutáveis para Letícia Parente, que também era professora doutora em química. Procedimentos de repetição, classificação, experimentação e taxonomia cruzam seus ofícios, além do interesse por mídias até então inéditas e materiais destoantes para a arte.

"Eu armário de mim" (1975)

(Cortesia Galeria Jaqueline Martins)

"Preparação I", 1975

(Cortesia Galeria Jaqueline Martins)

Suas obras também discutem a condição da mulher na mecânica dos afazeres cotidianos, artísticos e científicos, conjugando a um só tempo questões da arte conceitual, das artes do corpo e a crítica social e política. 

"Tarefa I" (1982)

(Cortesia Galeria Jaqueline Martins)

A poética de Anna Maria Maiolino reflete os ciclos de uma vida feita de impermanências e reminiscências. Em suas obras, assim como o corpo, a casa se torna um ente vivo, que sobrevive de trocas culturais e simbólicas que demandam cuidado e sustento. 

"Glu... glu... glu..." (1967), Anna Maria Maiolino (Foto: Divulgação)
Anna Maria Maiolino montando "Monumento à fome" (1978) (Foto: Acervo da artista / Frieze Magazine)

"Glu... glu... glu..." (1967), Anna Maria Maiolino (Foto: Divulgação)

Anna Maria Maiolino montando "Monumento à fome" (1978) (Foto: Acervo da artista / Frieze Magazine)

Suas obras transmutam o alimento e o ato de alimentar-se em posição política, e abordam os laços que unem relações familiares e sociais. Com simplicidade, Maiolino costura ideias em torno da comunhão entre as pessoas, do espaço comum e dos elos intangíveis que determinam nosso lugar.

"Arroz e feijão" (1979), Anna Maria Maiolino (Foto: Divulgação)

"Arroz e feijão" (1979), Anna Maria Maiolino (Foto: Divulgação)

Série "Vida afora, fotopoemação" (1981), Anna Maria Maiolino (Foto: Divulgação)

Série "Vida afora, fotopoemação" (1981), Anna Maria Maiolino (Foto: Divulgação)

A artista experimentou diversas linguagens ao longo de sua carreira, da gravura ao vídeo, do desenho à fotografia, sendo figura bastante ativa em diferentes fases da recente história da arte brasileira. Nas últimas décadas, ela se dedica especialmente àquilo que suas mãos podem manipular: a gestualidade é o veículo do afeto. 

Registro da instalação "Aqui e ali" na Documenta 13, em Kassel (Foto: Galeria Luisa Strina)

Registro da instalação "Aqui e ali" na Documenta 13, em Kassel (Foto: Galeria Luisa Strina)

"Por um fio" (1976), Anna Maria Maiolino, da série "Fotopoemação" (Foto: Regina Vater / Divulgação)

"Por um fio" (1976), Anna Maria Maiolino, da série "Fotopoemação" (Foto: Regina Vater / Divulgação)


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Felipe Molitor é jornalista e crítico de arte, parte da equipe editorial da SP–Arte.

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